Pego de surpresa, governo enfrenta mais uma crise e terá de agir sob pressão pela saída de Paulo Sérgio Pinheiro se quiser retorno de Claudio Fonteles
Paulo Sérgio Pinheiro, Maria Rita Kehl e Arivaldo Padilha em sessão de trabalhos da Comissão da VerdadeA Comissão Nacional da Verdade rachou e chegou ao fundo do poço em decorrência de atrito entre seus coordenadores. O futuro da comissão está na agenda do Palácio do Planalto e deverá ser definido nos próximos dias pela presidente Dilma Rousseff.
Documentos com detalhes da crise chegaram na terça-feira às mãos do chefe de gabinete pessoal da presidente, Giles Azevedo, e sugerem mudanças estruturais no colegiado: o fim do sigilo nas investigações, recomposição de duas vagas na coordenação, reestruturação dos trabalhos e foco na localização dos 142 desaparecidos políticos durante os anos de chumbo.
A crise envolve as substituições do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, e do ex-procurador da República Claudio Fonteles, que abandonou a comissão depois de um forte choque com o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, ex-coordenador e membro do Subcomissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
O conflito surpreendeu a presidente Dilma Rousseff e seus assessores no Palácio do Planalto. Envolvido no esforço para tentar superar a crise política gerada com as manifestações, o governo não havia entendido o ponto principal da crise: um eventual retorno de Fonteles, como querem familiares de mortos e desaparecidos políticos, implicaria na saída de Paulo Sérgio Pinheiro. Para o Planalto, Pinheiro cuidava apenas das atividades internacionais da comissão, mas descobriu-se agora que ele é parte da crise.
Briga e demissão
O racha na CNV foi precedido, há um mês, por um ruidoso bate boca que, por pouco, não terminou em confronto físico entre Fonteles e Pinheiro. Na última reunião com todos os integrantes do colegiado, o ex-procurador apresentaria um relatório criticando contratos feitos em sigilo com três jornalistas que assessoram por fora a comissão. Fonteles nem conseguiu terminar a explanação. Interrompido três vezes por Pinheiro, que ironizou seus argumentos, acabou jogando o papel sobre a mesa.
No auge da discussão, os dois ficaram de pé, irritados e, visivelmente alterados, por pouco não entraram em choque. “Cheguei ao meu limite. Aqui não volto mais”, disse o ex-procurador, que abandonou a reunião diante da perplexidade dos demais membros. Um deles contou ao iG ter tido a impressão de que os dois, conhecidos publicamente pela postura calma e diplomática, partiriam para a briga.
No dia seguinte, com o governo absorvido pela onda de manifestações que sacudiam o País, Fonteles encaminhou uma carta à presidente Dilma Rousseff pedindo exoneração. Antes tentou, sem sucesso, uma audiência. A presidente tinha mergulhado nas ações políticas para tentar contornar a crise e não conseguiria atende-lo.
Os dois divergiam também sobre os rumos das investigações. Autor de vários textos disponibilizados na internet (Exercitando o Diálogo) com atos do regime militar que descobrira no Araquivo Nacional, Fonteles queria que tudo fosse transparente e, nos bastidores, não economizava críticas ao “secretismo” imposto por Pinheiro. Seu argumento era lógico: se não tem poder de punir, a CNV deveria dar transparência às investigações e denunciar os crimes do regime militar a cada descoberta de impacto.
Pinheiro, por sua vez, sempre como uma espécie de coordenador permanente da CNV, ironizava o estilo aberto de Fonteles, sugerindo que ele queria holofotes. Um integrante da comissão chegou a comparar o tratamento de Pinheiro ao ex-procurador como uma espécie de “bullyng” em função das repetidas “caneladas” no companheiro de equipe. Na comissão, no geral, alterna cordialidade com arrogância.
A carta encaminhada ao Palácio do Planalto por grupos de direitos humanos na terça-feira pede explicitamente a volta de Fonteles. Nos bastidores o mesmo grupo torce pela demissão de Pinheiro, condição sobre a qual o ex-procurador não fez segredo nos bastidores da crise.
A operação tem dois obstáculos, segundo apurou o iG : Fonteles deixou a CNV sem antes conversar com a presidente, o que teria desagradado o Planalto; e o governo também resistiria em arcar com o ônus de demitir Pinheiro num momento em que a comissão enfrenta também forte resistência militar, a área mais sensível no caso de uma evolução da crise política. Os rumores sobre uma eventual saída de Pinheiros não são novos: em abril, quando exercia a função de coordenador, o Palácio do Planalto deixou vazar notícias informando que a presidente estava descontente com a inércia da CNV. À época ele considerou a hipótese uma bobagem e afirmou que seu cargo pertencia a Dilma, de quem disse ter a confiança.
Renúncias
O que mais surpreendeu o Planalto e a própria CNV foi o volume de críticas apontando a falta transparência e de rumo das investigações sobre os principais objetivos da comissão cujo papel é reconstituir os crimes da ditadura e apontar o paradeiro dos desaparecidos. Pinheiro sempre defendeu abertamente que o resultado das investigações só fosse conhecido no relatório final. O máximo que concordou foi em apresentar um texto parcial quando a CNV completou um ano.
Os relatos que chegaram ao Planalto apontam como alvos das críticas, além de Pinheiro, outros dois membros do colegiado, a psicanalista Maria Rita Kehl e o advogado José Paulo Cavalcanti, um por ataques a companheiros e o outro por raramente comparecer às reuniões de trabalho. O ex-ministro José Carlos Dias, que acumula o trabalho na CNV com o de advogado, estaria ao lado de Pinheiro. Na semana passada, no meio da onda de manifestações, houve rumor de que os quatro poderiam colocar os cargos à disposição do governo.
No outro lado da contenda, com apoio das entidades de direitos humanos e dos grupos de familiares de mortos e desaparecidos políticos, está a atual coordenadora, Rosa Cardoso, favorável a transparência e aliada de Fonteles. Dipp, afastado por doença, não tomou conhecimento do conflito.
Giles Azevedo deve fazer um relato a presidente Dilma nesta quarta-feira. Os integrantes da CNV acham que o preenchimento das duas vagas pode ocorrer rapidamente, mas não têm qualquer avaliação sobre o destino de Pinheiro, a menos que ele decida se exonerar. A hipótese poderia ser seguida por outros membros e lançaria uma grande incógnita sobre o futuro da comissão.
Para complicar o quadro, a aposta de consenso para substituir Gilson Dipp, o advogado paulista Belisário dos Santos Júnior _ defensor de presos políticos e um dos nomes mais respeitados na área de direitos humanos _ não deu certo. Alegando outros compromissos, Belisário recusou o convite.
O governo agora procura personagens que não tenham sido vítimas da ditadura e nem façam parte das comissões de familiares de desaparecidos, cautela adotada para evitar atrito com os militares. Os candidatos podem nem ser notáveis, mas precisam ter traquejo em investigações, perfil conciliador e comprovada eficiência.
Desaparecidos
O governo quer agir logo para evitar o aprofundamento da crise e justificar a necessidade da CNV, que tem liberdade de ação, status de primeiro escalão na Esplanada e independência orçamentária (são R$ 10 milhões para 2013). O problema é que até agora, 14 meses depois de criada, a comissão tem apresentado pífios resultados e se tornou alvo constante de críticas que partem de todos os lados.
“As críticas são absolutamente justas. Fazem parte das reivindicações por mais democracia no país. Podemos crescer e melhorar ouvindo as críticas”, afirma a coordenadora da CNV, Rosa Cardoso. Ela acha que os familiares de desaparecidos têm razão quando pedem investigações objetivas e transparentes.
Rosa Cardoso não fala sobre as divisões internas, mas reconhece que a CNV precisa ser reestruturada para avançar. Ela prometeu aos grupos de direitos humanos que tornará público todos os atos da comissão (inclusive os contratos com prestadores de serviço), abrirá canais para participação de vítimas na preparação de audiências e dará autonomia aos estados e municípios que quiserem implantar comissões.
Rosa Cardoso acha que o principal obstáculo a ser superado para esclarecer o destino dos militantes de organizações de esquerda é a resistência da área militar em abrir as informações importantes. Ela não acredita que os arquivos tenham sido queimados, como alegam os militares. Lembra que se houve queima, ela não poderia ter sido ordenada ou executada sem um procedimento regulamentar em que os principais relatórios tenham sido preservados em microfilmagens.
Fonte – Agência Brasil