O drama “A Memória que me Contam” marca o retorno da diretora carioca Lúcia Murat (“Uma Longa Viagem”) ao período da ditadura militar brasileira. Foi este o tema de seu primeiro longa, o documentário “Que Bom Te Ver Viva”. Lançado em 1989 no Festival de Brasília, acabou levando o prêmio Candango de Melhor Filme.
“A Memória que me Contam” também trata da ditadura e também foi lançado em Brasília, mas desta vez o cenário político serve como pano de fundo para o drama. “O filme de agora é bem menos agressivo, mais lírico que meu primeiro longa. Ele lida com as perdas de maneira mais reflexiva”, analisou a diretora em entrevista à Pipoca Moderna.
A trama é centrada num grupo de amigos que resistiu ao regime militar e que hoje tem profissões e visões diferentes. Eles se reúnem novamente quando descobrem que uma pessoa a quem eram muito ligados, um mito da época, está morrendo. “É uma ação que tem a ver com o passado, mas principalmente com o presente, refletindo como cada um vê hoje a sua história”, descreveu a cineasta.
Trata-se de uma ficção, mas os personagens são inspirados num grupo de pessoas reais, que resistiu à ditadura e do qual Lúcia fez parte, como confirma a diretora. Porém, ela não se prende tanto à realidade, como ao retratar a ex-guerrilheira Ana, a personagem da atriz Simone Spoladore (“Elvis e Madona”), que cataliza o reencontro dos antigos amigos.
Ana foi inspirada na guerrilheira Vera Sílvia Magalhães, a quem o filme é dedicado. Papel desafiador, nas palavras de sua intérprete. A personagem, que mesmo aos 60 anos e à beira da morte depois de várias doenças, só aparece no longa bonita e jovem.
“Eu queria que ela aparecesse sempre bonita, jovem e inteligente, como todo mito que a gente tem, em que a decadência não aparece, a feiúra não aparece”, explicou a diretora. O resultado é uma idealização, uma abstração que Murat trata com criatividade na trama.
Simone Spoladore a descreve como a representação da utopia de uma época, uma “imagem mitológica e poética”.
Na primeira versão do roteiro, a personagem sequer aparecia, revelou Lúcia. Depois, era ouvida apenas em off. No resultado final, Ana contracena com os personagens no tempo real do filme. O resultado é uma idealização, uma abstração que a diretora trata com criatividade na trama. Ela existe somente na imaginação das pessoas, de quem ela precisa se despedir já no fim da vida.
Refletindo sobre o passado, mas também sobre o presente, Lúcia considera “A Memória que me Contam” um “drama irônico”. Segundo a diretora, a ironia acontece “porque existe uma utopia que foi derrotada e, ao mesmo tempo, ela faz parte de uma geração que está no poder hoje”.
O elenco de “A Memória que Me Contam” conta ainda com o ator italiano Franco Nero (“Django”), como um exilado político, e Irene Ravache (novela “Passione”) num papel que pode ser considerado o alter-ego de Lúcia Murat.
A atriz, que também trabalhou no primeiro trabalho da diretora, “Que Bom Te Ver Viva”, interpreta uma cineasta engajada, que quer fazer um filme sobre a história de Ana. A personagem fictícia chegou a ser presa e torturada na ditadura e ficou reconhecida por seus filmes com temática política. Assim como a própria Lúcia.
“Eu acho que a ditadura é um tema importante, é parte da história do Brasil e isso nos forma. Eu, particularmente, fui parte dessa geração, fui presa e torturada”, ela confirma.
Simone contou que se sentiu tocada pela experiência de vida de Lúcia. “Quando fiz ‘O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias’ aquela época [da ditadura] parecia tão distante. Agora não, estava ali bem próxima de mim, na história de Lúcia”, declarou a atriz.
Em 2011, Lúcia venceu o Festival de Gramado com um documentário que justamente refletia sobre sua história pessoal de forma poética, “Uma Longa Viagem”, criado a partir de cartas de seu irmão nos anos 1960. “O cinema me permitiu sobreviver”, afirmou a diretora, refletindo sobre tudo o que enfrentou nos anos de chumbo.
Fonte – Pipoca Moderna