Há 30 anos morando na França, a arquiteta e urbanista baiana Maria José Malheiros decidiu, tardiamente, reabrir o processo de anistia, concedido em 1979 a todos os brasileiros punidos pelo regime militar, e pedir a regularidade definitiva de sua identidade.
“Nesses anos tive a sensação de ser uma pessoa em pedaços. Uma pessoa com três vidas”, declarou ela, que optou por adotar o nome usado na clandestinidade.
A identidade resgatada encerra 40 anos de constrangimentos e medo de ser descoberta. “Tinha muita dificuldade em falar de número, de guardar a data de nascimento, a não original”, conta Maria José.
Num depoimento emocionado concedido ao A TARDE, ela define como “muito especial” o dia 24 de outubro de 2013, data em que foi anistiada pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça.
“Pela primeira vez na minha vida eu caminhei em São Paulo, sozinha. São Paulo para mim era uma cidade do medo. Mas tinha um sol belíssimo naquele dia; achei a cidade linda”, descreveu.
A vida no subterrâneo
Terceira filha de uma família de seis irmãos, Maria Neide Araújo Moraes só tinha cinco anos quando os pais decidiram se mudar de Palmas de Monte Alto, no interior da Bahia, para Goiânia, a capital de Goiás.
Aos 17 anos, já aluna da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Goiás e contratada como chargista do jornal O Popular, experimentou, naquele 8 de setembro de 1968, o clima de repressão e medo no qual o País mergulharia nos anos seguintes.
“Fui presa na véspera do meu aniversário, em razão de manifestações estudantis. Depois fui colocada para fora do jornal por conta de uma charge sobre censura”, diz Maria José, lembrando que o jornal foi fechado duas vezes pela polícia por charges feitas por ela.
Expulsa da universidade, enquadrada no decreto-lei 477 (o AI-5 das universidades baixado pelo presidente-militar Artur da Costa e Silva contra culpados de subversão ao regime), ela foi sequestrada em casa, por agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social).
Integrando os quadros da AP (Ação Popular Marxista Leninista) e percebendo o agravamento da repressão em Goiânia, foi emancipada pelo pai, já que não tinha completado os 21 anos, e se mudou para São Paulo. Foi trabalhar no Banco Itaú, em 1971, onde atuou como digitadora de dados. Temendo ser presa, deixou o banco. Foi então enquadrada no caso de abandono de emprego e passou para a clandestinidade.
“A situação política era muito mais dura no País naquela época. A repressão era violentíssima, então qualquer tipo de atuação era punido com prisão”, relata ela. “Tive que abandonar a minha casa mais uma vez, meu companheiro (Heládio José de Campos Leme) ficou preso durante um ano, e eu tive que ir embora para o Rio de Janeiro”.
Seis meses depois Maria José, já filiada ao PCdoB, veiopara a Bahia. Foi morar em Vitória da Conquista com o comunista e militante político de esquerda José Novaes, que a adotou como filha legítima.
Ela, então, que já abdicara do “nome original”, Maria Neide, passou a se chamar Maria José Novaes. “Fiquei em Vitória da Conquista um ano e três meses convivendo com a família de José Novaes num bairro muito pobre”. Nessa época, lembra ela, o seu companheiro, pai de seu filho mais velho, saiu da prisão. Eles então decidiram voltar a São Paulo.
Mas Maria José Novaes, assim como Maria Neide, também era procurada pelas forças da repressão. O PCdoB chegou a sugerir para ela ir para o Chile, destino buscado por vários comunistas brasileiros nos anos de chumbo. Mas ela decidiu ficar e voltar a Goiânia clandestinamente. “Minha mãe me registrou, novamente. Me colocou entre dois filhos, na vaga do filho que tinha morrido, com o nome de Maria José Malheiros. Mudei novamente de idade e de nome”.
Em setembro de 1973, decidem recomeçar a vida em Salvador. Com a certidão de nascimento, conseguiu fazer uma carteira de trabalho. Volta a Goiânia, em 1975, para fazer novo documento de identidade. “Passei a trabalhar e tentar viver uma vida clandestina, porém, mais próxima da normalidade”.
Em 1976 fez o supletivo, passou no vestibular de arquitetura da Ufba e ficou grávida. “Foi um ano muito pleno para mim”. Na universidade, ela militou no movimento estudantil e atuou na campanha pela anistia, ao lado de companheiros como José Sergio Gabrielli, Emiliano José, Oldack Miranda, José Carlos Zanetti, Milton Vasconcelos, Javier Alfaya, Lídice da Mata, Péricles Souza e Jorge Almeida.
Em 1982, já separada do seu companheiro, foi para a França fazer doutorado. Conheceu o atual marido, com quem vive há 30 anos e teve outro filho. Mas a “crise de nome e de idade” enfrentada todos os anos fez com que a engenheira de vias urbanas da prefeitura de Paris negociasse, há dois anos, uma licença não remunerada para retornar ao Brasil, requerer a anistia e regularizar sua identidade.
“Na França continuava clandestina. O fato de ter dois nomes não adiantava. Tinha sempre que tomar cuidado, esses medos de ser descoberta. Esta anistia me permitiu isso. Hoje eu não preciso esconder mais para os outros quem sou”, diz ela, que até dezembro, quando retorna a Paris, continuará dando aulas na Faculdade de Arquitetura da Unifacs em Salvador.
Fonte – A Tarde