Para o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Rogério Sottili, preocupação é garantir espaços de memória e diálogo. ‘A impressão é que a sociedade estava falando para um muro’, diz
A prefeitura de São Paulo apresentará nos próximos dias seu projeto de lei propondo a criação da Comissão Municipal da Verdade. Assuntos a investigar não faltam, segundo o secretário de Direitos Humanos e Cidadania, Rogério Sottili. “A prefeitura participou da ditadura porque demitiu muita gente, perseguiu muita gente. Porque os cemitérios da cidade são de responsabilidade do município”, afirma. “Há notícias e denúncias de que espaços da própria prefeitura foram emprestados para práticas de tortura, e nós temos de verificar isso.” A apresentação do projeto que será encaminhado à Câmara está prevista para o dia 12, em evento na Galeria Prestes Maia, na região central.
O tema é caro a Sottili, ex-secretário-executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que tem como uma de suas tarefas a articulação de iniciativas pelo direito à memória ou que envolvam pessoas atingidas pela ação de agentes do Estado durante a ditadura. Ele evoca ainda a sua formação de historiador. “A impunidade que vivemos hoje no nosso país eu não tenho a menor sombra de dúvida que tem traços da impunidade da ditadura. Tenho o direito de saber, de contar, de ir a um arquivo histórico, ir para um biblioteca e poder pesquisar e estudar. Você tem os arquivos abertos para isso.”
Ele também defende o trabalho da Comissão Nacional da Verdade – que acaba de ter o prazo de funcionamento prorrogado de maio para dezembro –, afirmando que seu papel é o de apurar fatos e não, por exemplo, rediscutir a Lei de Anistia. “Tudo pode ser reaberto se a pressão da sociedade aumentar”, diz.
A comissão municipal insere-se na visão de que é preciso aumentar os espaços de diálogo em São Paulo. “Acho que encontramos uma cidade muito machucada. A impressão que eu tinha, do ponto de vista do Estado, é que a sociedade estava falando para um muro”, afirma o secretário, na primeira parte da entrevista concedida a João Peres e Vitor Nuzzi, da RBA, e Michelle Gomes, da TVT. A segunda parte será publicada amanhã (3).
“Contar a verdade sobre a nossa história constrói uma cultura de paz. O programa Direito à Memória e à Verdade quer ajudar na apuração dos assassinatos da época da ditadura. Ajuda a construir cultura de paz, porque ajuda que a história não se repita.”
Como funcionará a Comissão Municipal da Verdade? Terá algum foco principal?
O nosso projeto prevê a comissão com cinco membros, diferente da nacional, que tem sete. A gente acredita que, mais enxuta, ela seja mais objetiva e possa produzir resultados mais objetivos também.
O município de São Paulo teve papel importante no processo da ditadura. A prefeitura participou da ditadura porque demitiu muita gente, porque perseguiu muita gente, porque os cemitérios da cidade são de responsabilidade do município de São Paulo. Os arquivos da prefeitura estão aí para serem abertos e trabalhados. Há notícias e denúncias de que espaços da própria prefeitura foram emprestados para práticas de tortura, e nós temos de verificar isso.
Há mais de dez Comissões da Verdade na cidade de São Paulo, desde a comissão da Assembleia Legislativa, da Câmara dos Vereadores, da OAB, do Sindicato dos Jornalistas, da PUC, da USP, da Unifesp, da CUT… Mas nenhuma de caráter executivo. É a única de caráter executivo, e nós temos todos os arquivos dos cemitérios, todos os documentos. Ela vai focar nisso. Evidentemente que os cinco membros serão escolhidos pelo prefeito, e ela vai ter autonomia de decidir melhor o foco das suas investigações. Esse é o formato.
No final de 2013, o governo federal prorrogou o prazo para o funcionamento da Comissão Nacional da Verdade até o final deste ano. Qual a sua expectativa para o relatório que deve vir daí? Algumas pessoas, entidades, movimentos de presos e desaparecidos políticos, às vezes mostram certa frustração com o que pode sair de punição, de responsabilização de agentes do Estado que violaram direitos humanos durante a ditadura.
Eu sou uma pessoa otimista por natureza, acho que tanto a comissão municipal como a nacional vão produzir dados importantes. Infelizmente, as comissões não produzem os resultados de seus desejos, produzem os resultados possíveis. Acho que a comissão nacional, ao pedir dois anos, avaliou que tinha ainda mais coisa para ser trabalhada e resolvida, o que é positivo. Poderia ser frustrante entregar um resultado pela metade.
Eu não acho que devemos ter expectativa de que a Comissão Nacional da Verdade produza fatos e recomende justiça. Cabe a ela apurar os fatos e apresentá-los para a sociedade. Dependendo do resultado, vai se criar uma nova discussão que pode levar justiça. Esse é que é o papel, não é do caráter da comissão rediscutir a Lei da Anistia ou se deve fazer justiça, responsabilizar (os violadores de direitos humanos). Isso é um processo que está em aberto e vai sempre estar em aberto, mesmo que a Justiça já tenha se pronunciado sobre isso, mas tudo pode ser reaberto se a pressão da sociedade aumentar. Quando a Comissão Nacional da Verdade apresentar o seu relatório, apresentar os fatos e trouxer fatos novos que a sociedade se sinta com vontade, determinação e com força para ir para as ruas, quando existir um novo momento da história do Brasil que leve à justiça e à responsabilização e à punição dos responsáveis, é um novo momento que vamos viver. Acho que é este o papel das comissões da verdade.
Ter passado tanto tempo cria mais dificuldades no sentido de acesso às testemunhas?
Cria, sem sombra de dúvida. É a nossa realidade. O Brasil foi diferente do Chile, da Argentina, do Uruguai. Hoje tem nos jornais que o governo brasileiro, através do Itamaraty, está construindo uma parceria entre Uruguai, Argentina e Brasil para que a gente possa se ajudar nos processos de investigação dos arquivos. Afinal de contas, se teve cooperação para torturar, prender e matar, tem de haver cooperação para abrir os arquivos, contar a história e, se for o caso, levar justiça. Isso é importante, porque à medida que no Uruguai e na Argentina já está colocada essa questão da justiça, você pode criar uma situação importante e nova. O Brasil fez uma parceria sobre isso, mas aqui ainda não se discute a punição. Nós fizemos uma parceria com os Estados que foram praticamente a aliança cooperativa para a Operação Condor, então isso reabre um novo debate.
Acredito que todos esses processos são extremamente e eternamente abertos. Não tem nada definitivo, nenhuma resolução do Supremo é definitiva. Nós estamos a cada dia criando fatos novos, cenários novos e novas condições em que a sociedade é extremamente ativa.
Em que isso se relaciona com o objetivo de uma “cultura de paz”?
Nós acreditamos que contar a verdade sobre a nossa história constrói uma cultura de paz, por isso o programa Direito à Memória e à Verdade, que quer fazer uma investigação profunda e ajudar na apuração de todos os casos de assassinato da época da ditadura militar. Ajuda a construir uma cultura de paz, porque ajuda que essa história não se repita. Nós vamos trabalhar muito nessa história, vamos trabalhar na mudança e na modificação dos logradouros, os nomes dos logradouros que carregam os nomes das pessoas responsáveis pelas mortes na cidade de São Paulo na ditadura. Vamos mudar os nomes das ruas, nomes das praças, dos viadutos, em um processo construído com a população. Você não pode mudar o nome de rua que tem 100 moradores de forma aleatória e autoritária. Você tem de envolvê-los e explicar quem é o Sérgio Fleury (delegado do Dops, morto em 1979) para as pessoas que moram nessa rua. Elas precisam saber que Sérgio Fleury foi um dos maiores torturadores da história do Brasil e, por isso, ele não merece ser homenageado com nome de rua.
Vamos trabalhar na identificação dos mortos e desaparecidos políticos. Nós temos 1.044 ossadas de Perus depositadas no ossário de Araçá para que seja feito todo o trabalho de identificação. Se nós fizermos esse trabalho, estamos contando a história não contada e construindo um território de paz.
A ideia é trocar o nome de uma pessoa que foi homenageada pelo seu passado autoritário por uma pessoa que seja valorizada por seu passado na construção da democracia?
Nós já começamos e já identificamos os diversos locais. Teve uma intervenção muito interessante, com um valor tão grande quanto a mudança: durante o nosso Festival de Direitos Humanos, em dezembro, fizemos uma parceria com a cineasta Tata Amaral, e ela dirigiu várias pílulas de intervenção urbana sobre o que acontece na cidade. Tinha um trabalho desenvolvido pelo (artista e ativista) Paulinho Rosa Choque, que se veste todo de rosa, e com um carrinho de supermercado também todo rosa e iluminado ele saía pela cidade e ia procurando os locais que tinham nome de pessoas que participaram da ditadura. Ele chegou na rua Sérgio Fleury e botou em cima do nome, em rosa-choque, “doutor torturador”. Embaixo do nome ele cola um cartaz e põe a biografia do Sérgio Fleury. Depois, ele foi em uma outra rua que tem o nome do Boilensen (Henning Albert Boilensen, dono da Ultragaz, morto a tiros por militantes de esquerda em 1971), que era um dos grandes financiadores da tortura no nosso país. Ele foi lá e colocou “doutor ultracâmaradegás”, e põe a biografia de quem era. Ele está contando a história. A população parava lá, alguns não gostaram no início, mas depois começaram a ler. É uma intervenção super importante de educação em direitos humanos.
Nós queremos mudar e vamos fazer com um processo de educação. Vou contar uma experiência para vocês que foi muito rica para nós. O vereador Orlando Silva apresentou um projeto de lei para mudar o nome da rua Sérgio Fleury para Frei Tito (o dominicano Tito de Alencar Lima, que foi torturado por Fleury e se suicidou em 1974). É uma rua na Vila Leopoldina (zona oeste) pequena, sem saída. Nós fomos lá e os moradores estavam irados porque, primeiro, nunca tinham ouvido falar que tinha mudança do nome, ficaram sabendo pelo jornal. Eles se sentiram afrontados. Segundo, não queriam trocar nome de rua nenhuma porque significaria incômodo, mudança de endereço, eles tinham de pegar uma fila no centro da cidade para mudar os endereços de água, luz, correio.
Nós fomos conversar, fiz duas ou três assembleias com eles. Primeiro começamos a discutir e esquecemos do Frei Tito, quem era o Sérgio Fleury e porque era importante a mudança do nome dessa rua. A maioria já começou a concordar com a mudança e dizer: “Bom, eu também não quero morar em uma rua que tem o nome de um torturador, de um assassino. Mas eu não quero botar esse Frei Tito que eu nunca ouvi falar. Eu quero discutir aqui qual vai ser o nome”.
Aí nós começamos a ver que não adianta você chegar, construir uma mudança de forma autoritária. Por mais boa vontade e correção que você tenha naquela iniciativa, tem de fazer de forma construída. Isso foi uma grande lição para nós, nós fomos para lá, passamos um filme do Frei Tito na rua, parte dos moradores assistiu, conheceu o Frei Tito. É um processo de construção. Não está decidido ainda, o vereador continua com o projeto de lei, ele tem o direito, mas nós estamos ajudando para que o projeto de lei seja aprovado com o apoio e aceitação da população, dos moradores.
Aquela proposta de incluir na grade curricular de São Paulo temas relacionados a cultura de direitos humanos evoluiu?
Evoluiu bastante. Mas nós não estamos trabalhando com a ideia de ter disciplinas de diretos humanos. O que a gente acha é que é fundamental que as disciplinas sejam trabalhadas com o viés dos direitos humanos, é muito mais importante que aulas de matemática, de física, historia, ou de religião, seja o que for, seja trabalhada com um viés humanista, do combate à homofobia, do respeito à orientação sexual, à diversidade religiosa, à valorização das culturas diferentes. Esses são valores de direitos humanos que a gente quer trabalhar.
O senhor citou com entusiasmo essa intervenção que teve em logradouros que lembram figuras da ditadura. Na gestão Kassab, porém, foi reprimido esse tipo de atitude, por exemplo, quando uma pessoa tentava mudar uma plaquinha ali na avenida Roberto Marinho. Qual foi o quadro que o senhor encontrou nessa construção dos direitos humanos tanto do ponto do sentido institucional como do ponto de vista de valores da administração pública? Qual a importância de São Paulo, maior cidade do país, passar a construir uma cultura de paz?
O prefeito Kassab tinha um objetivo que eu acho que foi importante, que era a cidade limpa (lei que entrou em vigor em 2007). Acho que qualquer plaquinha era motivo de algum tipo de reprimenda, digamos assim. Mas é legítimo a sociedade também reagir a essas ações. A gente vê nos muros os grafites. O Paulinho Rosa Choque ficou um dia de chuva na frente do antigo DOI-Codi com laser rosa e fumaça cor de rosa saindo. As pessoas passavam lá… Ele chamou atenção por aquilo, porque é uma intervenção que vai dialogando com a cidade de outras formas.
Acho que encontramos uma cidade muito machucada. A cidade de São Paulo tem um vigor absurdamente grande do ponto de vista da sociedade civil, aqui a sociedade civil é muito engajada, ela é muito organizada, preparada, exige seus direitos. A impressão que eu tinha, do ponto de vista do Estado, é que ela estava falando para um muro. Não havia reação e a reação nunca do ponto de vista do diálogo. Era uma reação do que pode e o que não pode. Com isso, você não constrói relações.
Esse é o trabalho que nós vamos fazer daqui para frente. É muito difícil para nós porque é evidente que precisamos conferir um outro patamar a essa relação. Estamos carregando as marcas da desconfiança. Há tantas manifestações e as pessoas não estão preocupadas se o prefeito Fernando Haddad recém assumiu o governo e pegou a prefeitura em determinadas condições. Essas pessoas estão há anos brigando por essas demandas, por essas melhorias. Nós vamos ter de lidar com isso. O nosso papel, a nossa obrigação, é trabalhar para que a gente possa aproximar os interesses da sociedade com as possibilidades da prefeitura.
Fonte – Rede Brasil Atual