Nova coordenadora afirma que a sociedade brasileira deve se envolver mais no debate sobre o passado. “Há violências que precisamos contar e que a nossa juventude precisa conhecer”, diz Rosa Maria Cardoso.
Advogada e professora universitária, defensora de presos políticos durante a ditadura militar, a nova coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, Rosa Maria Cardoso, não hesita em dizer o que gostaria de ouvir do presidente da Alemanha, Joachim Gauck, nesta quarta-feira (15/05), durante almoço no Rio de Janeiro: “Que ele estimule a transparência e militância no nosso trabalho de luta por democracia. Que aponte, a partir do exemplo alemão, as possibilidades de saídas gradualistas do autoritarismo e de envolvimento da sociedade no debate à medida que processarmos as informações levantadas.”
Tendo criado sua Comissão da Verdade há exatamente um ano, o Brasil ingressou bem mais tarde do que seus vizinhos latino-americanos em um processo de esclarecimento dos crimes e das verdades do passado. Esse avanço lento tem sido a marca do país ao lidar com a questão, principalmente em comparação com a vizinha Argentina.
“Temos uma cultura de conciliação entre as elites, historicamente violentas e fortes em contraposição a um Estado fraco”, opina Cardoso em entrevista à DW Brasil, ao admitir as dificuldades de enfrentar o passado, quase três décadas depois da redemocratização.
Reconciliação com o passado é tema conhecido para Joachim Gauck (na foto ao lado de Dilma)Entre os desafios, a nova coordenadora cita “o pacto entre as elites para abafar o passado, as violências que se reproduzem até o presente e a desigualdade aguçada por períodos recentes de crises econômicas e inflação continuada”.
O advogado João Ricardo Dornelles, membro da Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro, também responsabiliza a cultura política de conciliação pelo atraso do Brasil em se engajar no processo.
“Vários acontecimentos na nossa história não se deram por rupturas, e sim através de acordos e pactos, em geral sem qualquer participação popular, como a própria Independência, declarada pelo Príncipe Regente de Portugal; a abolição da escravatura, através da Princesa Isabel, no final do Império; a República, proclamada sem população; e, mais recentemente a transição da ditadura militar para a democracia”, constata.
Na avaliação de Dornelles, o “pacto por cima” de setores da oposição liberal ao regime militar com segmentos conservadores que deram sustentação a ele teve por consequência um processo de transição controlado, em que os avanços em algumas áreas foram bloqueados, especialmente em relação aos órgãos de repressão do regime militar e às violações cometidas naquele período.
Lento acerto de contas com o passado
Criada há exatamente um ano, a Comissão Nacional da Verdade tem um vasto objetivo: apurar as violações de direitos humanos ocorridas de setembro de 1946 até a Constituição de 1988, período que inclui a época da ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985.
Seus sete integrantes – Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, João Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha – foram escolhidos a dedo pela presidente Dilma Rousseff, ela própria presa, perseguida e torturada durante a ditadura.
Embora a Constituição de 1988 já apontasse a necessidade de se buscar a verdade sobre o passado, por muito tempo nada aconteceu. A questão não parecia ser central nem para o governo nem para a sociedade brasileira, salvo para os familiares de presos, mortos e desaparecidos, atingidos pelos atos da ditadura, e alguns movimentos de direitos humanos que se mobilizaram ao longo dos anos 1980.
Somente em 1995 foi dado um status civil e visibilidade à questão com a criação da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Mais alguns anos se passaram até uma nova etapa no processo de implantação de uma “justiça de transição'”, com as reparações materiais e simbólicas concedidas pela Comissão de Anistia, em 2003.
Um marco importante aconteceu em 2010, quando o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA em ação movida por familiares de mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, uma ação armada ocorrida entre 1972 e 1974, na região de Marabá, no estado do Pará. Só com a criação da Comissão Nacional e das comissões estaduais da Verdade e a Lei de Acesso à Informação ampliou-se a publicidade sobre o tema para toda a sociedade.
Mudança de foco: mais mobilização
Se no primeiro ano a Comissão da Verdade se concentrou em investigar os casos dos 150 desaparecidos políticos para os quais não existe qualquer registro de prisão ou notícia sobre o paradeiro dos corpos, a nova orientação, um ano depois, é promover uma grande mobilização política, afirma Cardoso. “Queremos ampliar o círculo de pessoas que conhecem as questões. Há violências que precisamos contar e que a nossa juventude precisa conhecer”, diz ela.
Ao fazer o balanço do primeiro ano de atividades, a nova coordenadora diz que primeiro foi preciso estabelecer o consenso e o modus operandi entre os membros da comissão, conhecer as instituições e os órgãos, como os ministérios militares, os acervos e arquivos existentes, construir parcerias.
“Hoje temos uma vasta base de dados e documentos que estão sendo digitalizados e queremos investir na discussão, principalmente com as quase 20 comissões estaduais e os inúmeros comitês pelo país afora”, diz Cardoso.
A pauta de 2013 promete um debate intenso. Depois da questão da mudança do atestado de óbito de Vladimir Herzog e a polêmica com os militares, que insistem em dizer que documentos da ditadura foram queimados, há a investigação em torno da causa de morte do ex-presidente João Goulart, cujo corpo será exumado para descobrir se sua morte, em 1976, pode ter sido em decorrência da ingestão de substâncias químicas.
Na sexta-feira passada, a Comissão da Verdade ouviu o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de praticar tortura, sequestrar e assassinar militantes políticos no período em que comandou o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna do 2º Exército em São Paulo (DOI-Codi-SP). Ele negou a acusação de ocultação de cadáver e disse que sempre agiu dentro da lei.
“Depois da primeira fase – a revelação da verdade – virá a segunda, da retribuição via justiça. A Argentina já chegou a isso, o Chile está próximo, mas o Brasil ainda está distante. Se conseguirmos saber o que aconteceu, quem fez o quê, onde estão os mortos, terá sido um passo importante”, diz o historiador Carlos Fico, especialista na época da ditadura.
“Estamos aprendendo a caminhar, aprendendo a trabalhar de forma horizontal, descentralizada, orientada a não gerar dispersão e buscando envolver a sociedade, capilarizando nossa atuação”, resume Cardoso.
Fonte – DW.DE