Para estudioso do terrorismo, o regime democrático em que vivemos atualmente ‘não nega necessariamente o uso da força. É preciso estar sempre atento.’
São Paulo – No próximo sábado, 13, o projeto Cine Bijou promove a exibição de A Batalha de Argel, do mestre italiano Gillo de Pontecorvo, que narra os conflitos entre muçulmanos e franceses pela independência da Argélia. O filme será seguido de debate com o professor Reginaldo Nasser, chefe do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sobre as influências que a guerrilha urbana da capital da Argélia exerceram sobre o Brasil.
Militarização dos aparelhos de Estado para lidar com as manifestações populares obedecem à lógica do poder político
Especialista no estudo do terrorismo, Nasser, afirma que na década de 1960, militares franceses que atuaram na guerrilha urbana de Argel, a capital da Argélia, “exportaram” técnicas de tortura para militares brasileiros, num processo crescente que desagua atualmente na truculência com que as forças policiais intervêm nas manifestações populares.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista dada pelo professor à RBA.
Que relação podemos fazer entre o que se passou na Argélia e no Brasil na década de 1960?
A Argélia, como outros países da periferia do sistema, na década de 1950 e 1960, na Guerra Fria, implementou um tipo de resistência chamada guerrilha, a guerra irregular. Em todo e qualquer lugar na “periferia” – seja África, América Latina ou Ásia – onde estava configurado, de um lado, um governo local apoiado por uma grande potência e, de outro, uma resistência nacionalista, esse novo tipo de combate já podia se dar por certo nas ações de guerrilha.
Tanto França quanto Estados Unidos e Inglaterra são grandes exércitos e participaram das grandes guerras, mas tinham dificuldades de lidar com o guerrilheiro. Esse embate estava no Vietnã, na Indochina, na Argélia e, claro, isso veio a acontecer na América Latina, no Brasil, na década de 1960. Ou seja, configurou-se uma situação semelhante. Diante disso, o Brasil também recorreu à “tecnologia e expertise” dos grandes países para lidar com esse tipo de ação de resistência.
No filme A Batalha de Argel, o exército de paraquedistas está voltando da Indochina. Você poderia perguntar: “Eles foram derrotados na Indochina e na Argélia e ainda assim o Brasil vai adotar a técnica dos derrotados?”. Sim, o Brasil recorreu. Dentro desse tipo de repressão, o que chama a atenção na batalha de Argel é o uso da tortura.
Assim como ocorreu no Brasil.
Sim, é provado isso. O Brasil passou a usar os métodos dos franceses, que vinham para cá e instruíram; brasileiros também iam para a França se instruir a respeito dessas técnicas. Foi uma “tecnologia de exportação” da França. No caso de Argel, os militares foram eficientes para desmantelar a organização, por outro lado perderam no que diz respeito à mobilização popular. Hoje em dia, essa tentativa de justificar o terror e a tortura não vem apenas dos militares, vem inclusive das faculdades de Direito. Alan Dershowitz que, por exemplo, é um jurista de Harvard, defende a tortura atualmente. Ela aparece como um meio de evitar um mal maior. Eu destaco um trecho do filme em que o general diz: “Eu sei que das cem pessoas que a gente prende e tortura, 90% são inocentes. Mas o que me interessa é pegar os 10%”. Não importam os meios. Daí vem o argumento: “Se eu pegar os 10%, eles vão me revelar coisas que vão me permitir preservar a vida de milhares”. O argumento é forte.
O uso da violência pela nossa polícia é resquício da ditadura e dessa “expertise” importada da França?
A tortura veio inicialmente para combater o inimigo político. Hoje um cara que comete um atentado não tem mais o estatuto de inimigo político, ele tem estatuto de criminoso. Estamos às voltas de o Brasil colocar o terrorismo no Código Criminal. Essa “tecnologia” passou a ser usada ao longo do tempo de uma maneira indiscriminada pela polícia. Também vemos no filme quando Mathieu diz: “Nós somos militares e estamos fazendo papel de polícia”. Que é outra característica que vai aparecer no Brasil. A tortura começa a ganhar força porque passa a ideia de que é um mal para combater um mal maior. E é uma justificativa que permanentemente se repete
Qual é a importância de rever filmes como A Batalha de Argel hoje em dia?
Um ponto importante que não podemos perder de vista – até por esse momento estamos vivendo a Comissão da Verdade – está numa fala do Mathieu, o general francês: “Eu estou aqui a mando de um governo que foi eleito. E não estou aqui por minha vontade. Vocês querem que a França saia da Argélia? Se a resposta for sim, é preciso aceitar todas as consequências”.
Isso é importante: a ordem é política. Esta exibição [do filme neste momento] é oportuna. As manifestações aqui no Brasil demonstram que existe uma linha tênue, na ação da política, entre a violência e a não-violência. Infelizmente, não são polos completamente opostos.
Você está numa manifestação e de repente, o que num primeiro momento é algo extremamente pacífico, se transforma numa praça de guerra, seja por causa de pessoas que estão ali por outros propósitos ou fundamentalmente pela forma como a polícia age. Isso está no âmago da política.
Muitos colegas meus não concordam com isso. Eu penso assim cada vez mais. Não existe “de um lado a política e de outro a violência”. Tudo muda o tempo todo. Há um mês, por exemplo, eu me lembro que não podia interromper a Avenida Paulista porque isso seria um ato de violência. Na quarta (3 de julho), foram os médicos e no dia seguinte, os delegados.
Eu digo em um artigo que existe o Cratos (poder e força) e o Ethos (ética e responsabilidade). Eles não estão separados, eles se misturam. Mas é preciso um trabalho contínuo para evitar o Cratos porque ninguém fica imune a ele. Enfim, o filme é muito rico para nos mostrar que a face da repressão e do uso desmedido da força não é algo distante. Nós vivemos em uma situação em que temos direito a voto, uma democracia, mas isso não nega necessariamente o uso da força. É preciso estar sempre atento.
Fonte: RBA