Cid Benjamin, que lança o livro ‘Gracias a La Vida – Memória de um Militante’, fala ao iG sobre os anos de chumbo e conta que morte do embaixador ‘chegou perto’
Cid Benjamin de volta ao ‘ratão’, solitária onde ficou preso no Dops durante a ditadura. Eduardo Sarmento/DivulgaçãoAos 65 anos, o jornalista Cid Benjamin decidiu, finalmente, romper o silêncio com um sóbrio e vibrante relato ligando os tenebrosos anos de chumbo à política atual no livro “Gracias a La Vida – Memórias de um Militante” (Editora José Olympio), a ser lançado na próxima terça-feira, no Rio.
Militante da linha de frente das ações mais significativas da luta armada, preso, torturado, banido do país, Cid admite, 44 anos depois, que a morte do ex-embaixador americano Charles Burk Elbrick havia sido decidida dentro do planejamento do sequestro, ocorrido em setembro de 1969. Ele não deixa dúvidas que a decisão era para valer.
Ficha de identificação de Cid Benjamin na polícia, em maio de 1970
“Resistiríamos a qualquer tentativa de invasão. E isso chegou perto de acontecer. Se o cativeiro fosse invadido ou nossas reivindicações não fossem atendidas, o embaixador seria executado”, conta o ex-guerrilheiro em entrevista ao iG .
O plano surgiu “num estalo”, fruto da casualidade, quando Cid e o jornalista Franklin Martins, ex-ministro de Comunicação do governo Lula, ambos do grupo armado do MR-8, caminhavam pelas cercanias da residência do embaixador, na Rua Marques, em Botafogo, e viram o diplomata passar num carro oficial sem escolta.
O relato de Cid Benjamin liga episódios dos últimos 50 anos como um roteiro político, de onde não escapam nem casos escabrosos, como o sequestro e a morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel, em janeiro de 2002, que ele apurou como repórter da grande imprensa: “O problema é que o partido trabalhou com mafiosos”, diz.
Confira abaixo a entrevista.
iG – Por que o senhor demorou 43 anos para contar sua participação na luta armada?
Cid Benjamin – Precisava amadurecer. Acabou sendo uma feliz coincidência porque esse tema voltou à tona com as Comissões da Verdade, o livro do Marighella (Carlos Marighella, criador da Ação Libertadora Nacional, ALN, biografado por Mário Magalhães) e a jornada de manifestações de junho. O livro é resultado de um processo de amadurecimento e de reflexão. Não queria escrever, mas muita gente cobrava. As condições objetivas só se deram agora.
iG – Por que o senhor conclui afirmando que a guerrilha foi um erro?
Cid – Não digo que a guerrilha não tenha sido ilegítima porque pegar em armas contra um regime de opressão é inteiramente legítimo. O problema é que naquelas condições, num país como o Brasil, a guerrilha não tinha condições de crescer e criar um fato. Ela estava fadada ao esmagamento e ao isolamento. E foi o que aconteceu. Mas eu separo essa questão da legitimidade da luta armada, que afirmo e defendo, da decisão política de recorrer a ela. Politicamente foi uma decisão incorreta. Nossa derrota não se deu por problemas ocasionais. Naquelas circunstâncias não tinha condições de crescer e derrubar a ditadura.
iG – De quantas ações armadas o senhor participou?
Cid – De vulto, creio que entre 10 e 15. Mas houve muitas outras porque para cada ação era necessário roubar carros, armas. Havia também ações em porta de fábrica. Depois que fui preso, disseram (polícia e justiça) que entre o sequestro, roubo a bancos e carros de valores, foram entre 10 e 15. As de menor vulto foram tantas que não dá nem para contar.
iG – Ao se referir ao caso do sequestro do embaixador Charles Elbrick, o senhor afirma que ele seria morto se a repressão invadisse o cativeiro. Quem faria isso e como isso foi discutido?
Cid – Não chegamos a discutir quem o executaria. Naturalmente, nós resistiríamos a qualquer tentativa de invasão e ele seria executado, mas não havia alguém com essa incumbência. E isso chegou perto de acontecer. O que fizemos foi discutir antes da ação: se o cativeiro fosse invadido ou nossas reivindicações não fossem atendidas, ele seria executado.
iG – Quais foram os momentos mais tensos antes do desfecho do sequestro?
Cid Benjamin lança o livro ‘Gracias a la vida – Memórias de um militante’. DivulgaçãoCid – Nós achávamos que a casa estava sendo vigiada, mas a repressão tinha uma percepção muito clara de que não deveria invadir para não colocar em risco a vida do embaixador. Tanto é assim que, já no primeiro dia, a ditadura leu o nosso manifesto, respondeu que aceitaria as condições e, no final, soltou os presos. O trabalho dela foi mais de campana, com uma vigilância discreta. Nós também tínhamos consciência que a situação poderia mudar a qualquer momento, mas a vigilância era discreta, eles olhando de longe, ainda que um deles (suposto agente) tenha tocado a campainha da casa (da Rua Barão de Petrópolis, em Santa Tereza, no Rio).
iG – A escolha do embaixador americano foi mesmo uma casualidade?
Cid – Essa acabou sendo a ação mais espetacular, mas não foi a mais complicada ou a mais difícil. Essa ação se deu por uma coincidência. Nós estávamos caminhando, eu e o Franklin Martins (jornalista e ex-ministro da Comunicação no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), na rua em que se deu o sequestro, a Rua Marques, quando o embaixador passou. E o carro tinha até bandeirinhas, ele sozinho como passageiro, sem segurança. Então deu o estalo. Outro fator que pesou é que meses antes o embaixador americano na Guatemala havia sido metralhado pela guerrilha. Então quando o carro passou nós pensamos: esse cara está dando mole. Só que (ao contrário da Guatemala) achamos que era mais vantajoso em vez de um atentado contra a vida dele, sequestrá-lo, o que nos pareceu factível, como de fato foi.
iG – Por que a opção pelo sequestro?
Cid – A Justiça Militar era inteiramente submissa aos órgãos de repressão. Houve casos em que as audiências foram suspensas para que os presos fossem levados ao porão e espancados para que admitissem as acusações que estavam negando. Eu, por exemplo, afirmei no depoimento que havia marcas de tortura e nem assim a Justiça permitiu que houvesse exame de corpo de delito. Meu irmão, Cesar, que quando preso era menor de idade, foi considerado maior por conta de um laudo médico falso aceito pela Justiça Militar. De justiça não tinha nada.
iG – O que o sequestro representou para a guerrilha?
Cid – Foi aberto um caminho. Diante da submissão da Justiça Militar, a gente tinha a preocupação de libertar os presos que estavam sendo torturados e mortos, e outros sendo condenados a penas altas. No nosso caso, a preocupação era libertar o Vladimir Palmeira (à época o mais representativo líder estudantil), trocando-o pelo embaixador. Mas aí a gente viu que diante daquela “moeda de troca” era muito pouco pedir só o Vladimir. Poderiam entrar outros presos na negociação.
iG – Qual o papel de líderes como João Goulart, Leonel Brizola e Miguel Arraes no pós-1968? Eles deixaram a esquerda armada sozinha?
Cid – Esses líderes estavam todos exilados. Houve uma certa subestimação, como se a história da revolução fosse começar depois do golpe de 1964 com a nova esquerda. Então havia uma certa desvalorização desse segmento. Chegou-se a pensar que a derrota da esquerda se deu quando esses grupos armados foram destruídos, quando na verdade a derrota estratégica se deu em 1964, que se tratou de um processo mais poderoso e mais forte, e não na destruição dos grupos armados. Mas isso era parte da nossa visão míope e um tanto centrada.
iG – Vocês chegaram a se sentir abandonados?
Cid – Não, porque não havia qualquer compromisso de nos estenderem a mão. Imagino que alguns marinheiros e sargentos que participaram da guerrilha de Caparaó (primeiro movimento armado, entre 1966 e 1967, organizado por Brizola na divisa entre Espírito Santo e Minas, sufocada), por exemplo, podem ter ficado com algum tipo de ressentimento. Esse não era o nosso caso. Como não tínhamos nenhum acordo com eles, também não tínhamos do que reclamar.
Cid Benjamin no Galeão, ao voltar ao Brasil, com sua filha Ana Sommer e as ex-presas políticas Jessie Jane e Iná Meireles. Divulgação
iG – Passadas mais de quatro décadas, o que está faltando para virar a página? Que contribuição esperar da Comissão Nacional da Verdade?
Cid – Falta uma coisa central: abrir os arquivos das Forças Armadas. É uma queda de braços e os governos Lula e Dilma esbarraram nessa argumentação deles (militares) de que não há arquivos, que foram destruídos, queimados, etc, quando se sabe que qualquer documento oficial não pode ser destruído assim. Tem que haver uma ordem de destruição, um responsável, como e onde foi feito. Os arquivos existem e podem dar respostas a muita coisa, como as mortes de Juscelino (Kubitschek), do Jango e o caso dos desaparecidos políticos, para se saber onde foram parar os restos mortais.
iG – O que essa lacuna ainda representa?
Cid – Isso é uma coisa da maior importância para as famílias. Durante muitos anos e até há pouco tempo, as famílias sequer mudavam de endereço porque os filhos desaparecidos conheciam aquele endereço. Em datas festivas como Natal, Ano Novo e aniversários, sempre que se fazia uma festinha na família, ficava uma cadeira vazia em volta da mesa, na esperança de que a pessoa desaparecida pudesse chegar. Era uma tortura permanente para as mães. A localização do paradeiro é um direito da família e da sociedade também.
iG – Que papel a Comissão Nacional da Verdade pode desempenhar nesse sentido?
Cid – O trabalho da comissão não é olhar para trás. A gente só olha para trás para adquirir anticorpos e evitar que as coisas se repitam. Não é para revanchismo ou estigmatizar as Forças Armadas, que são instituições permanentes e necessárias ao país. Ninguém quer achincalhar as Forças Armadas, mas elas têm de compreender também que numa sociedade democrática é inaceitável que continuem mantendo versões tipo a de que o jornalista Vladimir Herzog se suicidou. É preciso que elas ajudem a recuperar a verdade histórica para que essa barbárie não se repita.
iG – Como fazer isso?
Cid – Gosto de citar o exemplo do Mandela, que esteve preso por 27 anos, 13 deles quebrando pedra, a maior parte do tempo em solitária, isolado. Ele foi barbaramente torturado porque era o chefe máximo do setor armado da CNA. Quando libertado, tinha tudo para uma vendetta, mas demonstrou uma grandeza de caráter e personalidade, e apresentou um projeto de anistia que abarcava os próprios torturadores e assassinos. Mas com uma condição: que eles fossem ao tribunal e dissessem tudo o que fizeram. Qualquer crime omitido poderia dar margem a processo, condenação e prisão. O objetivo era tirar debaixo do tapete as coisas todas, o que é mais importante do que a punição. Houve então uma catarse e na África do Sul foram criados anticorpos para que essa barbaridade não se repita.
iG – Como acha que devem ser tratados no Brasil os torturadores?
Cid – Sou favorável à punição dos torturadores porque o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. Se eles tivessem sido punidos, não teríamos o caso do pedreiro Amarildo, torturado e morto aqui no Rio de Janeiro. Mais importante que a punição é a abertura dos arquivos e o conhecimento pleno do que aconteceu.
iG – O atual governo tem vontade política para tirar esse esqueleto do armário?
Cid – Não, mas não acho que seja questão de vontade. Não vejo disposição de fazer barulho ou comprar briga com as Forças Armadas. O comandante em chefe das Forças Armadas é a presidente da República. Caberia a ela exigir a abertura dos arquivos. Ninguém com mais de dois neurônios acredita que os militares destruíram os arquivos. Isso não existe. Arquivo é informação, informação é poder e está nas mãos das Forças Armadas. Mexer nisso é criar uma área de atrito. E uma das características tanto do governo Lula quanto do de Dilma é não mexer com os interesses dos poderosos. E isso vale para as Forças Armadas, bancos, agronegócio, empreiteiras etc.
iG – Você foi barbaramente torturado. Ficou algum acerto de contas para trás?
Cid – Guardar rancor (citando Buda) é como segurar carvão em brasa nas mãos: você é quem acaba se queimando. Não tenho acerto de contas a fazer e não guardo rancor nem dos meus torturadores. Minha avaliação é política.
iG – Na segunda parte do livro, entre outros assuntos, você trata do caso Celso Daniel (ex-prefeito de Santo André, sequestrado e morto em 2002). O que você acha que houve?
Cid – A novidade que o livro traz talvez seja a sistematização do caso Celso Daniel. Listei os sete casos de pessoas que foram mortas depois dele e que estão relacionadas ao crime. Nenhum dos casos é avulso. Não sei por que não fizeram essa ligação. Minha conclusão é a do Ministério Público: não me passa pela cabeça que ele possa ter sido morto a mando de alguém do PT, mas sim que o PT trabalhava com mafiosos, gente do esquema do roubo. O caso virou um incômodo para o PT.
Fonte – IG