Ex-agente que admite crimes na ditadura tem longa ficha policial

Facínora, recuperado, farsante, corajoso, vilão da ditadura, herói da Comissão da Verdade.

Nos últimos dias, todas essas expressões foram usadas para descrever à Folha Cláudio Guerra, ex-delegado do Dops que afirmou, em livro, ter matado e incinerado corpos de presos políticos no regime militar (1964-1985).

Ignorado pela crônica do período, ele agora se apresenta como protagonista de episódios lendários como a Chacina da Lapa –morte de três dirigentes do PC do B no bairro paulistano, em 1976–, a morte do delegado Sérgio Fleury –um dos principais nomes da repressão– e o atentado do Riocentro, realizado pela linha dura do regime em 1981.

O lançamento deu visibilidade nacional a um personagem que, no Espírito Santo, já é associado ao crime organizado e aos grupos de extermínio desde o fim dos anos 70.

“O nome dele impõe temor em todo o Estado”, diz o procurador de Justiça Sócrates de Souza. “Durante muitos anos, ele esteve envolvido com quase todas as mortes violentas na sociedade capixaba.”

Condenado a 42 anos de prisão por um atentado a bomba quando disputava o controle do bicho em Vitória, ele também é acusado de diversos assassinatos, inclusive o da ex-mulher e da cunhada, torturas, associação para o tráfico e outros crimes.

Sinônimo de barra-pesada, voltou a ser citado pela mídia local há três meses sob suspeita de colaborar com o desvio de R$ 6 milhões em dízimos recolhidos pela Assembleia de Deus em Serra (ES), onde atuava como integrante do conselho fiscal.

Por causa da ficha corrida, a cúpula da igreja no Estado se recusa a nomeá-lo pastor, o que não o impede de liderar cultos e se apresentar como exemplo de recuperação em templos no entorno de Vitória.

Ele ainda mantém um site onde se outorga o título negado pelos superiores e aparece em fotos de terno e gravata, como um pregador televisivo.

“O Cláudio é um milagre de Jesus. Ele era um monstro e virou um cordeiro, um pombo da paz”, diz o pastor Délio Nascimento, que também é acusado de desviar dinheiro dos fiéis, o que ele nega.

Guerra passou os últimos anos preso em regime semi-aberto numa casa de repouso em Vila Velha (ES).

Agora está escondido com autorização judicial, após dizer ter sido alvo de ameaças de um militar que citou no livro.

Apesar da repercussão na imprensa, “Memórias de uma Guerra Suja” (Topbooks) foi recebido com ceticismo por alguns pesquisadores e parentes de vítimas da ditadura.

Victoria Grabois, dirigente do grupo Tortura Nunca Mais no Rio, estranhou que alguém que diz ter sido tão importante tenha permanecido incógnito por décadas.

007

O ex-delegado nunca apareceu nas listas de torturadores divulgadas há mais de 30 anos, e ao menos dois oficiais que ele citou como cúmplices disseram que não o conhecem.

Um alto funcionário do governo federal que atua na área de anistia política afirma que é comum ex-agentes exagerarem relatos.

A suspeita é agravada por trechos espetaculares do livro, como a suposta participação num atentado em Angola que explodiu uma rádio e matou integrantes do regime comunista em 1977.

A missão secreta teria decolado do subúrbio do Rio num Hércules da FAB (Força Aérea Brasileira).

Em outra passagem, o ex-delegado diz ter sido íntimo de um representante da CIA, cubano naturalizado americano, responsável pelo contrabando de armas para os militares brasileiros. Segundo o relato, o agente um dia tentou matá-lo, mas ele se salvou numa cena de 007.

“A desconfiança é bem-vinda. Mas nós checamos todas as informações e confiamos no que ele contou”, diz o jornalista Rogério Medeiros, que assina o livro-depoimento com Marcelo Netto.

O deputado estadual Adriano Diogo (PT), que preside a Comissão da Verdade paulista, afirma que o testemunho pode ser útil. “Ele pode não ter sido um cinco-estrelas como está se vendendo. Mas se 1% do que diz for verdade, já é relevante.”

De acordo com o Tribunal de Justiça do Espirito Santo, Guerra pode se livrar da pena em 2015, graças à idade avançada. O procurador Souza é contra o benefício.

“Ele não é um criminoso comum. Se fez tudo isso no passado, pode voltar a fazer.”

 

Fonte – Folha de S.Paulo

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