“Você vai voltar pra mim” é uma daquelas falas propensas a enternecer o interlocutor –a não ser, é claro, que venha de alguém como um agente da repressão após infindáveis sessões de tortura.
A narrativa em que ela aparece nomeia o novo livro do jornalista e cientista político Bernardo Kucinski, 76, “Você Vai Voltar pra Mim e Outros Contos”. Foi inspirada em depoimento que o autor ouviu, no fim de 2013, ao assistir a uma sessão da Comissão da Verdade paulista.São 28 histórias que têm a ditadura como pano de fundo e marcam a chegada do paulistano à Cosac Naify, após elogiada e tardia estreia na ficção com o romance “K.”, (Expressão Popular, 2011) –que ganha, simultaneamente, edição pela nova casa.
Lançado sem alarde por uma editora independente, “K.” teve duas edições esgotadas (somando 5.000 cópias), foi traduzido para o alemão, o espanhol e o inglês (com edições previstas em hebraico e italiano) e concorreu a dois dos maiores prêmios literários do país, o Portugal Telecom e o SP de Literatura.
Um diferencial do romance foi sua temática: um pai em busca da filha desaparecida nos anos de repressão, recriação de um trauma familiar de Kucinski, cuja última notícia da irmã foi sua prisão pelos militares, em 22 de abril de 1974, em São Paulo.
No ano em que se completa meio século do golpe de 1964, com as livrarias recebendo diversas obras de não ficção a respeito da ditadura, “K.” e “Você Vai Voltar pra Mim e Outros Contos” são raros exemplos da produção ficcional feita hoje no país sobre traumas daquele período.
Apesar de grandes romances sobre o tema, lançados inclusive durante a ditadura –como “Quarup”, de Antonio Callado, e “Pessach: A Travessia”, de Carlos Heitor Cony, ambos de 1967–, a literatura brasileira atual é bem mais comedida nesse sentido que a feita nos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile.
“Acredito que o Brasil tenha uma incapacidade de enfrentar a ditadura num contexto maior, o que tem a ver com uma tradição brasileira de elaborar pouco os traumas sociais”, diz o professor da Unicamp Marcio Seligmann, que por quatro anos coordenou um grupo de pesquisa sobre cultura e violência.
O professor de história da USP Marcos Napolitano lembra que, após aquele primeiro olhar dos anos 1960, a ficção nacional passou por uma fase de “balanço da derrota”, em obras como “Zero” (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, e “Em Camera Lenta” (1977), de Renato Tapajós.
“Daí para a frente floresceram as memórias, mas na ficção o tema foi sendo deixado de lado, com poucas exceções. Na América Latina veem-se mais exemplos do trauma derivado, de quem viveu a época, mas não passou diretamente pelos fatos”, diz.
Para Kucinski, a abordagem literária permite mostrar, com mais clareza do que na não ficção, o clima da época.
Permite também enfrentar tabus, como o do machismo predominante no período –num dos contos, “Recordações do Casarão”, dois amigos lembram um caso em que uma militante foi obrigada pelo namorado a abortar para não prejudicar a causa.
“O que me comove é que, quando você pega histórias individuais, é sempre muito chocante”, diz Kucinski.
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Por Raquel Cozer – colunista da Folha de S.Paulo