Jango e a história contra as carpideiras da ditadura

João Belchior Marques Goulart era cardíaco? Todos sabemos que sim! Daí para apenas ter morrido de problemas do coração tem uma longa distância. Jango foi envenenado? Pouco sabemos sobre isso! Daí para não ter sido assassinado tem outra longa distância.

O que historiadores e quaisquer uns não podem é fazer exumação histórica apriorística. Nem cair em simples teorias da conspiração, muito menos dizer que é apenas “ato político” querer saber mais sobre o que aconteceu.

Mas ainda existem os “quaisquer uns” que, saudosos dos tempos de 1964 a 1985, como carpideiras, choram e lamentam a Ditadura perdida, utilizando os meios de comunicação liberais e conservadores para dar vazão cotidiana à defesa do passado perdido, o mesmo passado que querem manter intacto diante da memória, da justiça e da História.

Na atual conjuntura, quando os restos mortais de Jango retornam a Brasília com as honras civis e militares que nunca deveriam ter sido abandonadas, vociferam seus ranços reacionários contra a exumação do ex-presidente, repetindo suas cantilenas anticomunistas, antipetistas, antitrabalhistas, anti tudo que soa popular e transformador, quase no mesmo diapasão de 50 anos atrás, quando João Goulart foi derrubado pelo Golpe de 1964.

Em Zero Hora, na edição de 16 de novembro de 2013 (nº ), na seção “Do leitor”, em resposta para a pergunta “A exumação dos restos mortais de João Goulart pode esclarecer a causa de sua morte?”, muito do pensamento conservador sobre Jango e sobre questões do passado e do presente foram ali expostos, como veremos a seguir: a) “É pura politicagem, com o objetivo de iludir o cidadão. O socialismo do PT mira o passado para empanar os seus insucessos no governo” (Elói Laufer); “É claro que tem tanta coisa acontecendo neste Brasil que precisa ser vista e querem mexer com coisa lá do fundo do baú, só pra gastar dinheiro público. Bem coisa do PT, mesmo.” (Ernildo Heitor Agostini Filho); “(…) temos um governo esquerdista e revanchista que está preocupado unicamente em colher dividendos políticos, como demonizar ainda mais o Exército e o regime militar. Dar força ao socialismo e afirmar a suposta luta contra a ditadura, tornando os terroristas heróis e os militares bandidos.” (Vilson Pereira Leite); “(…)ninguém me tira da cabeça que a família, se confirmado o caso de envenenamento, não medirá esforços para ganhar uma boa grana com indenização. Além das promoções pessoais em cima do caso.” (Pedro Gama); “A conta maior para o povo pagar virá assim que “constatarem envenenamento/assassinato” do fumante, beberrão e comedor de churrasco gordo, o ex-presidente João Goulart” (Silvino Huppes).

Na Folha de São Paulo, edição on-line de 13 de novembro, nos comentários de várias matérias sobre a exumação do presidente Jango em São Borja (RS), assinadas por Felipe Bächtold, os comentários de leitores (na verdade, seus pseudônimos) seguiram o mesmo conteúdo anti-governo e anti-Jango: a) “(…) A Dilma deve estar feliz com o que está acontecendo hoje no nosso país. Criar inimigos, culpar as elites, dividir a nação, jogar a culpa nos outros é fácil.”; b) “O desespero “bate à porta” desse desgoverno corrupto e incompetente… Ao invés de promover ações positivas em prol de melhoras na infra-estrutura do País, o “petê” prefere se vingar olhando o passado. Quem será punido? algum militar que fez parte do período 1964/1985 está vivo??? Geisel??? Médici? Costa e Silva? Castello Branco? ninguém… é apenas para justificar a ineficiência e esconder a corrupção do pior e mais corrupto governo do Brasil… O “petê”…” (Maquiavel); c) “Com todo respeito que tenho pelos fantásticos profissionais do circo, isto é mais uma palhaçada deste governinho mequetrefe que tem o Brasil !”; d) “Quê fim levou a mega fazenda que ele tinha no Uruguai? Ou vão dizer que era “pobrinho”? A viúva já está recebendo pensão de aprox. R$ 28.000,00 / mensais além da mega indenização. A farra com o nosso suado dinheiro de impostos.” (Moa); e) “Cada vez mais eu sinto saudades do Regime Militar e tenho nojo deste populismo de esquerda.”; f) “Repito o que disse… que fez Jango em termos de crescimento para o Brasil? Absolutamente nada… foi manipulado de todas as formas possíveis e imagináveis pelos sindicatos. Exatamente como hoje ocorre com os sem terra, os sindicatos, as Ongs enfim, os mesmos que tentaram “tomar o governo à época”, hoje o efetivamente tem. Jango não tinha peito para governar… deixou que fizessem a bagunça que fizeram. O resultado foi março de 1964.”; g) “Quem vai custear essa “operação? E se acharem veneno muda alguma coisa? O País está na mão de revanchistas.”.

Sempre se superando, o blog do arauto do conservadorismo, Reinaldo Azevedo, porta-voz dos signatários cotidianos do Partido da Imprensa Golpista não poderia ficar atrás. Em postagem de 14 de novembro, “A exumação de Jango: em vez de pensar em 2064, país de volta para 1964. Vamos aplaudir um século de atraso!” o jornalista da reação deu a linha: “Leitores cobram que eu escreva sobre a exumação dos restos mortais de João Goulart. Escrevo, sim, embora, confesso, certas coisas me provoquem uma imensa preguiça(…) É claro que se está tentando exumar a história para tentar, mais uma vez, recontá-la aos olhos dos vitoriosos e oportunistas de agora. Não é isso o que se pretende com a dita Comissão da Verdade? Nesse caso, reparem: as chamadas vítimas da ditadura as reais e as criadas por mistificadores já obtiveram (ou estão em vias de) a reparação. O estado já reconheceu as suas “culpas”. Notórios militantes de ideologias facinorosas posam por aí de heróis da resistência — quando seu repúdio à democracia era evidente. Assassinos ganham pensão. Não deixa de ser um desrespeito à memória das verdadeiras vítimas a vizinhança com aproveitadores. Mas não entrarei nessas minudências agora. O fato é que as reparações estão dadas. Mas isso não basta: é preciso inventar também uma narrativa oficial sobre aquele passado; é preciso escrever uma história que consagre a luta do Bem (as esquerdas e seus associados; o populismo doidivanas de Goulart é um “associado”) contra o Mal. E então se vai lá desenterrar os ossos do ex-presidente. Não há um só indício crível, uma só nesga de evidência, um só elemento plausível — além do depoimento de uma figura suspeitíssima — que sugiram que Jango possa ter sido envenenado. Aliás, se foi — e isso teria se dado por intermédio da troca de remédios —, então se deve supor que alguém da sua intimidade compactuou com a tramoia. Remédios são coisas mais ou menos íntimas, não? (…) Que risco real Goulart representava ao regime militar em 1976? Tinha planos de voltar para o Brasil? Pretendia retomar a luta política? Ele, que não se mobilizou para sufocar um golpe dado em câmera lenta — a fase aguda começou no dia 29 de março a só chegou ao ápice a 1º de abril —, pretendia retomar a um Brasil absurdamente diferente daquele que abandonara 12 anos antes? (…) Ocorre que exumar os restos mortais de Goulart alimenta a fantasia da luta das “forças populares” contra as “forças da reação”, do “nós, os bons”, contra “eles, os maus”; dos supostos defensores dos interesses nacionais (hoje, como na ditadura, fartamente financiados com dinheiro público) contra os vendilhões da pátria… Vale dizer: desenterram-se mortos, embalados por teorias conspiratórias meio alucinadas, para, de fato, servir aos interesses dos vivos — no caso, de vivaldinos.

Ademais, cumpre perguntar: o político João Goulart fazia mesmo o perfil do herói? O presidente de 1964 se encaixava no figurino de um defensor da democracia? Era zeloso com as instituições? Dosava, então, ousadia e prudência no melhor interesse da população? O líder deposto em 1964 respeitava as instâncias representativas e o estado de direito? Ora, tenham paciência, não é!? Ainda que não houvesse condições de se instaurar a tal República Sindicalista que muitos temiam, o fato é que investiu, com energia e determinação, na República Baguncista. Afirmar que os militares deram um golpe para preservar a democracia é, obviamente, uma tolice. Sustentar, no entanto, que Goulart fosse um democrata é tolice de igual tamanho. Em 1964, a democracia foi abandonada à própria sorte. Faltavam forças relevantes que a defendessem. O mais patético nessa conversa, caso nos fixemos na história das ideias, é que o petismo, que está a sustentar essa patuscada toda, se constituiu na contramão de tudo aquilo que Jango representava. Em algum momento da história, o PT representou um sinal de aggiornamento, de modernização, quando se toma o varguismo como referência. O partido, também nesse particular, mudou. E, como não poderia deixar de ser, para pior. O Brasil deveria estar pensando em 2064. Mas está ocupado em rever 1964. Na prática, um século de atraso.” (Grifos meus).

Em seguida, começam alguns dos regurgitamentos de seus asseclas: a) “O Jango é a Inês de Castro da esquerda tupiniquim. Aquela palhaçada de receber os restos mortais com honras de chefe de Estado, nada mais é que uma tentativa ridícula de fazer militares que nem eram nascidos naquela época beijar a mão do cadáver. (…) (Marcos); “Sabe o que é mais curioso, Reinaldo? O governo, por meio das bolsas Capes, financia centenas de “pesquisadores” alinhados ao pensamento da esquerda para, pelo mundo científico, reescrever a história e “dar a sua contribuição ao debate” sobre os descalabros da ditadura militar. Nenhum deles consegue emplacar sua versão, a não ser na banca de defesa e na versão que fica a empoeirar nas prateleiras das bibliotecas. Ou eles são muito incompetentes ou estão errados, como estão também as comissões da verdade.” (Thalita); c) Estão gastando uma fábula de dinheiro para exumar esse canalha que levou o Brasil ao caos. Em vez de perícia brasileira, vieram peritos de Cuba! Dilma recebeu esse resto de resto, com pompa e circunstância em Brasilia, ao lado daquela bovarista da Maria Tereza que recebeu uma enorme Bolsa Ditadura que só os grandes ladrões internacionais conseguem. São riquíssimos. Agora só vejo fotos deste verme sorrindo. Quanta enganação … da Comissão da Verdade, um marco de vergonha em nossa história. Dilma “está levando” do pessoalzinho antigo dela, do Brizola e seu PDT? Lula sabe de alguma coisa? Se alguém neste mundo cooperou para a morte deste traidor da pátria, deveria ganhar um prêmio.” (Marcos F.).

Mas, depois dos delírios ideológicos e revisionistas conservadores e das mais profundas ignorâncias políticas citados acima, voltemos a História. Desde 1976, pairam dúvidas sim sobre o fim do político nascido em São Borja e único ex-presidente da República a morrer no exílio. Primeiro dos filhos, João Vicente e Denise, depois dos netos, especialmente Christopher Goulart, mais recentemente da própria viúva, Maria Thereza. Durante esse tempo todo, de muitos brasileiros.

O fato é que Jango, constitucional e legitimamente eleito, foi deposto SIM por um Golpe Civil-Militar, o de 1964. Derrubado sim pelos que não queriam reformas de base (agrária, tributária, urbana, administrativa, universitária, financeira, etc.) e que instrumentalizaram o mais primário anticomunismo e o surrado lema recorrente dos liberais conservadores brasileiros, o “mar de lama” (no mesmo diapasão de 1954, contra Getúlio Vargas). Por isso, basta ver as frases das três fontes acima, compará-las com os discursos da imprensa pré-Golpe de 1964 e veremos a coincidência nada casual.

A Ditadura temia sim que Jango liderasse uma resistência institucional. Sobretudo, após a criação da Frente Ampla, em 1966, defendendo uma articulação político-eleitoral contra os golpistas. Se após o Golpe, Jango já era um dos dez maiores inimigos dos golpistas (junto com Carlos Marighella, Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, João Amazonas, Miguel Arraes, Francisco Julião, Jacob Gorender e outros), com a Frente Ampla esta distinção aumentou.

Hoje, com a abertura de muitos arquivos, sabemos mais e como a Operação Condor, articulação terrorista de Estado, atuou sim nos países do Cone Sul, com a ajuda da CIA e do Departamento de Estado dos EUA, co-construtores das Ditaduras de Segurança Nacional efetivadas no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, no Chile…

É plausível então que Jango possa não ter tido uma morte por ataque cardíaco, correto? Afinal, até sobre Carlos Lacerda (1975) e Juscelino Kubistschek (1976), os outros dois criadores da Frente Ampla, há desconfianças em torno de suas mortes. Como saberemos mais disso sem a exumação de João Goulart, a exemplo do que foi feito recentemente no Chile, com Salvador Allende e Pablo Neruda? A dúvida é da família Goulart, é de muitos brasileiros.

Somente por isso, a exumação, começada em 13 de novembro de 2013, e a investigação que se seguirá já se justificam. Queremos a verdade e, como disse a ministra Maria do Rosário, “custa bem menos que uma ditadura”!

Sim! Este é um direito da família e da História, para que não se esqueçam, para que nunca mais aconteçam as censuras, os exílios, as torturas, as mortes e os desaparecimentos. Para que a memória daqueles tempos sim nos ajude a consolidar nossa frágil democracia e para que o legado daqueles que lutaram para mudar a realidade do Brasil 50 anos atrasadas entrem definitivamente para a porta da frente da História, lugar mais que merecido para Jango, diferentemente do que pensam os arrogantes e covardes que se escondem nas redes sociais destilando seu costumeiro ódio de classe.

Receber honras cívico-militares em Brasília é pouco para o que sim deveria ter sido feito há vinte e sete anos atrás, em 1976, quando a Ditadura golpeou pela segunda vez a memória e a História de Jango.

 

 

* Artigo ampliado a partir de “É um direito da família e da história”, publicado como “Opinião” no Diário de Santa Maria, ano XII, n. 3.552, 14/11/2013, p. 6.

 

Fonte – Vermelho

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