A encenação, com espaço para testemunhos, defesa e acusação (nesta ordem), ocorreu na última terça à noite no tablado do lotado auditório do Tuca, o teatro da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Batizada como Tribunal Tiradentes 3, foi organizada pela Comissão da Verdade da PUC-SP, denominada Reitora Nadir Gouvêa Kfouri, tia de Juca, professora que administrou a instituição entre o fim dos anos 70 e começo dos anos 80, período em que a universidade foi palco de intensa movimentação política. A ideia de fazer o julgamento simbólico da Lei da Anistia foi inspirada num ato político semelhante que ocorreu em 1983 em São Paulo, ainda sob a ditadura. Naquele ano, por iniciativa da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o então senador Teotônio Vilela (PMDB-AL) presidiu um tribunal teatral que julgou e condenou a Lei de Segurança Nacional, norma usada para perseguições políticas.
Entre os participantes do Tribunal Tiradentes 1 estavam o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, como testemunha, e o advogado Márcio Thomaz Bastos, no papel de promotor. Há um documentário sobre o evento no YouTube. Um ano depois, já durante o período da campanha das Diretas-Já, um novo tribunal foi encenado, dessa vez para condenar o Colégio Eleitoral, a assembleia de congressistas que era periodicamente convocada para “eleger” presidentes durante a ditadura. O Tribunal Tiradentes 2 foi presidido pelo advogado e professor Gofredo da Silva Teles. O evento de terça, 30 anos depois, foi o terceiro dessa linhagem.
Julgamento
Logo na abertura dos trabalhos, Juca Kfouri reiterou que o que estava sob julgamento na noite de terça eram apenas os crimes cometidos por agentes do Estado. “Por desinformação ou por desonestidade intelectual, ainda há gente que pergunta se não é o caso de julgar também o outro lado”, completou, lembrando em seguida que os perseguidos políticos já pagaram caro com as prisões e perseguições sofridas, as mortes, os desaparecimentos.
Atuaram como testemunhas a militante Amelinha Teles, presa com o marido nos anos 1970 num órgão de repressão paulista, a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), o deputado estadual Adriano Diogo (PT) e o promotor federal Marlon Weichert. No microfone, falaram do sofrimento das famílias que até hoje buscam por informações; lembraram que o texto da Lei da Anistia aprovado não foi resultado de uma negociação entre opositores e situacionistas, como muitos ainda afirmam; e reclamaram da “interpretação míope” feita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2010, quando a corte se manifestou pela constitucionalidade da norma.
Erundina é autora de um projeto de lei que dá nova interpretação à Lei da Anistia, deixando claro que a regra não deve valer para agentes do próprio Estado.
O projeto foi inicialmente rejeitado pela Comissão de Relações Exteriores da Casa. Reapresentado à Comissão de Constituição e Justiça, aguarda data para ser levado à votação. Na defesa da Lei da Anistia, o desembargador Malheiros releu os argumentos aceitos pelo STF em 2010. Em várias ocasiões, mencionou passagens elaboradas pelo relator do caso na corte, o ex-ministro Eros Grau, defensor da atual interpretação da lei. Em tom sarcástico, falou que a revisão da norma “geraria grande insegurança jurídica no país”.
Pior, disse Malheiros, “abriria também a possibilidade de processo contra os nossos heróis”, os que lutaram contra a ditadura.
Segundo ele, isso poderia resultar até na necessidade de devolução dos valores pagos como indenização aos perseguidos por parte do Estado. Para o Malheiros advogado, a criação de comissões da verdade é suficiente para reparar os danos causados. “Vamos mostrar todos os dias na imprensa a cara dos malditos assassinos”, afirmou. “Não precisa mais que isso.”
Comparato, que fez a exposição mais longa do evento, começou fazendo uma analogia com a escravidão, “o crime coletivo mais longo da história do ocidente”. Afirmou que o “regime empresarial-militar” de 1964 inaugurou a política de “terrorismo de Estado” no Brasil e listou como exemplos a Operação Bandeirante (centro de repressão organizado pelo Exército com apoio de empresários paulistas); a chamada Casa da Morte de Petrópolis (RJ), onde quase todos os presos foram mortos; a brutalidade da repressão à Guerrilha do Araguaia, quando vários combatentes já rendidos foram assassinados; e a Operação Condor, acordo de cooperação entre repressores de diferentes países latinos.
No final de sua acusação, o advogado resumiu os argumentos usados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para condenar o Brasil a esclarecer os crimes cometidos pela ditadura e rever a Anistia. Afirmou que não é possível para nenhum Estado reconhecer a impunidade ou a prescrição de crimes quando a vítima é a humanidade. “Nenhum Estado representa a humanidade”, disse Comparato. E falou da “aberração jurídica” que é o instituto da autoanistia.
Após quase três horas de julgamento, o júri convidado deu seu veredicto. Por unanimidade, seis votos a zero, a Lei da Anistia foi condenada. Juca Kfouri entregou uma cópia da sentença condenatória à psicanalista Maria Rita Kehl, que ficou responsável por entregá-la à Comissão Nacional da Verdade, da qual é membro. Outra cópia foi entregue ao padre Júlio Lancelotti, membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo. Ele ficou incumbido de entregar o papel ao papa Francisco. “Se der, entrego pessoalmente”, disse. “Senão vou dar um jeito de fazer isso chegar até ele”, garantiu.
Fonte – Folhapress