Apoio da mídia à ditadura militar

O jornal O Globo publicou editorial em que faz uma espécie de “mea-culpa” pelo apoio dado ao Golpe de 1964, que estabeleceu a ditadura militar no Brasil, regime que, nos 21 anos seguintes, promoveria perseguições políticas, torturas e assassinatos de cidadãos brasileiros, deixando profundas marcas e sequelas até hoje difíceis de sanar em nossa sociedade.

O editorial foi uma iniciativa acanhada, considerando-se que o “erro” reconhecido no texto é atribuído ao “contexto histórico” —e considerando-se o quanto de seu crescimento as Organizações Globo devem ao regime militar, pareceria que levou ao atual perfil monopolista do setor de telecomunicações brasileiro. Assim, é importante que o papel da mídia na ditadura seja debatido e exposto às claras, discussão deveria ser objeto da Comissão da Verdade.

Não se trata de promover uma caça às bruxas ou um linchamento público e muito menos de censurar ou cercear de alguma forma a atuação, hoje em dia, dos vários grupos de mídia que apoiaram o golpe em 1964 e ajudaram a sustentar a ditadura militar até 1985. A liberdade de imprensa é um valor consolidado da democracia brasileira, pela qual lutei acompanhado por muitos de minha geração —liberdade fustigada à época pelo posicionamento que, hoje, O Globo diz reconhecer ter sido equivocado.

Mas é em nome da liberdade de imprensa que devemos nos aprofundar em descobrir quais interesses motivaram a atuação pró-ditadura dos jornais brasileiros. Afinal, muitos dos jornais que ainda exercem grande influência na opinião pública —o próprio editorial de O Globo cita O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo— tiveram voz ativa na defesa das arbitrariedades militares. Não é um caso de interesse público saber o quanto das motivações daquela época ainda influenciam a atuação desses jornais até hoje? Os brasileiros não têm o direito de conhecer o histórico e os interesses dos veículos de comunicação que usam para se informar?

Esconder os detalhes de como operava a grande mídia brasileira na ditadura só ajuda a minar a credibilidade da nossa imprensa. Como o chamado Quarto Poder, com a missão auto-avocada de fiscalizar os demais Poderes, pode ser exercido por empresas que não praticam a transparência que tanto cobram do restante da sociedade? A perda de credibilidade e a desmoralização da grande mídia, reforçada por sua postura contrária a governos populares na última década, é a verdadeira ameaça à liberdade de imprensa. Se a população não enxergar na imprensa uma defensora legítima de seus interesses, a liberdade de imprensa e a própria democracia se enfraquecem.

Até agora, as empresas de comunicação têm reconhecido seu envolvimento na ditadura militar de forma enviesada. O Globo diz que, no “contexto” de 1964, o golpe —que destituiria do poder o presidente legítimo e estabeleceria um regime responsável por implantar o terror de Estado— era “visto pelo jornal como a única alternativa para manter no Brasil uma democracia”. Ou seja, o jornal reconhece o “erro”, mas se diz defensor da democracia e responsabiliza as vítimas do golpe, como o presidente João Goulart, pela radicalização política que, segundo O Globo, gerou a ação dos militares. Um “mea-culpa” incomum, já que a culpa está sendo atribuída à vítima do erro.

Com os outros veículos não é diferente. A Folha de S.Paulo, por exemplo, já reconheceu que apoiou o golpe, que se submeteu sem contestação à censura pós-AI-5 e que alinhou a Folha da Tarde à repressão à luta armada. Mas, sobre os relatos de presos políticos de que carros de entrega do jornal eram usados por agentes da repressão, a Folha não nega, nem confirma —apesar dos registros fotográficos. Limita-se a dizer que “sempre negou ter conhecimento do uso de seus carros para tais fins”. Por que não tirar essa dúvida de uma vez por todas? Por que não colocar 1% de seu ímpeto investigativo para esclarecer um episódio definidor da própria história do jornal?

 

Enquanto os veículos de comunicação contarem sua história pela metade, apenas por meio de notas oficiais, edulcorando seu papel na época da ditadura, sua credibilidade será sempre colocada em xeque. Debater abertamente o assunto por meio da Comissão da Verdade é a maneira mais honesta de cicatrizar essa ferida na democracia brasileira, para o bem da liberdade da imprensa e da história.

 

Fonte – Diário da Manhã

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