Comissão faz julgamento simbólico

Na presidência do tribunal, aparentando estar bastante à vontade no papel de magistrado, o jornalista Juca Kfouri, colunista da Folha de S.Paulo. Do seu lado esquerdo, fazendo a acusação, o advogado Fábio Konder Comparato, conhecido defensor de perseguidos políticos. Do outro lado, pela defesa, o desembargador Antônio Carlos Malheiros, do Tribunal de Justiça de São Paulo. E no banco dos réus, desta vez sendo julgada diante de um público composto majoritariamente por estudantes que sequer eram nascidos quando ela foi criada, a Lei da Anistia. A norma aprovada pelo Congresso Nacional em 1979 apagou as acusações contra os opositores da ditadura militar, permitindo que muitos voltassem do exílio. No julgamento de da última terça, porém, não era isso o que interessava. Os seis membros do júri cinco representando entidades sociais e um, o ator Sérgio Mamberti, representando a “classe artística” deveriam avaliar se a Lei da Anistia era culpada ou inocente pela proteção a agentes que sequestraram, torturaram, mataram e ocultaram cadáveres em nome do Estado brasileiro. 

A encenação, com espaço para testemunhos, defesa e acusação (nesta ordem), ocorreu na última terça à noite no tablado do lotado auditório do Tuca, o teatro da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Batizada como Tribunal Tiradentes 3, foi organizada pela Comissão da Verdade da PUC-SP, denominada Reitora Nadir Gouvêa Kfouri, tia de Juca, professora que administrou a instituição entre o fim dos anos 70 e começo dos anos 80, período em que a universidade foi palco de intensa movimentação política. A ideia de fazer o julgamento simbólico da Lei da Anistia foi inspirada num ato político semelhante que ocorreu em 1983 em São Paulo, ainda sob a ditadura. Naquele ano, por iniciativa da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o então senador Teotônio Vilela (PMDB-AL) presidiu um tribunal teatral que julgou e condenou a Lei de Segurança Nacional, norma usada para perseguições políticas.

Entre os participantes do Tribunal Tiradentes 1 estavam o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, como testemunha, e o advogado Márcio Thomaz Bastos, no papel de promotor. Há um documentário sobre o evento no YouTube. Um ano depois, já durante o período da campanha das Diretas-Já, um novo tribunal foi encenado, dessa vez para condenar o Colégio Eleitoral, a assembleia de congressistas que era periodicamente convocada para “eleger” presidentes durante a ditadura. O Tribunal Tiradentes 2 foi presidido pelo advogado e professor Gofredo da Silva Teles. O evento de terça, 30 anos depois, foi o terceiro dessa linhagem.

Julgamento

Logo na abertura dos trabalhos, Juca Kfouri reiterou que o que estava sob julgamento na noite de terça eram apenas os crimes cometidos por agentes do Estado. “Por desinformação ou por desonestidade intelectual, ainda há gente que pergunta se não é o caso de julgar também o outro lado”, completou, lembrando em seguida que os perseguidos políticos já pagaram caro com as prisões e perseguições sofridas, as mortes, os desaparecimentos.

Atuaram como testemunhas a militante Amelinha Teles, presa com o marido nos anos 1970 num órgão de repressão paulista, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), o deputado estadual Adriano Diogo (PT) e o promotor federal Marlon Weichert. No microfone, falaram do sofrimento das famílias que até hoje buscam por informações; lembraram que o texto da Lei da Anistia aprovado não foi resultado de uma negociação entre opositores e situacionistas, como muitos ainda afirmam; e reclamaram da “interpretação míope” feita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2010, quando a corte se manifestou pela constitucionalidade da norma.
Erundina é autora de um projeto de lei que dá nova interpretação à Lei da Anistia, deixando claro que a regra não deve valer para agentes do próprio Estado.

O projeto foi inicialmente rejeitado pela Comissão de Relações Exteriores da Casa. Reapresentado à Comissão de Constituição e Justiça, aguarda data para ser levado à votação. Na defesa da Lei da Anistia, o desembargador Malheiros releu os argumentos aceitos pelo STF em 2010. Em várias ocasiões, mencionou passagens elaboradas pelo relator do caso na corte, o ex-ministro Eros Grau, defensor da atual interpretação da lei. Em tom sarcástico, falou que a revisão da norma “geraria grande insegurança jurídica no país”.
Pior, disse Malheiros, “abriria também a possibilidade de processo contra os nossos heróis”, os que lutaram contra a ditadura.

Segundo ele, isso poderia resultar até na necessidade de devolução dos valores pagos como indenização aos perseguidos por parte do Estado. Para o Malheiros advogado, a criação de comissões da verdade é suficiente para reparar os danos causados. “Vamos mostrar todos os dias na imprensa a cara dos malditos assassinos”, afirmou. “Não precisa mais que isso.”
Comparato, que fez a exposição mais longa do evento, começou fazendo uma analogia com a escravidão, “o crime coletivo mais longo da história do ocidente”. Afirmou que o “regime empresarial-militar” de 1964 inaugurou a política de “terrorismo de Estado” no Brasil e listou como exemplos a Operação Bandeirante (centro de repressão organizado pelo Exército com apoio de empresários paulistas); a chamada Casa da Morte de Petrópolis (RJ), onde quase todos os presos foram mortos; a brutalidade da repressão à Guerrilha do Araguaia, quando vários combatentes já rendidos foram assassinados; e a Operação Condor, acordo de cooperação entre repressores de diferentes países latinos.

No final de sua acusação, o advogado resumiu os argumentos usados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para condenar o Brasil a esclarecer os crimes cometidos pela ditadura e rever a Anistia. Afirmou que não é possível para nenhum Estado reconhecer a impunidade ou a prescrição de crimes quando a vítima é a humanidade. “Nenhum Estado representa a humanidade”, disse Comparato. E falou da “aberração jurídica” que é o instituto da autoanistia.

Após quase três horas de julgamento, o júri convidado deu seu veredicto. Por unanimidade, seis votos a zero, a Lei da Anistia foi condenada. Juca Kfouri entregou uma cópia da sentença condenatória à psicanalista Maria Rita Kehl, que ficou responsável por entregá-la à Comissão Nacional da Verdade, da qual é membro. Outra cópia foi entregue ao padre Júlio Lancelotti, membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo. Ele ficou incumbido de entregar o papel ao papa Francisco. “Se der, entrego pessoalmente”, disse. “Senão vou dar um jeito de fazer isso chegar até ele”, garantiu.

 

 

Fonte – Folhapress

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *