Hélio tem até hoje, alojada no corpo, a bala que quase tirou sua vida. Eva lutou muito para deixar de ser “a filha do homem que morreu na greve” e se tornar professora e psicóloga pós-graduada. Aloisio busca saber sobre o massacre para descobrir quem era o pai que ele não conheceu. Maria volta no tempo todo dia 7 de outubro.
Cada uma das 18 vítimas e testemunhas que prestaram depoimento hoje à Comissão Nacional da Verdade na audiência pública sobre os 50 anos do Massacre de Ipatinga sentiu de maneira diferente os efeitos das rajadas de metralhadora desferidas por policiais militares, na porta da Usiminas, numa manhã fria e chuvosa de 7 de outubro de 1963, contra milhares de trabalhadores que protestavam contra a violência empregada pela polícia e seguranças da estatal contra os funcionários da companhia nos alojamentos da empresa.
Assim como em 1963 hoje choveu no Vale do Aço, a região de Minas Gerais em que fica Ipatinga. Apesar disso, a água não intimidou que idosos entre 60 a 90 anos dessem seus testemunhos. Cada um deles trouxe para a audiência as marcas do massacre que ficaram em seus corpos e mentes.
O caso é investigado pela Comissão Nacional da Verdade, pois a CNV apura as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. O evento foi co-organizado pelo Fórum Memória e Verdade do Vale do Aço e teve a participação da Comissão da Verdade do Estado de Minas Gerais que cooperará com a CNV no restante das apurações.
“O Massacre de Ipatinga foi legitimado pelos governos militares, pois foi na ditadura que o que foi apurado no inquérito policial militar foi julgado e os policiais indiciados, absolvidos”, afirmou Rosa Cardoso, coordenadora do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical, responsável pela investigação sobre o massacre.
Segundo Rosa, o caso “é exemplar para a história do movimento operário e da classe trabalhadora brasileira, pois aprofunda o caráter de classe da ditadura e o quadro de injustiça social do golpe que ocorreu meses depois. Os trabalhadores eram tratados como animais naquela época, mas hoje continuam sendo tratados como cidadãos de terceira classe. Se o massacre tivesse ocorrido contra a classe média, o tratamento que ele teria recebido seria completamente diferente”, afirmou.
Membro da Comissão da Verdade de Minas Gerais, o ex-metalúrgico e jornalista Jurandir Persichini Cunha sentiu três vezes a violência: primeiro como testemunha da violência nos alojamentos, depois ao escapar dos tiros na porta da siderúrgica e, pela última vez, como jornalista sindical. “Em 1967, trouxe de Belo Horizonte para Ipatinga exemplares do jornal A Verdade, com matéria sobre os 4 anos do massacre. Por isso, fui preso e torturado”, afirmou.
Rossi do Nascimento afirma sentir-se incomodado por trafegar há 35 anos pela avenida Magalhães Pinto (governador de Minas Gerais e, portanto, comandante da PM na época do massacre) toda vez que vai ao cemitério lembrar do pai, José Isabel do Nascimento. Funcionário de uma empresa terceirizada da Usiminas, o pai de Rossi é o autor de uma das imagens icônicas daquela manhã: a de um PM em cima da carroceria de um caminhão, empunhando uma metralhadora. Ele morreu dez dias depois, em consequência dos ferimentos sofridos. “A Usiminas, aqui na nossa região, mandava prender e mandava soltar, só que nesse dia mandou matar”, disse.
TRAUMAS – Lutar todos dias com a lembrança e sobreviver foi o resumo da vida da professora Eva Reis. “Eu era a filha do homem que morreu na greve. Foi assim que eu fui conhecida durante muitos anos”, contou. Ela é filha de Antônio José dos Reis, morto com um tiro na nuca quando fugia do local em que tombaram a maior parte dos mortos oficiais, no antigo portão dois da Usiminas. “Não é uma alegria estar aqui. É um sofrimento, mas é um compromisso. E eu acredito que quando a gente faz uma reflexão sobre a história, a gente não pode modifica-la, mas pode mudar o presente”.
De forma parecida reagiu Maria Conceição Felipe Ferreira, que perdeu o pai, Alvino Ferreira Felipe, aos 15 anos e teve que tornar-se a responsável pelo sustento da família. Segundo ela, a Usiminas ajudou com uma cesta básica até que seu irmão mais novo completasse 18 anos, quando a ajuda teria sido “convertida” em um emprego para este irmão.
Aloísio Souza de Jesus e Cruz só descobriu o massacre em 2005, quando saiu à procura da família de seu pai, em busca de suas raízes. Pela mãe soube apenas que o pai, que havia deixado a família em busca de melhores condições de vida teria morrido nas mãos de um sargento. Após muita pesquisa encontrou na Bahia duas testemunhas da morte do pai dele, Jesulino França de Souza. Eles contaram que Souza foi executado por um PM durante a fuga dos trabalhadores da usina após os disparos. O corpo da vítima, entretanto, nunca foi encontrado e não faz parte da lista oficial de mortos no massacre. Na sua busca, Aloísio descobriu que inúmeros nordestinos deixaram Ipatinga após a chacina com medo da violência da empresa e da polícia.
Conceição Maia Ribeiro Flávia também reclama um desaparecido, seu irmão João Flávio Neto. “Ele saiu de casa para trabalhar no início de outubro de 1963 e nunca mais voltou”. Neto também não está na lista de mortos oficiais.
Apesar de tantos relatos de morte e dor, alguns tiveram sorte e bom humor. Foi o caso de Hélio Mateus Ferreira, cuja carteira de couro, no bolso de trás da calça, impediu que ele se ferisse com gravidade. Até hoje Ferreira convive com um bala alojada no corpo e com as lembranças da velha carteira de couro marrom e forro vermelho de cetim, guardada com carinho. “Guardei parte do dinheiro que havia na carteira também, as notas miúdas, pois as grandes eu gastei”, disse.
RESPOSTAS E DÚVIDAS – A Usiminas e a Polícia Militar de Minas Gerais foram chamadas pela CNV para prestar esclarecimentos na audiência. O representante da companhia siderúrgica, privatizada em 1991, Afonso Celso Flecha de Lima Álvares não respondeu as questões da Comissão e da Comissão da Verdade de MG, mas disse que a empresa está comprometida em ajudar. “A Usiminas não se furtará a prestar informações e já pedimos que o RH e os arquivos façam uma busca em torno de documentos que possam esclarecer os fatos”, disse Álvares.
De toda forma, Alvares levou para a empresa a lista de pedidos de informações da CNV e aa Comissão de MG: lista dos 47 feridos diretamente contratados pela Usiminas, lista dos feridos atendidos no ambulatório da Usiminas, nota fiscal dos caixões comprados pela empresa e os pedidos de sangue para as vítimas nos hospitais, lista de empresas terceirizadas que trabalhavam para a Usiminas na época, arquivos da vigilância privada da Usiminas, lista de contratos e acordos da empresa na época, cópias de escrituras de todas as áreas relacionadas ao massacre, arquivos produzidos em 63 e posteriores, que continuam na empresa, sobre o massacre.
Já o coronel Eduardo César Reis, representante da Polícia Militar, entregou à CNV cópia do inquérito policial militar que tramitou entre 1963 3 1964. Segundo o coronel, a Polícia Militar de Minas Gerais indiciou 20 policiais no IPM e encaminhou os resultados da investigação à Justiça Militar em 1964. Nenhum policial, porém, foi condenado pela Justiça.
A CNV fez também uma série de requisições à PM. O objetivo dos pedidos feitos ao comando da PM e à companhia é tentar obter mais informações sobre o massacre. Sabe-se que pelo menos 32 caixões foram encomendados pela companhia, pois uma testemunha relatou isso ao jornalista Marcelo Freitas, autor do livro “Não Foi por Acaso”, sobre o morticínio.
Entretanto, alguns dos depoimentos prestados à CNV indicam que o número de vítimas pode ser muito maior e que a violência na empresa não se restringiu ao seu período de formação da Usiminas e que houve muitas prisões e monitoramento após a implantação da ditadura.
Jarbas da Silva, que trabalhava no almoxarifado da Usiminas, acredita que mais de 80 pessoas teriam sido assassinadas no massacre. Ele estava dentro da empresa no momento do tiroteio e afirma que pessoas também morreram na fuga, afogadas no rio Doce.
“O massacre não foi só no dia 7. Era uma constante no nosso dia-a-dia. Vínhamos trabalhar durante o dia, sonhando à noite com nossa família longe, mas eles montaram um quartel aqui, um laboratório da ditadura”, afirma José Horta de Carvalho, sobrevivente do massacre. Segundo ele, a PM fazia parte do cotidiano da empresa, revistando empregados na saída dos turnos e perseguindo-os até o alojamento.
Seu depoimento é corroborado por Jurandir Persichini e pelo historiador Edivaldo Fernandes. Ambos relatam que as agressões e humilhações praticadas por policiais e seguranças eram comuns e que atingiram seu auge na véspera do massacre, quando a cavalaria invadiu o alojamento dos trabalhadores, prendeu mais de 170 deles, os agrediu e os humilhou.
A promiscuidade entre a PM e a empresa era grande e confirmada até por colaboradores de ambas, caso do motorista Clay Villian, apesar de negada pelos representantes da empresa e da PM hoje na audiência. Ele admitiu que seu caminhão, destruído pelos manifestantes após o massacre, foi contratado pela Usiminas, 40 dias antes, e “fichado na empresa exclusivamente para atender a cavalaria da PM”.
Fonte – Comissão Nacional da Verdade – Assessoria de Comunicação