“Temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!”

Com estas palavras, proferidas quando da promulgação da Constituição de 1988, Ulysses Guimarães amaldiçoou a ditadura, para todo o sempre. Ele, o líder da oposição brasileira, que lutou como ninguém contra o regime militar e sofreu todo tipo de violência como anticandidato a presidente da República, não poderia encontrar momento mais edificante do que a oportunidade que a vida política lhe proporcionou de orquestrar o reencontro da Nação com seu povo. Ergueu as mãos e com elas o pequeno exemplar da Carta de alforria da sociedade, em encontro histórico com as mais justas e sentidas aspirações nacionais.

Antes, articulador maior da eleição do presidente  Tancredo Neves, diante da morte trágica do líder mineiro, Ulysses já havia recusado a cadeira presidencial. Na ocasião, quando o poder lhe caiu no colo, resistiu à tentação, não obstante instado a assumir o comando do País por muitos de seus pares no parlamento brasileiro. Defendeu a posse de José Sarney, visto com maus olhos por todos que sempre se opuseram à ditadura e pelos próprios militares, que o consideravam um trânsfuga, fato que o deixou àquela altura inteiramente dependente do aval político de Ulysses Guimarães.

Caminhos tortuosos e coisas da política colocavam de repente nas mãos de um antigo prócer do regime militar, ex-presidente do partido do golpe, todo o processo de recondução do País ao regime democrático. Ulysses, como velho navegador – que enfatizava a necessidade de navegar sempre, compreendeu o momento delicado da crise, com o inesperado desaparecimento de Tancredo,  e segurou o mandato de Sarney. Ele, que já tinha perdido a chance de governar São Paulo,  durante o período Juscelino, paulista das antigas hostes do PSD e correligionário do presidente de Diamantina, também deixava escapar por entre os dedos a oportunidade de dirigir o Brasil. Mais tarde amargaria uma derrota dolorosa, ao perder em colocação vexatória a disputa pela curul presidencial, já em plena abertura democrática.

Bem, o regime de liberdades está aí e seus alicerces foram sem dúvida plantados por Ulysses, desde suas primeiras intervenções contra a ditadura, como deputado federal, até chegar à presidência do MDB/PMDB, ocupada após a renúncia de Oscar Passos, gaúcho-acreano, o primeiro político a presidir o único partido de resistência ao golpe, tão logo instaurado o bipartidarismo. Pois bem, vencida a ditadura e aprovado o Estatuto da Nação, será que a democracia que temos hoje é a mesma que foi tantas vezes sonhada por Ulysses, que abominava o autoritarismo em todas as suas formas. Será que o calejado timoneiro aplaudiria os rumos tomados pelo atual sistema político no Brasil? Não creio. No quadro atual, Ulysses estaria na oposição, ferrenha e ao seu estilo, combatendo a democracia de balcão, do “franciscanismo” congressual do é dando que se recebe, verberando contra o aviltamento da classe política, que alcança níveis de despudor jamais imaginados.

Como democrata visceral, sempre comunguei da expressão de asco pela ditadura proclamada pelo ‘senhor diretas’, aqui e alhures, em qualquer lugar do mundo. A ditadura me causa arrepios, desde sempre. Lá atrás, ainda muito jovem, nos idos de 1964, fui uma de suas vítimas, como tantos outros da minha geração.

No entanto, o que sempre me inquietou, agora mais do que nunca, é uma indagação que me faço com frequência e apreensão: como compatibilizar um projeto sério de desenvolvimento econômico e social do país com o regime democrático? Como instaurar a moralidade frente à orgia de gastos públicos no parlamento brasileiro? Como superar a política de coalizão lulo-petista-dilmista na montagem de maiorias de sustentação do governo, em troca de vantagens imorais custeadas pelos cofres da Viúva? Como conter a voracidade na criação de legendas partidárias de aluguel? Como pôr cobro a corrupção que enlameia a alma da sociedade e se espalha como metástase pelo corpo da Nação? Como estabelecer procedimentos que respeitem a meritocracia, contra o aparelhamento do Estado pelo partido que empolga o poder central?

Não há comedimento no uso do dinheiro do contribuinte. Amplia-se o que não merece ser ampliado e gasta-se à tripa forra. É a farra permanente. Ninguém ousa discutir o tamanho do Estado mastodôntico e de suas instituições, enquanto tudo se ajeita no interesse das elites sedimentadas com as rédeas do País nas mãos.

Apenas um exemplo, pequeno mas bastante emblemático. Encontra-se em gestação a criação de um fundo que deverá assegurar aposentadoria polpuda e precoce aos deputados estaduais amazonenses. Trata-se de mais um privilégio escandaloso, a ser instituído sem nenhuma justificativa, talvez tão somente para diferenciá-los dos pobres diabos que ficam do outro lado da arquibancada. Claro que financiado por todos nós, sob o silêncio e a omissão conivente de quem deveria impedir que tamanho disparate venha a se concretizar.

É o retrato do Brasil atual. Como tenho observado nas páginas do Facebook, mais grave é que já há quem tenha saudades da ditadura, frente a tantos desmandos e inversões de valores. Apesar dos pesares, um equívoco grosseiro e dos mais lamentáveis.

 

 

Por Paulo Figueiredo

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