A Comissão Nacional da Verdade finalmente decidiu convocar para prestar esclarecimentos os executivos das empresas que cooperaram com a ditadura militar.
Segundo matéria da Folha desta terça-feira (9), “um dos focos de investigação do grupo, a colaboração de companhias nacionais e estrangeiras com a repressão, será tema de audiência… ‘Ainda vamos estudar as várias formas de responsabilização dessas empresas, mas há tratados e entendimentos internacionais que dizem que, em situações como a da ditadura, a responsabilização das empresas e dos empresários não pode ser esquecida’, ressaltou Rosa Cardoso”, integrante da comissão.
Fica a pergunta: os filhos de Roberto Marinho serão convocados?
Afinal, o Grupo Globo – o novo nome do império midiático – ajudou a criar o clima para o golpe de 1964, que derrubou João Goulart, presidente eleito democraticamente; deu sustentação à ditadura militar; fez o máximo para evitar seu fim, inclusive sabotando a campanha das Diretas-Já; e construiu a sua poderosa corporação empresarial com a ajuda dos generais carrascos.
Não é exagero afirmar que a empresa comandada pelo falecido Roberto Marinho foi uma das que mais colaboraram com o regime militar. Sem o seu apoio – e de vários outros veículos da mídia –, o golpe dificilmente teria ocorrido e a ditadura não duraria tanto tempo – os 20 sombrios anos de torturas, assassinados e outros crimes bárbaros.
A intimidade promíscua com os generais
Como já apontou o jurista Marcelo Semer, o apoio da Rede Globo foi decisivo para o prolongamento da ditadura [leia aqui]. “O fato mais grave nem é que um grande empresário, como vários outros, tenha aderido de corpo e alma ao golpe contra a democracia. Sem eles, aliás, a ditadura jamais teria se imposto. Mas que, em se tratando de um órgão de comunicação, tenha sepultado a sua própria razão de existir ao fazê-lo, pois para manter-se fiel ao espírito da ‘revolução’ (ou seja, golpe), impediu que muitas informações viessem à tona, mesmo depois do fim da censura. Não foi por outra razão que a campanha das Diretas desaparecia das telas da TV Globo”.
Num artigo memorável, intitulado “Globo e a ditadura, segundo Walter Clark” [leia aqui], o jornalista Argemiro Ferreira deu detalhes da sinistra colaboração de Roberto Marinho. “A Globo devia ao regime até mesmo a introdução da TV a cores – imposta pelo ministro das Comunicações, coronel Higino Corsetti, sabe Deus para atender a que lobby multinacional. Mas a intimidade promíscua com o regime foi mais longe, a ponto de compartilhar com o SNI os serviços clandestinos do ‘despachante’ encarregado de liberar contrabandos na Alfândega: para a empresa, equipamentos de TV; para os militares da espionagem oficial, sofisticados aparelhos de escuta ilegal”.
A confissão de Lincoln Gordon
Já a jornalista Helena Sthephanowitz publicou recentemente [leia aqui] documentos que comprovam que Roberto Marinho foi um dos cérebros do golpe e um dos responsáveis pelo endurecimento da ditadura. Num deles, datado de agosto de 1965, o embaixador Lincoln Gordon relata ao governo dos EUA que o dono da Rede Globo “trabalhava silenciosamente” junto a um grupo composto pelos generais Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar, Golbery do Couto e Silva, chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), e Luis Vianna, chefe da Casa Civil, pela prorrogação do mandato do ditador Castelo Branco. Eram comuns os encontros entre Roberto Marinho e o “embaixador” ianque.
Vale citar, ainda, a entrevista concedida a Luiz Carlos Azenha pelo professor Fabio Venturini, que fez o mestrado na PUC-SP sobre os empresários e a ditadura [leia aqui]. “Se uma empresa foi beneficiada, a mais beneficiada foi a Globo… Roberto Marinho participou da articulação do golpe, fez doações ao Ipes [Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, que organizou o golpe]… Em 65, o presente, a contrapartida foi a concessão dos canais de TV, TV Globo Canal 4 do Rio de Janeiro e Canal 5 São Paulo… Na década de 1970, a estrutura de telecomunicações era praticamente inexistente no Brasil e foi totalmente montada com dinheiro estatal, possibilitando o primeiro telejornal em todo o território nacional, o JN”.
Os primeiros na fila dos depoimentos
Outros estudos, como o clássico livro organizado por César Bolaño e Valério Cruz – “Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia” –, serviriam de subsídio à Comissão da Verdade para convocar, de imediato, os três filhos de Roberto Marinho. A convocação também poderia se basear na própria “autocrítica” do jornal O Globo, publicada em agosto de 2013. Em editorial, a famiglia Marinho admitiu pela primeira vez – mas de forma canhestra e marota – que apoiou o golpe e a ditadura militar. Mesmo confessando que “o apoio editorial ao golpe de 1964 foi um erro”, o jornal ainda relativizou a monstruosidade do crime. “Foi um equívoco, mas naquele momento foi imprescindível para a manutenção da democracia”.
O Grupo Globo continua produzindo os seus crimes diariamente. Tornou-se, na atualidade, o principal partido da direita golpista no Brasil. Ele inclusive fez de tudo para sabotar a instalação da Comissão Nacional da Verdade, temendo ser chamado ao banco dos réus. Em 2012, o jornal, as rádios e as emissoras de tevê aberta e a cabo deste império midiático produziram vários petardos contra a apuração dos crimes da ditadura. Até hoje, esta propriedade cruzada ilegal tenta inviabilizar as investigações. O próprio editorial citado acima foi uma tentativa de vacina para evitar o pior. Estes e outros fatos justificam plenamente a convocação, entre os primeiros da fila, dos herdeiros de Roberto Marinho.
Fonte – Viomundo