Diretas Já em Curitiba
O PMDB, que esteve à frente daquele movimento, reunia então, pelas contingências da época, uma confederação de tendências políticas em oposição à ditadura – dos comunistas ainda clandestinos e demais (e amplos) segmentos de esquerda e centro-esquerda à conservadores que desejavam a volta da democracia. Ali estavam tanto lideranças progressistas como a do ex-governador pernambucano Miguel Arraes, quanto personalidades que, após transitar pela luta contra a ditadura, e até flertar com a esquerda, viriam a se perfilar com a onda neoliberal iniciada em meados dos anos 1990, a exemplo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do senador Álvaro Dias, este último um ardoroso oposicionista aos governos Lula e Dilma. Álvaro, na época do comício, dirigia o PMDB paranaense.
Em 2010, inclui esse importante capítulo da história política brasileira no livro “Sonhos, utopias e armas”, que produzi para a Secretaria da Cultura do Paraná. Sob o título “Diretas Já! Curitiba sai na frente”, o capítulo vai publicado a seguir, com alguns ajustes e complementações.
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Um primeiro grande comício pela volta das eleições diretas para Presidente da República, ideia perseguida pelo Deputado Ulysses Guimarães, Presidente do PMDB. Profético, ele vislumbrava naquele final de 1983 um país maduro para deixar, finalmente, a ditadura para trás.
Mergulhado na inflação e na recessão econômica, o Brasil assistia ao lento esgotamento da ditadura já a partir do final da década anterior. Pela primeira vez após o golpe de 1964, o movimento operário voltara a articular-se, tendo agora como centro o poderoso ABC paulista. Os estudantes expunham abertamente suas entidades – a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Nacional dos Estudantes Secundaristas (UBES). Os partidos de oposição se fortaleciam, sindicatos e entidades de classe ganhavam força e expressão política.
O regime – ou o Sistema, como se dizia então – fora derrotado fragorosamente nas eleições de 1974 e, a despeito dos casuísmos da época, a oposição elegeu bom número de senadores em 1978. A pressão popular forçou a concessão da anistia em 1979, exilados retornaram ao país e, em 1982, importantes estados da federação elegeram governadores oposicionistas: Franco Montoro, em São Paulo; Tancredo Neves, em Minas; Leonel Brizola, no Rio de Janeiro; José Richa, no Paraná, entre outros. E o Presidente da República, General João Figueiredo, dizia gostar mais do cheiro de cavalo do que do cheiro de povo.
No início de 1983, o então senador Teotônio Vilela, usineiro alagoano que apoiara o golpe de 1964 para, anos mais tarde, converteu-se à luta democrática, defendeu num programa de TV a constituição de um movimento nacional pelas eleições diretas para presidente da República. Seguiram-se algumas manifestações esparsas: em Abreu Lima (PE), Goiânia, Teresina, Ponta Grossa (PR) e São Paulo, onde o PT reuniu, em 27 de novembro, 15 mil pessoas num comício diante do estádio do Pacaembu. Coincidentemente, nessa data morreu o senador Vilela, figura emblemática da luta pela anistia em 1979, e que lutava contra um câncer. Os comunistas, apesar de ainda estarem proibidos de se organizar em partido próprio, se lançaram ardorosamente na campanha, nela articulando, simultaneamente, a luta por sua legalização.
Hora da mudança
O Deputado Ulysses Guimarães percebeu que a hora da mudança final havia chegado. Não mais avanços parciais, localizados, mas a substituição completa do regime militar pelo democrático. Caminho sem escalas, nem percalços. Então consultou o Presidente do PMDB do Paraná, o jovem senador Álvaro Dias, sobre a possibilidade de realizar-se um primeiro grande comício em favor das eleições diretas em Curitiba. Talvez julgasse temerário promovê-lo num centro maior, Rio ou São Paulo. O PT já havia promovido um, em 27 de novembro, reunindo cerca de 15 mil pessoas em frente do estádio do Pacaembu, em São Paulo. Bom sinal, mas 15 mil pessoas para São Paulo ainda era pouco. O primeiro comício da campanha por iniciar-se deveria ser impactante. Quem sabe o modesto espaço curitibano fosse mais seguro, valendo-se do prestígio do governador José Richa (pai do atual governador paranaense Beto Richa) e do Prefeito Maurício Fruet (pai do atual prefeito da capital Gustavo Fruet), ambos do PMDB.
“Eu, como Presidente do partido no Paraná, me dispus a organizar o evento”, recorda-se Álvaro Dias. “E o fizemos em 12 dias”, completa. O próprio governador José Richa, um dos ícones da oposição à ditadura, tinha lá suas dúvidas. A ditadura ainda vigia, embora agônica, Curitiba, segundo Richa, não tinha tradição de grandes comícios e, para complicar, as férias de verão haviam carregado metade da cidade para o litoral. “Mesmo assim, assumi a responsabilidade. Combinei com o Richa que ligaria a ele para dizer como estava o evento. Dependendo do número de pessoas, ele apareceria”, conta Álvaro.
Povo na rua
No final da tarde de 12 de janeiro de 1984, os curitibanos que transitavam pelo centro e deixavam o trabalho começaram a se reunir diante do palanque armado na Praça Osório, de frente à Avenida Luiz Xavier. O Deputado Ulysses Guimarães chegara à cidade pela manhã. O governador Tancredo Neves desembarcou às 16h30min no aeroporto Afonso Pena. Hora e meia depois seria a vez de Franco Montoro, governador de São Paulo. O ex-deputado Léo de Almeida Neves, trabalhista histórico, representou o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola. A luta pelas Diretas-Já atraíra para Curitiba uma constelação de celebridades, incluídos artistas como Martinho da Vila, Raul Cortez, Dina Sfat, Ruth Escobar, Bete Mendes (então deputada federal pelo PT paulista), entre outros. Isto sem falar em senadores, deputados federais e estaduais e prefeitos. Mais de 60 entidades de classe assinaram conclamação para a luta pelas diretas.
Diante do palanque, o povo crescia. Mas foi subitamente, pouco depois das 18h30min, que o calçadão foi tomado. Caravanas do interior e dos bairros de Curitiba, levas de estudantes e trabalhadores, uma população anônima e silenciosa, mas munida de faixas, placas, camisetas foi ocupando os espaços da Boca Maldita, fazendo antever o sucesso do comício. Então Álvaro Dias foi ao Hotel Del Rey, de onde ligou ao governador José Richa, que estava no Palácio Iguaçu com seus convidados.
– A Polícia Militar conta que há mais de 60 mil pessoas aqui – disse o senador.
E Richa:
– Está brincando!
Às 19 horas chegava ao palanque a comitiva de notáveis. Políticos, artistas, lideranças sociais e corporativas revezavam-se em discursos inflamados. Aplausos e um vozerio rouco estrondeada pela noite. A palavra de ordem Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o Presidente do Brasil , reproduzida pelos autofalantes, ribombava por todo o centro da cidade, puxada pelo locutor Osmar Santos que, a partir de então, se tornaria o apresentador oficial dos comícios que ganhariam o Brasil. Da janela dos prédios, uma assistência privilegiada lançava papéis picados, até rolos de papel higiênico eram desenrolados em pleno ar fazendo as vezes de serpentinas.
Curitiba parou para o comício-monstro, mancheteavam os jornais do dia seguinte. A cidade dera o pontapé inicial, mostrara que a campanha repercutira na alma do povo. Mas era apenas o começo, pois 17 dias depois, São Paulo também pararia, reunindo 250 mil pessoas na Praça da Sé. A campanha pelas eleições diretas correu as principais cidades brasileiras, atraindo multidões crescentes. No dia seis de abril, novo comício em São Paulo levou 1,3 milhão de pessoas ao vale do Anhangabaú. Quatro dias depois, um milhão na Praça da Candelária, no Rio de Janeiro. Em 17 de abril, outra vez em São Paulo, quase dois milhões de pessoas no mesmo Anhangabaú, vestidos com camisetas amarelas – cor símbolo do movimento – e trovejando Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o Presidente do Brasil que, ensurdecedor, ecoava pelo resto do país.
No Congresso
As manifestações procuravam sensibilizar o Congresso Nacional para a aprovação de uma emenda do Deputado Dante de Oliveira, apresentada em março do ano anterior, prevendo a eleição do presidente e vice-president4e da República por voto universal, direto e secreto. Uma pesquisa do Instituto Gallup, realizada em janeiro de 1984, mostrava que 81% dos entrevistados apoiavam as Diretas-Já. Apenas 10% eram contra. Mas nem as manifestações, nem a pesquisa levou o Congresso Nacional a aprovar a emenda, afinal derrotada no dia 25 de abril, depois de uma sessão de 16 horas e 60 discursos. Placar: 268 votos a favor, 65 contra, 113 ausências e três abstenções. O PDS, partido do governo, provocou as ausências. A emenda precisava de 320 votos favoráveis para ser aprovada. A pretexto de proteger o Congresso de atos de desobediência civil, tropas do exército ocuparam a Esplanada dos Ministérios enquanto deputados e senadores votavam.
Da frustração nacional com a derrota da emenda Dante de Oliveira, nasceu a candidatura do governador mineiro Tancredo Neves, escolhido pelas oposições para derrotar o candidato governista Paulo Maluf no terreno imposto pela ditadura: o colégio eleitoral. Do PDS desgarrou-se uma força – a Frente Liberal – que viria a apoiar o candidato oposicionista, numa composição pela qual a vice-presidência coube ao Senador José Sarney, um dos dissidentes do Sistema. Novos comícios agitaram o país, em favor de Tancredo, que venceu com folga no colégio eleitoral. Mas, doente, viu-se impedido de assumir, em 15 de março de 1985. Com sua morte, em 21 de abril, a Presidência passou a ser definitivamente exercida pelo vice José Sarney, chefe do partido que sustentara a ditadura. Mas esta é outra história, emblemática dos insondáveis paradoxos desse grande país.
Nos palanques das Diretas-Já, dois personagens se tornariam presidentes da República, eleitos pelo voto direto dos brasileiros: o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, em 1994 e 1998, e o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002 e 2006, ocupando ambos campos opostos no arco político brasileiro.
Fonte – Vermelho