Em 30 de agosto de 2009 voltava à cena nacional uma das personagens mais controversas oriundas da esquerda brasileira, José Anselmo dos Santos, ou simplesmente Cabo Anselmo, como passou para a história, não por seus atos de heroísmo, mas por uma vilania de caráter psicológico e ideológico que poucas vezes foi registrado nas lutas dentro de regimes ditatoriais. Vivendo na clandestinidade por quase quatro décadas, mesmo depois do fim do regime militar, em 1985, ele mostrava pela primeira, abertamente, o rosto ao Brasil, numa entrevista concedida em cadeia nacional, ao programa “Canal Livre”, na TV Bandeirantes. O rosto que, apesar de vincado pelos anos, dera-lhe a ditadura militar.
Cabo Anselmo, militar agitador na época do governo de João Goulart, alentado mais pela ambição e vaidade pessoais do que por convicções ideológicas, cujos discursos inflamados suscitaram o princípio da honra hierárquica militar abalada pela insurreição das baixas patentes, e, conseqüentemente, a desculpa para a intervenção das Forças Armadas no governo, a deposição do presidente e a consolidação do golpe de estado que implantou a ditadura da caserna no Brasil. Este Anselmo que se apresentou, é aquele que foi aclamado publicamente como inimigo do regime instalado em 1964, logo a seguir ao golpe. O que foi afastado da Marinha, preso e, inexplicavelmente, fugitivo de uma cela que tinha a chave. O mesmo que, numa visão míope da esquerda, foi mandado para Cuba, treinado em campos de guerrilha e enviado de volta ao Brasil para fazer parte da resistência engajada à ditadura militar. O mesmo que transitava como herói pelos aparelhos das organizações clandestinas e, como um espectro sombrio, deixava um rastro de prisões, torturas e mortes aos companheiros com os quais convivia. O mesmo que, sem mais poder esconder a sua condição de traidor, assumiu sem quaisquer problemas de conflito moral ou consciência pejorativa, a função de não só delatar, como a de atrair e conduzir para ciladas os companheiros de outrora, resultando na morte por tortura e execução de vários deles, inclusive da mulher com quem mantinha um relacionamento romântico e esperava um filho seu.
Este Anselmo que se apresentava às câmeras com frieza e com a mesma eloqüência histriônica e narcisista dos tempos dos discursos na Marinha, mostrava o rosto que foi um dia mudado por cirurgias plásticas, para que pudesse continuar a ser um “cachorro”, nome dado aos delatores da esquerda pelos agentes da repressão. Sob os holofotes televisivos, apresentava-se como herói nacional, como alguém que ajudara a livrar o Brasil do perigo vermelho. Discurso que virou palavra de ordem e justificativa dos que um dia torturaram e mataram nos calabouços da ditadura. Cabo Anselmo mostrava, finalmente, envelhecido e austero, o rosto da infâmia da esquerda brasileira.
A Importância Histórica dos Movimentos dos Oficiais de Baixa Patente
A história republicana e o poder das Forças Armadas estão interligados desde a proclamação da República, em 1889, tendo como primeiro presidente um militar, o marechal Deodoro da Fonseca. Do início ao fim da República Velha (1889-1930), as elites civis e militares foram responsáveis pelas maiores decisões políticas no Brasil, mantendo o país sob uma subdesenvolvida economia que beneficiava as oligarquias rurais.
A indústria incipiente brasileira da primeira década do século XX atraiu a população agrícola para as cidades, modificando socialmente um país economicamente rural. Esta mudança gerou uma nova classe social, que passou a perseguir seus direitos. Inspirados em ideologias européias, os trabalhadores começaram a reivindicar um lugar na sociedade, associando-se a parcos movimentos sindicalistas, facilmente controlados pelas oligarquias da República Velha.
Em contraste com a classe trabalhadora, com pouca representatividade no cenário nacional, nascia, na década de 1920, uma elite de jovens oficiais dentro das casernas que se sentia excluída, passando a contestar veementemente o sistema. Surgida dentro da Marinha e do Exército, esta elite contestadora deu origem ao movimento conhecido por Tenentismo, devido à baixa patente dos seus líderes. O Tenentismo a princípio, tinha como objetivo pôr fim ao poderio das lideranças rurais, estendendo-o à classe média urbana emergente. O movimento gerou revoltas significativas, enfraquecendo o poder das oligarquias rurais, levando a República Velha ao colapso. Entre os movimentos tenentistas estão a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 1922; a Revolta Paulista, ou Revolução de 1924; a Comuna de Manaus, em 1924; e, a mítica Coluna Miguel Costa –Prestes, ou Coluna Prestes, que se estendeu de 1925 a 1927.
Dentro das Forças Armadas, porém, a situação dos oficiais de baixa patentes jamais foi alterada. Movida por princípios hierárquicos que se mostravam inalteráveis, a alta cúpula militar tratava seus oficiais como cidadãos menores, privando-os dos direitos de cidadão, tais como votar ou ser eletivos.
Foi de um movimento de baixa patente militar que surgiu Luiz Carlos Prestes, transformado na década de 1930 no maior líder comunista do Brasil. Prestes acreditava que a revolução proletária viria das bases militares, tanto que investiu nos quartéis a malograda Intentona Comunista de 1935. Na época, a maioria dos militares que aderiu à Intentona não era comunista, sendo movidos pela má qualidade da vida que tinham nos quartéis. Esta insatisfação histórica das baixas patentes das Forças Armadas criou uma atmosfera sujeita a sublevações, fazendo dos quartéis lugares férteis para que se recrutasse militantes de esquerda. Ciente do fato, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), sempre deu grande importância aos movimentos oriundos dos oficiais de baixa patente, fazendo-os imprescindíveis numa possível situação revolucionária.
O Cabo Anselmo Surge nos Movimentos de Marinheiros
Os princípios hierárquicos das instituições militares são fundamentais para que se mantenha uma rigorosa disciplina, fluindo os objetivos bélicos de defesa e ataque para os quais foram destinadas. O grande problema na história militar brasileira foi quando a hierarquia militar foi transformada em social, gerando uma quebra de direitos comuns aos cidadãos de um país. A história registra muitas rebeliões de baixas patentes militares devido aos maus tratos, à submissão escrava a que eram submetidos dentro das casernas.
No inicio dos anos 1960, movimentos de militares de baixa patente dentro das Forças Armadas passaram a exigir maiores direitos, como salários mais dignos, serviços médicos e assistência a familiares, concedidos generosamente às altas patentes. Marinheiros e soldados eram geralmente oriundos das classes mais pobres do país, com pouca formação acadêmica e sem a consciência dos direitos mínimos à cidadania. Esses soldados e marinheiros eram despertados por lideranças de esquerda, sendo por elas recrutados para a militância.
A questão política a que os militares rasos eram submetidos veio à tona de forma veemente no governo João Goulart. Na época, as baixas patentes não tinham direito ao voto nas eleições, nem a ser elegíveis para qualquer cargo político, contrastando com as altas patentes, que poderiam ser presidentes da República.
Foi neste contexto histórico que iria emergir José Anselmo dos Santos, aclamado líder dos marinheiros no início da década de sessenta. Em março de 1962, foi fundada a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), tendo como finalidade a luta por maiores direitos dos marinheiros. A direção era geralmente entregue a militantes de esquerda, mais politizados e preparados dentro dos quadros das corporações.
Em abril de 1963, Anselmo foi eleito o segundo presidente da AMFNB. Era marinheiro de primeira classe, tendo a patente confundida como cabo pela imprensa, passando a ser denominado Cabo Anselmo. Sem possuir militância nas organizações de esquerda, considerado pouco politizado, Anselmo foi escolhido para presidente da AMFNB por ter uma capacidade intelectual acima da média dos outros marinheiros, em sua maioria muito pobres e sem cultura; cursar o terceiro ano de Direito; além de um carisma nato e eloqüência quase que teatral para falar em público. Pouco se tinha a dizer do seu passado, além de que fora seminarista. Anselmo teria sido recrutado para a Associação pelo suboficial da Marinha Antonio Duarte, militante da esquerda. Em entrevista ao“Jornal Opção”, em 2005, Antonio Duarte declararia que Anselmo preferia falar de poesia que de política.
Com a sua eloqüência discursiva, o Cabo Anselmo passou a ter grande visibilidade como presidente da Associação dos Marinheiros, sendo constantemente assediado pela imprensa, tornando-se um sucesso da mídia de então. Esta ascensão despertou o interesse dos membros do PCB, que avaliavam o cabo como uma nova liderança. Avaliação que seria fatal para centenas de militantes da esquerda. Mesmo diante da relutância de Anselmo em defender qualquer causa ideológica que não fosse de interesse dele próprio, o PCB insistia em apostar na sua liderança ambígua e sem quaisquer propostas. O assédio da imprensa fez do Cabo Anselmo um potente agitador, que nos bastidores dos altos poderes civil e militar, foi tomado como subversor símbolo dos movimentos militares que afrontavam à hierarquia da caserna. As intervenções do Cabo Anselmo passaram a ser exploradas pelos opositores do governo João Goulart, tomadas como expoentes provocadores e desestabilizadores da ordem.
A Hierarquia Militar Ameaçada, Aciona o Golpe de Estado
Além das manifestações dos marinheiros, soldados do Exército também incomodavam a hierarquia militar. Em 3 de setembro de 1963, seiscentas praças da guarnição militar do Distrito Federal insurgiram contra a cassação dos mandatos eletivos dos sargentos Garcia Filho e Aimoré Zoch Cavaleiro, pelo Supremo Tribunal Federal. A legislação eleitoral permitindo o alistamento como eleitores dos sargentos, não reconhecia a sua elegibilidade. Contrariando o estabelecido, Garcia Filho e Aimoré Zoch Cavaleiro tinham sido eleitos deputados e, posteriormente cassados. Os sublevados foram presos e enviados para o Rio de Janeiro, confinados nos porões do navio “Raul Soares”.
Por sua vez, a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, tinha a sua legalidade questionada pelos regulamentos militares. A sua proximidade com a União Nacional dos Estudantes (UNE) e outras entidades consideradas subversivas, incomodava às altas patentes. Em março de 1964, contrariando os seus superiores, que proibiram o evento, os marinheiros promoveram uma solenidade para comemorar o segundo aniversário da AMFNB, no Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro. Em represália, o então ministro da Marinha, almirante Silvio Mota, decretou a ordem de prisão de quarenta marinheiros e cabos que tinham organizado a solenidade. Ao saber da ordem do ministro, o Cabo Anselmo liderou uma rebelião dos marinheiros.
Para conter a rebelião, Silvio Mota deu ordem de invasão ao Sindicato dos Metalúrgicos e, que se retirasse de lá os amotinados vivos ou mortos. Já no local, o almirante Aragão, designado para cumprir a ordem de invasão, não conseguiu cumprir o que lhe ordenara o ministro. O contingente de fuzileiros destacado para a invasão, ao chegar ao sindicato aderiu à rebelião, agravando a situação. O motim provocou a vinda de João Goulart, que estava em São Borja, ao Rio de Janeiro. Quando aterrisou no aeroporto, Jango recebeu o pedido de demissão de Silvio Mota. Para acalmar a situação, emissários do presidente conseguiram convencer os marinheiros a cessarem a rebelião, acordando que os praças seriam removidos para uma unidade do Exército, presos. Após várias horas detidos no Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, os marinheiros foram libertados, saindo em passeata em direção ao Ministério da Guerra. Jango enviou o general Assis Brasil para impedir a manifestação, mas foi em vão. Os marinheiros, liderados pelo Cabo Anselmo, afrontavam a hierarquia militar, pondo em causa a estabilidade do governo e instigando a concretização de um golpe de estado há muito programado pelos militares e opositores ao presidente.
No dia 30 de março de 1964, uma festa do Clube dos Sargentos, considerada outra afronta à altahierarquia, tinha como convidado de honra o presidente. Os ministros militares de Jango eram contra a sua ida ao evento. Mas o presidente já se tinha comprometido com os sargentos. Sua preocupação era a presença do Cabo Anselmo, que diante das manifestações dos marinheiros, tornara-se vitrine para a oposição, o símbolo da subversão conclamada pela imprensa. Sua presença seria constrangedora para o presidente. O general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, garantiu ao presidente que seriam tomadas providências para que a manifestação não sofresse deturpações por parte do Cabo.
A festa do Clube dos Sargentos, realizada no Automóvel Clube, contou com a presença do Cabo Anselmo, apesar de ter sido convencionado que não compareceria. Moniz Bandeira relata em seu livro “O Governo João Goulart e as Lutas Sociais no Brasil”, que o comandante Ivo Acioly Corseuil, subchefe da Casa Militar da Presidência da República, teria avisado João Goulart e ao almirante Silvio Mota que Anselmo, líder do movimento dos marinheiros, era agente secreto, provocador a seriviço da CIA. O relato teria sido feito em uma entrevista de Ivo Acioly Corseuil e do coronel Pinto Guedes dada a Moniz Bandeira.
No evento, Anselmo proferiu um discurso inflamado, escrito por Carlos Marighella, membro do Comitê Central do PCB. No dia seguinte, os jornais traziam críticas hostis ao governo de João Goulart, dando destaque à presença e ao discurso inflamado do Cabo Anselmo. Era o motivo que a alta cúpula militar precisa para agir. No dia 31 de março de 1964, tropas sublevadas da 4ª RM e da 4º DI, comandadas pelo general Olympio Mourão Filho, em Juiz de Fora, Minas Gerais, marcharam para depor o governo. No dia 1 de abril, estava instaurada a ditadura militar no Brasil, decretando entre outras medidas repressivas, o fim das associações de baixa patentes no país, encerrando para sempre, a tradição de luta dos soldados e marinheiros, estabelecida desde a época do Tenentismo.
A Prisão Após o Golpe
Ao subir ao poder, uma das primeiras atitudes dos militares golpistas foi o expurgo dentro da caserna. Todos os militares envolvidos em movimentos considerados próximos à esquerda ou simpáticos ao governo deposto, foram expulsos das corporações, sendo presos e condenados. Cerca de mil e duzentos militares foram expurgados das Forças Armadas em 1964. O Cabo Anselmo, por causa dos seus discursos inflamados, usando o seu poder de oratória para proferir a palavra de ordem de Carlos Marighella e, conseqüentemente, do PCB; por causa da sua exposição na mídia como liderança principal da Associação dos Marinheiros, era o mais visado dos sublevados, portanto um dos primeiros a ter o nome na lista dos cassados.
Após o golpe, Anselmo buscou refúgio na embaixada do México. Segundo algumas versões, teria sido retirado dali pela Ação Popular (AP), que tentara recrutá-lo. Outra vertente afirma que embora sendo um dos líderes marinheiros mais procurados do país, saiu da embaixada, caminhando normalmente, sem ser detido.
Finalmente, quando preso e expurgado da corporação, Anselmo foi isolado no Alto da Tijuca, sendo apresentado pelo regime como troféu. Contraditoriamente, o ex-eloqüente militante não pareceu incomodar o regime militar, ao contrário de outros marinheiros como José Duarte dos Santos e Antonio Duarte, que mantiveram uma resistência clandestina, recrutando marinheiros que possivelmente poderiam vir a insurgir contra a ditadura instalada. A falta de convicção ideológica do Cabo Anselmo gerava uma ambigüidade, que poderia ter chamado a atenção dos seus carcereiros, quando preso. Muitos são os que suspeitam que Anselmo teria sido recrutado pelo regime implantado neste período.
Enquanto muitos marinheiros rebeldes foram atirados às masmorras, sofrendo a retaliação dos seus algozes, o período de prisão do Cabo Anselmo, o líder maior dos rebelados, pareceu tranqüilo no Alto da Tijuca. Segundo Elio Gaspari, em “A Ditadura Escancarada”, durante o cárcere, Anselmo prestava trabalhos administrativos, sendo assistente do único detetive que ali se encontrava. O jornalista afirma ainda, que lhe era permitido sair pela cidade, tendo, numa das saídas, recorrido à embaixada do Chile, a pedir asilo. Quando indagado pelo diplomata chileno de como estava em liberdade, respondera que tinha licença dos carcereiros. Ao fazer tal afirmação, Anselmo teria o pedido de asilo negado.
O Cabo Anselmo fugiria da prisão em abril de 1966. A fuga aconteceu de forma obscura, com uma facilidade jamais esclarecida, tendo-se afirmado mais tarde, segundo algumas versões, de que ele tinha a chave da própria cela. A ambigüidade e falta de transparência durante o período em que o cabo esteve preso, suscita a desconfiança de que teria mudado de lado naquela época.
Outra tese sustentada é a de que Anselmo sempre foi agente infiltrado, sendo orientado a radicalizar as insurreições dos marinheiros, fator que contribuiu para vários setores das Forças Armadas, contrários ao golpe, aderissem a ele, na tentativa de evitar a quebra da hierarquia militar.
Treinamento de Guerrilha em Cuba
Após a fuga da prisão, Cabo Anselmo seria acolhido pela esquerda resistente ao regime. A fidelidade do cabo não sofria quaisquer suspeitas. Dentro da esquerda ele era visto como símbolo de uma resistência. A militância iria dar experiência e consistência à falta de ideologia latente do carismático ex-marinheiro, visto como líder que teria papel fundamental na luta contra a ditadura instalada. Mais uma vez a esquerda errara na avaliação do perfil de liderança ideológica de Cabo Anselmo, apostando em um militante que já tinha sido, era ou seria um agente infiltrado.
O ex-sargento Onofre Pinto, comandava um grupo de ex-sargentos resistentes em São Paulo. Após a fuga da prisão do Cabo Anselmo, o grupo de Onofre Pinto sem ter como escondê-lo, retirou-o do Brasil, levando-o à presença de Leonel Brizola.
Exilado no Uruguai, o ex-governador gaúcho Brizola liderava o Movimento Nacional Revolucionário (MNR), fundado por ele e por um grupo de sargentos que resistiam ao golpe militar. O MNR agregava militares expurgados, nacionalistas e militantes de esquerda, tendo como objetivo derrubar o regime implantado em 1964. Leonel Brizola acreditou que Cabo Anselmo fosse um valente contestador, fiando-se no seu aparente passado de grande líder dos marinheiros. Após passar uns tempos no Uruguai, o cabo foi enviado por Brizola, através do MNR, para Cuba, onde deveria fazer o curso de guerrilha.
Em Cuba, Anselmo não demonstrou grande entusiasmo durante os treinamentos de guerrilha. Mais tarde, declararia que foi durante o aprendizado da guerrilha na ilha de Fidel Castro, que se decepcionaria com a ideologia da esquerda, passando a repudiá-la intimamente. A verdade é que muitos militantes de esquerda desistiram da guerrilha após passar pelo treinamento de suas táticas em Cuba. A visão romântica que tinham da guerrilha diante da crueza da sua realidade fazia com que a abandonassem. Muitos desistiram, mas nenhum dos desistentes usou desta decepção como justificativa para mudar de ideologia e entregar companheiros à tortura e à morte, com exceção do Cabo Anselmo. Os que mais se adaptaram aos treinamentos foram os militares, e Anselmo era supostamente um deles. Por mais que o caminho parecesse sem volta, havia sempre uma opção que não fosse a delação de companheiros, que por mais que pudessem vir a ser desprezados depois de uma reflexão e reavaliação ideológicas, não mereciam ser entregues àqueles que diante dos seus crimes, não estavam dispostos a julgá-los como cidadãos, mas a torturá-los e a matá-los.
Ao voltar de Cuba, com a missão de continuar a luta contra a ditadura militar, Anselmo optara, segundo ele próprio, por repudiar a ideologia que nunca tivera. E a delatar, a levar velhos companheiros a armadilhas mortais.
Neste período, Leonel Brizola, no exílio, desistiu da luta armada como solução para derrubar o regime militar, o MNR acabou. Anselmo teve que se ligar à Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), e à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
A Mudança Oficial de Lado
Ao voltar para ao Brasil, em 1970, Anselmo foi apresentado como quadro de maior confiança dentro da esquerda. Ao ser enviado de volta, tinha como missão estabelecer contato entre as organizações revolucionárias, na época divididas em várias, cada vez mais acossadas pelo regime, tendo a maioria dos seus militantes presos, ou mesmo isolados, sem que se mantivessem em contactos mais permanentes devido à frenética vigilância dos órgãos de repressão.
Anselmo liga-se à VPR, chegando a ter um encontro com o seu líder, o capitão Carlos Lamarca, sendo portador de uma mensagem vinda de Cuba. Anselmo sente-se isolado. Já não tinha os holofotes da mídia como em 1964, deixara de ser o líder dos marinheiros que tanto suscitou platéias de admiradores ou de desafetos. Era apenas um militante clandestino, sem posição de lideranças. Segundo depoimentos de ex-companheiros, a vaidade pessoal de Anselmo era maior do que qualquer resquício ideológico que pudesse ter, e ser apenas mais um militante, longe dos holofotes aos quais estava acostumado, foi um fator decisivo para que se desmotivasse a continuar a vida de revolucionário.
Em São Paulo, tinha tarefas pontuais, como esconder munição e cuidar da obra do aparelho que a VPR construía em Osasco. Para os companheiros era um militante simpático e bem falante.
Se as dúvidas que pairam sobre Anselmo ser um agente infiltrado já em 1964, ou a partir do período em que esteve preso, de 1964 a 1966, o momento em que se tem a certeza da virada de lado, confirmada mais tarde pelo próprio cabo, aponta para 30 de maio de 1971. Na época Anselmo vivia em um apartamento na Rua Martins Fontes, no centro velho de São Paulo. Morava com o militante Edgard Aquino Duarte, funcionário da Bolsa de Valores. Naquele dia de maio os dois foram presos. Duas versões são contadas sobre o que desencadeou a prisão, uma delas afirma que um cheque de Edgard Aquino Duarte foi rastreado pela polícia, levando-a ao endereço na Martins Fontes, chegando também ao clandestino Cabo Anselmo. A versão mais aceita aponta para uma coincidência histórica, perto do apartamento onde foram efetuadas as prisões, no Hotel San Raphael, estava hospedada a seleção feminina cubana de basquetebol, devidamente monitorada por agentes da repressão, posto que Cuba era considerado um país com regime inimigo ao brasileiro. Anselmo teria visitado o local, dando a Margarita, capitã do time, um embrulho contendo um chaveiro para ser entregue a Fidel Castro. O gesto chamou a atenção da polícia, que seguiu o visitante, descobrindo-lhe o endereço e concretizando as prisões dos dois moradores.
Em 4 de junho de 1971, Anselmo prestou depoimento ao temido delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delatando todos os seus contatos, iniciando uma parceria infame, que levaria à morte de vários militantes de esquerda. Em 1984, Anselmo revelou ao repórter Octávio Ribeiro que ao ser preso, foi tomado por um sentimento de consciência e pelo medo de morrer, daí decidiu mudar de lado. Em 1999, em nova entrevista a Percival de Souza, contou outra versão, que foi torturado e, diante do dilema entre morrer e delatar, optou pela segunda hipótese.
O Cachorro Anselmo
Anselmo, já colaborador dos órgãos de repressão, passou a usufruir cela e tratamento especiais no Departamento de Ordem Política e Sócias (DOPS) de São Paulo, tendo acesso livre à sala da direção e até direito a um tear para tapeçaria, podendo exercer um dos seus passatempos preferido. O ex-marinheiro revolucionário tornara-se o mais ilustre “cachorro”, termo usado pelos próprios agentes da repressão aos delatores, de Fleury .
Enquanto aguardava na cela do Dops, os agentes do delegado Fleury montavam um apartamento nas Perdizes, em São Paulo, equipado de microfones e câmeras de segurança, que serviriam para monitorar os convidados revolucionários do ex-marinheiro. Fleury garantiu-lhe ainda, um salário de trezentos dólares, além de proteção total à sua vida, contra quaisquer possíveis retaliações dos companheiros traídos.
Já no apartamento de Perdizes, Anselmo passou a receber os militantes revolucionários mais procurados pelo regime. Coincidentemente, todos os companheiros do Cabo Anselmo começaram a cair nas mãos da polícia repressiva. Entre eles, José Raimundo da Costa, amigo de longa data. Após uma visita a Anselmo, José Raimundo foi apanhando em uma barreira policial. Foi supliciado e morto por seus algozes, sendo enterrado com um nome falso. Ao ser indagado em 1984, por Octávio Ribeiro, de quantos companheiros teriam morrido após suas delações, Anselmo respondeu prontamente: “Umas cem, duzentas”.
O Massacre da Chácara São Bento
A queda de vários militantes após contacto com Anselmo suscita a suspeita da esquerda, que passa a agir com desconfiança. Mas Anselmo mantém a frieza de um grande agente infiltrado, sabendo ser convincente e carismático diante da face daqueles que entregou, entregava ou entregaria.
No meio do furacão das suspeitas, ofereceu-se para ir ao Chile, encontrar-se com o velho companheiro e amigo, o ex-sargento Onofre Pinto, dirigente da VPR. O objetivo da viagem era acertar com o dirigente exilado a instalação de uma base guerrilheira no nordeste brasileiro, especificamente em Pernambuco.
No Chile foi confrontado pelos que tinham a certeza da sua atuação como delator. Diógenes Arruda e Inês Etienne Romeu, que chegou a ser chamada de louca, acusaram-no de traição. Diante de Onofre Pinto e de outras testemunhas, Anselmo faz um grande jogo de cena, depondo a arma sobre a mesa, desafiando o líder da VPR a matá-lo, casa duvide da sua lealdade. Inexplicavelmente Onofre Pinto acredita em Anselmo, quando todos já duvidavam da sua lealdade. A avaliação fatal do ex-sargento passou para a história da esquerda como uma incógnita, levantando várias hipóteses. O fato é que Onofre Pinto e Anselmo eram grandes amigos, sendo que um deles seria friamente traído.
Anselmo voltou ao Brasil com dinheiro dos exilados do Chile para montar um aparelho em Recife. Seguiu para a capital pernambucana ao lado da namorada e companheira Soledad Barret Viedma, a Sol, paraguaia filha de um dirigente comunista do seu país. Os dois passam a viver juntos em uma pequena casa próxima a Olinda, usada como aparelho e, para disfarçar, como loja, onde vendem roupas bordadas por ela e tapetes tecidos por ele. Mas a loja é um fracasso, sendo fechada.
Depois de fechar a loja, Anselmo e Soledad mudaram-se para um apartamento, alugado pelo militante César, que cuidou dos documentos, fiadores e dinheiro para pagar o aluguel, deixando o local pronto para funcionar como célula da organização. O que Soledad não sabia sobre o eficiente César é que era o agente infiltrado do Dops, Carlos Alberto Augusto, que se tornaria um fiel amigo de Anselmo por toda a vida.
Devidamente monitorado pelos agentes da repressão com escutas e outros instrumentos de espionagem, o aparelho incluía além de Anselmo, Soledad e César, os militantes Jarbas Pereira Marques, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, José Manuel da Silva e o casal de namorados Eudaldo Gomes da Silva e Pauline Reichstul; sendo todos seguidos e vigiados sem tréguas.
Os rumores de Anselmo ser um delator tornaram-se certezas. A verdade espalhou-se entre a esquerda, chegando a Recife. Diante de um iminente acerto de contas do passado como revolucionário com o presente como “cachorro”, Anselmo pressentiu que estava acossado. Era preciso que os companheiros fossem todos eliminados, inclusive Soledad. No dia 8 de janeiro de 1973 foi executada a sentença final. A ação entraria para a história com o nome de Massacre da Chácara São Bento, sendo uma das mais violentas e cruéis da ditadura militar. José Manuel, Jarbas, Evaldo, Eudaldo, Pauline e Soledad, grávida de quatro meses de um filho de Anselmo, são brutalmente executados.
Versões Diferentes do Massacre
Mais tarde, ao ser confrontado com a verdade de ter mandado para a morte a companheira e o filho, Anselmo justificou-se mais uma vez de que se não o fizesse, seria morto pelos companheiros que atraíra para a armadilha, a mesma desculpa que dera para justificar o porquê de ser um delator. Novamente o medo de morrer, a vontade de sobreviver dos escombros dos seus mortos, da infâmia em que se fizera atolar como homem sem ética.
Na versão de Anselmo, relatada em 1984, o massacre teria sido deflagrado depois que um irmão de Soledad trouxe de Cuba uma carta cifrada, confirmando o que já se suspeitava, Anselmo era um delator e trabalhava para os serviços de repressão do regime militar. Ele deveria ser justiçado pelos companheiros, pois do ato dependia a vida de muitos.
Anselmo relata que após receber a carta, Soledad saiu para encontrar com Pauline. Tão logo saíra a companheira, ele seria resgatado pelos agentes de Fleury. Anselmo conclui que, só soube do massacre no dia seguinte, pelos jornais. Em 1999 apresentaria uma versão mais detalhada a Percival de Souza. A carta decifrada tinha sido uma sentença de morte, e todos os envolvidos, inclusive César, foram informados da traição, decidindo que ele deveria ser executado em um lugar chamado Chácara de São Bento, periferia de Recife. César ficou responsável por levar o traidor ao destino final. Anselmo acrescenta que quando todos estavam reunidos no local, à espera que chegasse com César para ser justiçado, o capitão responsável pelo cerco, ao rastejar próximo da casa, despertou o latido de um cão. Para calar o animal, o capitão disparou um tiro, iniciando um tiroteio entre os agentes e os militantes. O que não soube explicar é como nenhum agente ficou ferido e todos os companheiros foram mortos. Após o massacre, Anselmo e o agente Carlos Alberto Augusto, o César, foram levados ao aeroporto, onde um avião da FAB esperava por eles. Em nota oficial, divulgado à imprensa, era informado que seis terroristas tinham sido mortos e dois tinham fugido. Era o álibi plantado para Anselmo e César.
A Comissão Nacional de Familiares de Mortos e Desaparecidos, apresenta outra versão do massacre, desmontando a farsa da chácara, em um relatório de 1.200 páginas feito por Iara Xavier Pereira. Os seis executados teriam sido presos no dia 7 de janeiro, em locais diferentes. José Manuel foi autuado em um posto de gasolina; Soledad e Pauline numa butique; Jarbas na livraria em que trabalhava; Evaldo encontrava-se no apartamento de Soledad; a única incerteza é da prisão de Eudaldo, namorado de Pauline, não se sabendo onde foi preso. A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira, amiga de Jarbas Pereira Marques, teve acesso aos mortos, relatando que no dia seguinte ao massacre, foi ao Instituto Médico Legal de Recife, quando soube que ali havia seis corpos a aguardar reconhecimento, sendo a maior testemunha do resultado final do massacre. Em depoimento prestado à Secretaria de Justiça do Estado de Pernambuco, em 1996, ela declararia que vira, horrorizada, o corpo de Soledad Barret Viedma nu e em pé, dentro de um barril, trazia as pernas atoladas em sangue coagulado e no fundo um feto. Os seis corpos estavam desfigurados e apresentando tamanho inchaço, que não cabiam nos caixões.
Para alguns, os corpos foram levados depois de mortos para a chácara. Para outros, depois de supliciados, sequer foram levados para o ambiente rural. A chácara teria sido apenas citada como cenário, sem jamais receber os executados, vivos ou mortos.
Rompido Um Longo Silêncio
O Massacre da Chácara São Bento foi a última missão oficial do Cabo Anselmo. Mesmo com o álibi de que teria fugido e não sido retirado do lugar da chacina, ficara impossível mantê-lo como agente infiltrado nas organizações de esquerda.
O delegado Sérgio Fleury soube ser agradecido ao seu cachorro mais ilustre. Submeteu-o a uma cirurgia plástica, em 1973, dando-lhe um novo rosto, para que não pudesse ser identificado pelos ex-companheiros e fosse justiçado por eles.
Anselmo ganhou uma nova identidade, passando a dar conferências sobre táticas de guerrilha que aprendera em Cuba, e sobre a vulnerabilidade das organizações da esquerda. Nas conferências, aparecia de capuz para que não se lhe identificasse o novo rosto. Sua colaboração com agentes ligados à tortura e a órgãos de repressão não se romperia mesmo depois do fim da ditadura. Há suspeitas de que trabalhou com esquadrões da morte que surgiram de tempos em tempos no cenário da polícia.
Na história da esquerda, muitos foram os que mudaram de lado, entregando companheiros, mas nenhum foi como Anselmo, que com disciplina militar e uso de inteligência investigativa, atraiu os companheiros para armadilhas. Nenhum dos delatores tinha um passado tão digno quanto aquele eloqüente marinheiro que incitou os colegas à insurreição, sendo eles, na maioria, pobres e poucos cultos, sem quaisquer ligações ideológicas. Nos bastidores da esquerda resistente à ditadura, Anselmo passou a ser visto como exemplo da infâmia de um companheiro. Tornou-se o símbolo e mito da traição. Um personagem que não deveria ser esquecido, para que novos militantes soubessem da vergonha moral que um companheiro podia chegar.
Por anos Anselmo manteve-se na clandestinidade. Escondido, como sempre, com medo de morrer por sua covardia perene, de ser justiçado pela família daqueles que mandou à tortura e ao suplício mortal. Em 1984, onze anos depois da última vez que se ouvira falar em Anselmo, ele ressurgiria. Na época, rastreado pela repórter Suzana Veríssimo, soube-se que o ex-marinheiro freqüentava o Dops de São Paulo, sendo sócio do delegado Josecyr Cuoco, em uma agência particular de informações, responsável por relatórios sobre o movimento sindical vendidos às multinacionais do setor automobilístico. Cuoco, ao saber das investigações da jornalista, que se iria transformar em reportagem, teria negociado uma entrevista do sócio com o jornalista Octávio Ribeiro.
A reportagem foi publicada na revista “Istoé”, em um trabalho primoroso de Octávio Ribeiro, conhecido como Pena Branca, dando origem ao livro “Por Que Eu Traí – Confissões de Cabo Anselmo”. Na época, apesar de ter um novo rosto, Anselmo não se deixou fotografar de frente. Ainda temia ser justiçado.
Quinze anos depois, em 1999, Anselmo daria outra entrevista, desta vez ao jornalista Percival de Souza, publicada parcialmente na revista “Época” e em um livro, “Eu, Cabo Anselmo”. Nesta entrevista, o ex-marinheiro deu versões mais elaboradas do massacre em Recife, e novas versões de que começara a delatar porque fora torturado. Nas duas reportagens, não demonstrou arrependimento algum, chegando a afirmar que dormia muito bem.
O Mais Antigo Clandestino
Em 16 de março de 2004, Anselmo apresentou um pedido de indenização que o governo concede aos perseguidos pela ditadura militar. Anselmo alegava que, até 1971, também ele fora vítima da perseguição do regime militar, sendo afastado da Marinha por causa dos seus ideais, portanto sente-se no direito de ser anistiado, reintegrado à Marinha para que tenha o benefício à aposentadoria e à reparação econômica, como foram vários ex-companheiros de luta.
O pedido emperrou, porque o ex-marinheiro, militante revolucionário e, ao mesmo tempo, colaborador de serviços de repressão do regime militar, é considerado clandestino, vivendo sem documentos oficiais desde que foi preso e expulso da Marinha, em 1964.
No dia 30 de julho de 2009, Anselmo fez na 8ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, exame para comparar suas impressões digitais com as que constam nos documentos da Marinha. Não havendo uma cópia de certidão de nascimento nos arquivos da corporação e nos do cartório de Itaporanga d’Ajuda, interior de Sergipe, onde nasceu e foi registrado, Anselmo foi obrigado a passar pela perícia, através de uma ficha individual disponibilizada pela Marinha.
Ao tirar as impressões digitais, que depois de comparadas e confirmadas, voltaria a existir a pessoa física de José Anselmo dos Santos, com direito a ter novamente carteira de identidade, CPF e título de eleitor. Em posse da documentação, Anselmo ansiava pelo julgamento do pedido de reparação protocolado na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em 2004.
O pedido de indenização de Anselmo constrangeu a Comissão de Anistia, gerando grande protesto da esquerda. Conceder benefícios a um homem que traiu todos os princípios que o faz ser candidato à indenização pretendida é paradoxal. Indícios de que Anselmo seria agente infiltrado na época das agitações que ajudaram a deflagrar o golpe militar, em 1964, são investigados. Se comprovados, Anselmo não tem direito à indenização, não cabendo a aplicação da Lei da Anistia a pessoas que atuaram como agentes do Estado, como desestabilizadores de um governo legal, como o de João Goulart, e depois, em um chamado Estado de exceção, eufemismo usado pelo regime militar para amenizar a palavra “ditadura”, ou seja, atuando em uma política de repressão sem reconhecimento do Estado.
Ciente do fato, Anselmo e os seus protetores, velhos aliados dos serviços de repressão, entre eles o eterno amigo e protetor, o delegado do 12º distrito de São Paulo, Carlos Alberto Augusto, antigo agente que trabalhou sob as ordens diretas do delegado Sérgio Paranhos Fleury no Dops de São Paulo, de 1970 a 1977, sendo conhecido na época como Carlinhos Metralha, por ter o costume de andar com uma metralhadora no ombro, ou como César, agente infiltrado no aparelho da VPR em Recife, que terminou com os seus militantes executados em 1973; orquestraram uma volta à mídia.
No dia 30 de agosto de 2009, Anselmo, então com 67 anos, apresentava ao Brasil o rosto que recebera como prêmio da ditadura, pela primeira vez de frente, sem sombras, sem máscaras, que sempre ocultaram a sua face, em uma entrevista dada ao programa “Canal Livre”, na TV Bandeirantes. Com o ato, Anselmo, o último clandestino gerado pelo golpe militar, queria matar de vez o Cabo Anselmo, numa tentativa de mostrar o cidadão José Anselmo dos Santos. O ex-marinheiro apareceu escoltado nos estúdios de televisão, tendo ao lado Carlos Alberto Augusto, constrangendo profundamente os jornalistas.
Durante a entrevista, percebia-se nitidamente que ela fora concedida mediante restrições prévias. Anselmo mostrou-se eloqüente, com os holofotes sobre o seu rosto, algo que tanto o fascinara naquele distante 1964, quando tinha a mídia atenta aos seus atos e discursos inflamados. Apresentou-se como um herói do Brasil, que em determinado momento, descobrira que os revolucionários de esquerda trariam grande mal ao país, e ele defendeu a sua pátria do perigo vermelho. Pouco questionado pelos repórteres, conduziu com maestria a entrevista. Reforçou a versão de que mudara de lado ao ser torturado. Ao fazer tal afirmação, desmontou toda a estratégia, pois não soube sequer descrever um pau de arara, instrumento de tortura do qual se proclamou vitimado. Apontou Fleury como torturador e, pôs por terra toda versão, quando declarou admiração por ele. Anselmo além de não demonstrar as cicatrizes psicológicas que trazem todos os ex-torturados, falou dos seus algozes como amigos dignos de homenagens.
Quanto aos que traiu, como sempre não demonstrou arrependimento. O que mais vinca a moral elástica e o caráter duvidoso do ex-marinheiro não é a falta de arrependimento, mas o total desprezo e desrespeito com aqueles que ele entregou ao suplício e à morte, sem direito a julgamento justo. Desrespeito para com companheiros que mesmo estando a errar em nome de uma ideologia, confiaram nele e perderam a vida sem tempo de saber que eram traídos por alguém que tinham admiração e confiança. Os que sobreviveram a ele puderam desenvolver-lhe ódio, os que sucumbiram, em sua maioria morreram a acreditar no companheiro, por isto mereciam se não o arrependimento, o respeito, não a difamação. Anselmo exaltou os que supostamente o torturaram e difamou os companheiros mortos.
Anselmo, assim como a maioria da juventude militante da sua geração, deixou-se envolver em um turbilhão muitas vezes sem volta. Muitos seguiram o romantismo da militância revolucionária. Apanhados por uma ditadura instaurada, esta juventude resistiu, alguns pegaram em armas, assaltaram bancos, seqüestraram embaixadores. Jovens, em sua maioria com menos de trinta anos, assim como Anselmo, conduziram-se por caminhos violentos, sem tempo de respirar o sonho ideológico que acreditavam, sucumbindo asfixiados pela dura realidade da guerrilha, da tortura e dos fuzis. Muitos, assim como Anselmo, desencantaram-se, questionaram a ideologia. Não poucos foram os que abandonaram a guerrilha. Muitos guerrilheiros, depois de presos, trocados por embaixadores seqüestrados e exilados, deixaram as armas, seguindo caminhos diferentes, sem, apesar da discordância, entregarem à morte os velhos companheiros. Tantos foram os destruídos psicologicamente pela repressão, e, submeteram-se humilhantemente a assinar uma auto-retratação, sendo vistos como covardes, mas bravamente não entregaram um único companheiro.
O caminho foi sem volta para muitos. Anselmo mudou a sua visão, mas não se limitou a abandonar a ideologia, preferiu entregar companheiros. Infiltrou-se, montou ciladas. Visivelmente tornou-se admirado pelos novos companheiros agentes da repressão, mostrou eficiência e competência diante deles.
Tornou-se ídolo entre eles, amenizando o anonimato da clandestinidade que consumia a sua vaidade. Se não fosse admirado, por que Fleury teria a preocupação de modificar-lhe o rosto, gastando em uma cirurgia plástica, já que identificado pela esquerda como delator, não mais servia aos propósitos da repressão? Quantos “cachorros” foram submetidos à plástica estética? Como justificar a presença perene desses agentes protegendo e acompanhando Anselmo por toda a vida?
Ironicamente, Anselmo teve como castigo viver na clandestinidade a maior parte dos seus anos. Se soubesse que os amigos menosprezados retornariam como heróis quando a ditadura fosse extinta, teria traído? Acreditou que quanto mais militantes mandasse para a morte, estaria livre para um dia, sob a proteção dos amigos torturadores, voltar aos holofotes? O fato é que o Cabo Anselmo, que nunca foi cabo, que se fez admirado por uma geração, se não se deixasse levar pela infâmia, poderia ter voltado como herói aos holofotes que tanto o extasiava. Voltou como um ser execrável, que além da admiração de uma contundente minoria de extrema direita emergente nos tempos atuais, é visto como um ser desprezível. Um rosto infame que causa mais mal estar na mídia do que curiosidade. Se por trás desta volta estava uma nuvem para tentar desmoralizar a Comissão de Anistia, com certeza que a falta de verve moral, de veracidade no rosto apresentado, não o permitiu. Anselmo foi o grande erro da esquerda, que investiu em um fantoche, pagando caro pela falta de sensibilidade de análise. É uma página que não se pode virar, é o lado infame da história da esquerda brasileira.
Fonte – Virtuália – O Manifesto Digital