João Vicente Goulart quer do Brasil um gesto de Estado para elucidar a morte do pai
É esperado para os próximos dias o anúncio da data de exumação do presidente João Goulart (1919-1976), deposto pelo golpe de 1964. No governo Dilma, fala-se em receber os restos mortais em Brasília, com honras devidas a um chefe de Estado. Trata-se de elucidar as causas de sua morte em dezembro de 1976, em uma de suas fazendas, na Argentina. Jango voltou ao País no caixão, foi recebido pelo povo de São Borja (RS), sua terra natal, sem ter passado por autópsia. Desde 1980 circulam rumores de ter sido envenenado, fato mais tarde confirmado por um ex-agente.Nesta entrevista exclusiva, João Vicente Goulart, 56 anos, seu filho mais velho e porta-voz da família na longa busca pela verdade, relembra fatos e personagens que situam a morte de Jango no cenário de assassinatos seletivos da Operação Condor – com apoio logístico e técnico de agentes americanos. Acha que a exumação não resolve tudo e que será preciso cumprir o que já foi determinado ao Ministério Público: oitivas e desclassificação de documentos. “Hoje o Brasil deveria tomar uma posição de Estado, indo ao presidente Obama solicitar toda a documentação relativa a seu ex-presidente, confinada em arquivos americanos”, diz, há exatos 52 anos da data em que seu pai assumiu, após a renúncia de Jânio.
Quando a família Goulart passa a questionar a crise cardíaca como razão da sua morte?
Notícias de um assassinato no âmbito da Operação Condor surgem a partir de 1980, no Uruguai. De gente como Enrique Foch Díaz, autor do livro El Crímen Perfecto.
Ele era amigo do Jango, não?
Vendeu terras para o pai, mas era ligado ao serviço secreto. Jango tinha poucos interlocutores com o regime, então preservava esse canal. Foch Díaz era um velho piloto da Força Aérea uruguaia, tinha contato com os militares. Já meu pai era um homem político, sabia conversar com diferentes setores e usar certos canais quando necessário. Pessoalmente, sempre desconfiei do Foch Díaz. Pouco antes de prenderem o Ruben Rivero, que era nosso piloto e viria a morrer depois, de forma bem estranha, meu pai perguntou “olha, Rivero, tu tens alguma coisa a ver com os tupamaros? Se tens, me conta porque estão me pressionando…”. Daí o Foch Díaz aparece naquela situação, dizendo “deixa comigo, presidente, vou apresentá-lo em Boiso Lanza”, que é um quartel da Aeronáutica. E lá pegaram o Rivero. No livro, Foch Díaz fala em envenenamento, no contexto de um complô comercial contra Jango.
E a comissão externa da Câmara, que investigou a morte de seu pai? Que peso teve nessa reviravolta dos fatos?
O artífice dela foi Brizola. Ele pediu ao Miro Teixeira (PDT-RJ) para abrir a comissão. Sua convicção vinha do fato de ter sido vítima de um envenenamento no Uruguai. Passou mal, foi bater no hospital, onde lhe fizeram a lavagem que o salvou. A comissão levantou depoimentos bem importantes, como o do Miguel Arraes e o do Neiva Moreira, que chegou a receber de um agente argelino a lista de nomes dos que cairiam na Operação Condor. Em 2004, quando o Instituto João Goulart iniciou a produção de um filme, fui atrás do jornalista uruguaio Roger Rodriguez, do La Republica, que entrevistara o ex-agente Mario Neira Barreiro, em 2002. Barreiro revelou a ele que monitorava Jango.
E por que a comissão não o ouviu?
Porque quando nós fomos atrás de Barreiro, em 2005, a comissão tinha sido encerrada. Tomamos um longo depoimento dele, eu inicialmente disfarçado de jornalista da TV Senado. Barreiro dizia que “João Vicente não está nem aí para nada, o negócio dele é criar gado no Maranhão…”. Quando é informado de que sou eu quem está lá, e me reconhece, começa a falar muito, por horas. Usamos só um trecho no filme Jango em Três Atos.
Como avalia esse personagem?
Não tenho dúvida de que nos monitorava. A batida de um carro que eu dirigia em Montevidéu, sem boletim de ocorrência, sabia em detalhes. O telefone da fazenda repetia de cor. Agora, sobre a morte de Jango, tem que investigar. Concluímos que era obrigação da família, de posse daquele testemunho, levar um pedido ao então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza: trata-se de esclarecer a morte de um presidente no exílio, derrubado por um golpe em que o Congresso decreta vaga a Presidência da República, estando o presidente ainda em território nacional.
Barreiro está preso no Rio Grande do Sul, por outros crimes. Viu-o depois daquele encontro?
Não. Ele conseguiu passar um e-mail cifrado para mim, via terceiros, dizendo que estava sob risco de morte. Liguei para o então ministro Tarso Genro, da Justiça, contei o caso e parece que lhe deram proteção. Não o vi mais. Voltando à batalha da nossa família: aquele procurador-geral mandou o caso para o MP gaúcho, onde seria arquivado. E só não foi pelo despacho da procuradora-geral dos Direitos da Pessoa Humana, dra. Gilda Carvalho. Ela não só derrubou o arquivamento, como cobrou oitivas dentro e fora do País e acesso a documentos. O Estado tem o dever de investigar até por se tratar da memória de um presidente, portanto, um patrimônio cultural e imaterial da Nação.
E a exumação?
É só um dos meios para investigar. E talvez nem leve a uma conclusão. Já foram chamados peritos argentinos, uruguaios e nós queremos a inclusão de cubanos, por serem altamente capacitados nesse tipo de análise. Laboratórios de fora também participam. Autorizamos tudo, mas cobramos as oitivas dos americanos envolvidos na operação. E a desclassificação de documentos. Assim como apareceu recentemente um documento do Kissinger, confirmando a existência de um processo de eliminação de pessoas no Cone Sul, outros surgirão. Até começo a achar que pode ter alguma coisa nessa exumação, tamanha tem sido a dificuldade de investigar.
Quando seu pai morreu você e sua irmã estavam fora do País?
Sim, em Londres, mas viemos para o enterro. Eu estava lá há mais tempo. Me casei aos 19 anos e fui para estudar agronomia. Depois o pai mandou a Denise, minha irmã, porque as coisas andavam difíceis por aqui – mataram dois amigos dele, Zelmar Michelini e o Gutiérrez Ruíz (senador e deputado uruguaios, respectivamente, exilados na Argentina), um comando entrou no escritório dele, a situação se complicava no Uruguai, na Argentina, já era dura no Brasil, o cerco fechou. Mas documentos provam que Jango queria, então, voltar ao Brasil. Ele já estava fora do País havia 12 anos, quando fora cassado por dez, no entanto (o general) Sylvio Frota dizia que se ele regressasse seria preso imediatamente.
E há relatos dizendo o contrário, que Jango não queria voltar, mas, sim, montar casa fora, provavelmente em Paris.
Ele jogava politicamente. Queria estar em Paris para se reunir com os exilados, tanto que foi ter com Arraes na Suíça. Era presidente, sonhava voltar com todos eles. Disse que retornaria ao Brasil até para ser preso e ver no que dava. Também aproveitaria a onda do Carter, que passou a pressionar ditaduras sul-americanas. Os EUA já pensavam no projeto de globalização, algo que não poderia ser feito com ditaduras, mas governos civis e democráticos, desde que sem nacionalistas no meio. Até o Ted Kennedy anunciou que viria ao encontro do pai, pousando lá na fazenda. Depois, cancelou. E Jango iria aos EUA até para provar que não devia nada a ninguém.
Havia processos contra ele no Brasil?
Sim, muitos. Ele se defendeu em todos. Ao contrário do Brizola, que deixava para lá. Num deles, que corria na cidade de Rondonópolis (MT), onde tinha fazenda de gado, ao não conseguir citá-lo pelas vias normais, o juiz o citou por edital. Jango iria aproveitar isso para entrar no Brasil, afinal, estava sendo chamado pela Justiça. A ditadura ficou em polvorosa…
E a saúde? Tinha emagrecido com uma dieta radical ou estava acima do peso, comendo de forma inadequada?
Era cardíaco. Sofreu um enfarte em 1969, no Uruguai, e se cuidava em Lyon, com o professor Fremont. Fez regime, tomava remédios regularmente, se sentia mais leve. Agora, pergunto: porque era cardíaco não poderia sofrer um atentado? No dia da morte, estava bem. Sobre isso falei com Julio, capataz da fazenda, último a estar com ele. O pai tinha um leilão de gado no dia seguinte. Saiu pelo campo para ver os novilhos, separá-los em lotes. Mais tarde, quando a mãe (Maria Tereza Goulart) foi dormir, ele fez um mate e ficou conversando com o Julio até uma da manhã. Combinaram de sair cedo no dia seguinte. Jango tomou remédios e foi para a cama. Passaram-se 15 minutos. Minha mãe percebeu um ronco forte. Ele pegou o travesseiro, abraçou-o com força e afrouxou em seguida. Já não respirava.
Barreiro explicou, didaticamente, como o veneno teria sido misturado ao remédio: troca-se só uma cápsula do frasco, ficando as demais intactas. Esses frascos ficavam onde? Com Jango? No Hotel Liberty, em Buenos Aires?
Ficavam no Liberty quando chegavam da França. Tinha uma pessoa em Paris que se encarregava de comprá-los. E despachava para o hotel, porque ficamos um tempo vivendo lá até comprar apartamento em Buenos Aires. Era um ponto de encontro de Jango com os amigos. Diz Barreiro que a troca foi feita no Liberty. Meu pai pegava os frascos e os distribuía – deixava uns em Buenos Aires, outros em Montevidéu, outros nas fazendas, outros com ele… Enfim, haveria um araponga infiltrado no hotel.
E o Agente B, de que se fala no filme Dossiê Jango?
Essa figura misteriosa chegou a tirar coisas das gavetas do quarto de meu pai, depois informando ao SNI: “Ontem, clandestinamente, estive na casa do presidente João Goulart e subtraí: carta de Juan D. Perón, carta de Ulysses Guimarães…”. Relacionava documentos pessoais, documentos de terras, itens roubados do nosso apartamento no Uruguai. Também tem a ver com o Agente B o envio ao SNI das fotos do último aniversário de Jango. Ou era alguém próximo, já que os convidados posam para a câmera, ou as imagens foram desviadas na fase da revelação. Os presentes foram todos enumerados e identificados para o SNI.
Na representação ao MP, a família pede o testemunho dos estrangeiros ligados à Operação Condor.
Antes que morram todos! Em 1992, o bioquímico chileno Eugenio Berríos, da Dina (polícia política de Pinochet), morreu com duas balas no crânio: uma do exército uruguaio, outra do exército chileno. Era o homem do Projeto Andrea (que produziu venenos e até gás sarin para eliminar opositores de Pinochet). Frederick Latrash está vivo. Foi chefe da CIA em Montevidéu. Eu o denunciei porque, como não se soubesse o paradeiro dele, descobri que era assessor do Senado americano e até fez a campanha do McCain. É um homem de Estado. Quando conversamos com o Peter Kornbluh (autor do livro The Pinochet´s File), ele mesmo diz isso. Michel Townley está nos EUA. Começou como agente da CIA no Chile, foi para a Bolívia, mudou-se para o Uruguai e terminou no Brasil, na abertura. Passou por todos os golpes, é uma fonte fundamental.
E a participação do delegado Sérgio Fleury, do Dops-SP, nos fatos?
Queremos ir atrás disso. Ele andava no Uruguai desde 1972, período em que o movimento tupamaro crescia. Era uma guerrilha urbana, num país pequeno. Não resta dúvida de que foi chamado para ensinar como eliminar por tortura. Fleury tinha conhecido aqui o Dan Mitrione (agente americano que atuara no Brasil, depois no Uruguai, sendo morto por tupamaros), então tudo se conecta. Veja o caso de Cecília Herber, esposa de um senador uruguaio. Em 1978, chegam caixas de vinho para três líderes do Partido Nacional, um deles, o senador Herber. Cecília foi a primeira a provar de uma garrafa. Caiu fulminada. O suspeito é Carlos Miles, químico que, em agosto de 1976, meses antes de meu pai morrer, reunia-se na chefatura de polícia de Montevidéu com Latrash e o Fleury.
O establishment brasileiro ainda teme João Goulart?
Os 50 anos do golpe (1964-2014) vão trazer uma reflexão que já começou na academia, porém o medo é que chegue ao povo. O que se ensina de Jango nas escolas? Nada. Fala-se em reforma do Estado. O que é isso? Reforma agrária, tributária, urbana, educacional, as mesmas que ele propôs há 50 anos e não andaram. Quando fez o Plano de Diretrizes Orçamentárias dedicava 12% dos recursos para educação – hoje não temos 3%. Jango comunista? Onde já se viu comunista com tanta terra? Ou distribuindo terra com título de propriedade? Se fazia um governo fraco, por que não se esperou a eleição que estava prestes a acontecer? Um dia um jornalista indagou: “Presidente, o senhor não acha que o País ainda não estava preparado para as reformas?” Ele respondeu: “Não acho. Senão não estaria aqui, no exílio”.
Fonte – Estadão