Membros do colegiado garantem que não se trata de pedido de revisão, como alegam os militares; pela interpretação atual, Brasil pratica autoanistia, condenada internacionalmente
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) vai propor, em seu relatório final, que o Brasil faça uma nova interpretação da Lei 6.683, conhecida como Lei da Anistia. Esse pedido já conta com a concordância de todos os integrantes do órgão, que defendem que a legislação brasileira precisa se adequar aos parâmetros internacionais definidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Trabalhos da Comissão da Verdade
Na prática, a adoção de uma nova interpretação no País abriria a possibilidade de investigar, julgar e punir militares que, em nome do regime, cometeram estupro, ocultação de cadáveres, desaparecimentos forçados, sequestros e outros delitos considerados imprescritíveis.
Os membros da Comissão da Verdade fazem questão de esclarecer, entretanto, que o relatório não fará um pedido de revisão da lei editada em 1979, ainda em plena ditadura. Há um entendimento de que, em nenhum momento, a lei protege quem cometeu crimes de terrorismo e contra a humanidade.
Atualmente, o entendimento da Corte internacional é de que o Brasil pratica a autoanistia, na medida em que crimes comuns, imprescritíveis, como tortura, sequestro e desaparecimento de pessoas, praticados por agentes do Estado no período militar, também são passíveis de perdão.
Essa prática é considerada ilegítima pelo Pacto de San José da Costa Rica, tratado do qual o Brasil é signatário. “O que aconteceu no Brasil não foi uma anistia. Existe uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que diz que as autoanistias não são aceitáveis”, defendeu o atual coordenador da Comissão da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, em reunião com os demais membros da comissão.
‘Erro do Supremo’
O entendimento de que os crimes de tortura, sequestro e desaparecimentos forçados praticados por agentes do Estado devem ser também alcançados pela Lei da Anistia foi ratificado pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, ao julgar uma Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil.
Na época, a maioria dos ministros do Supremo entendeu que essas ações dos militares poderiam ser definidas na categoria de crimes conexos e, dessa forma, passíveis de serem perdoados. O julgamento, no entanto, ainda não terminou, já que embargos de declaração apresentado pela OAB ainda não foram apreciados pelo Supremo.
A Lei da Anistia, em seu a artigo 1º, prevê: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundação vinculada ao Poder Público, aos servidores do Poder Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.
A Lei ainda estabelece que são considerados crimes conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. A lei prevê ainda que não estão incluídos na categoria de crimes a serem perdoados a prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
A necessidade de uma nova interpretação não é um pensamento isolado dos membros da comissão. Muitos juristas concordam que, em 2010, o Supremo errou ao incluir todos os abusos cometidos por agentes do Estado no período ditatorial entre os crimes perdoados.
“A palavra não é revisão. O Supremo precisa corrigir o grande erro que cometeu em 2010, ao interpretar aquela Lei de Anistia que, em nenhuma de suas linhas, protege quem cometeu tortura, estupro, ocultação de cadáver, sequestros e desaparecimentos forçado. É necessário que o Supremo reveja essa posição e faça uma nova interpretação”, defende Paulo Vannuchi, ex-ministro de Direitos Humanos e candidato a uma cadeira da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “O Supremo precisa corrigir seu erro e reconhecer que a lei não protege esse tipo de crime”, enfatizou.
Crimes continuados
Da mesma forma, o jurista Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), destaca que da forma que está, a Lei da Anistia é inóqua e em desacordo com os parâmetros internacionais. “Alguém, por ventura, ignora que se a Lei de Anistia teve efeitos imediatos e irreversíveis, ela não pode se aplicar a crimes continuados, como o de ocultação de cadáveres, por exemplo”, argumenta.
“A disposição do artigo primeiro da Lei de Anistia de 1979, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, foi declarada radicalmente nula pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”, destaca.
Comparato defende ainda a aprovação, pelo Congresso Nacional, do projeto de lei 573, de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que prevê essa nova interpretação. O projeto já foi rejeitado pela Comissão de Defesa da Câmara e, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), já recebeu parecer contrário apresentado pelo deputado Luiz Pitimann (PMDB-DF).
“Em 26 de novembro de 1968, a ONU aprovou o texto sobre a não prescrição dos crimes de guerra, contra a humanidade, ainda que tais delitos não sejam tipificados pelas leis dos Estados onde esses crimes foram perpetrados”, argumenta. “Foi por essa e outras razões que a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu em sua citada sentença condenatória do Brasil, ser inadmissíveis as disposições de anistia adotadas no país”.
Esquecimento
O professor Pedro Dallari, também da USP, defende a necessidade de uma nova interpretação. Para ele, essa nova posição poderia sanar vícios de origem da lei, que foi criada para promover o “esquecimento”, mas que não permitiu o “conhecimento” dos crimes ocorridos no período da ditadura militar e que deveriam ser esquecidos.
“Realmente, na América Latina, essa legislação foi produzida em um contexto ainda sob a hegemonia da ditadura e, com isso, a legislação acabou não sendo uma legislação de esquecimento, mas uma legislação de não conhecimento. A anistia foi dada previamente a que se conhecesse a brutalidade dos fatos que, então, deveriam ser esquecidos em benefício da paz social. Na verdade, houve uma inversão, deixou de haver a apuração dos fatos, de maneira adequada, para que depois se viesse a falar na conveniência política do esquecimento”.
Endosso
Dallari lembrou que, por duas vezes na história política recente do Brasil, o Congresso Nacional endossou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que não aceita a forma de anistia adotada. Assim, Dallari argumenta que não há como o Brasil descumprir agora as decisões da Corte. “Não se pode falar de uma decisão de um tribunal internacional como algo alheio, como algo estranho às instituições brasileiras”, argumentou.
O primeiro endosso ocorreu em 1992, durante o governo de Fernando Collor de Mello. Na época, foi promulgado um decreto legislativo, no qual o Brasil aderiu à convenção que havia sido editada em 1969, mas ignorada pelo país, que vivia tempos ditatoriais
Mais tarde, em 1998, já no governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil reconheceu a jurisdição da Corte, vinculando suas decisões. “A partir daí, o Brasil não só se tornou parte da convenção, mas também reconheceu sua jurisdição. A Câmara e o Senado examinaram a matéria e deram o endosso essencial para que a Presidência da República pudesse efetuar o ato internacional, primeiro da adesão, depois do reconhecimento da jurisdição”, lembrou.
“Faço esse resgate para comprovar que a vinculação à Convenção Interamericana de Direitos Humanos não foi algo feito de maneira açodada, eventual, despercebida, sem maior exame da matéria, mas como algo que decorreu de sucessivos governos, com posições políticas diferentes e em momentos históricos diferentes. Em duas vezes, em dois momentos, essa adesão contou com o endosso essencial do Congresso Nacional, de tal sorte que a vinculação do Brasil é algo que se solidificou como algo extremamente forte no direito brasileiros”, defendeu.
Fonte – IG