Não há anistia para crimes contra a humanidade (Parte II)

O Ministério Público Federal, cumprindo mais uma determinação constitucional (artigo 7º do ADCT), organizou-se institucionalmente por meio do Grupo de Trabalho Justiça de Transição, com o objetivo de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tal trabalho institucional permitiu que cerca de 190 procedimentos de investigação fossem instaurados em diferentes estados, havendo já a propositura de 9 ações penais. O MPF, interpretando corretamente a decisão no caso Gomes Lund, sustenta que a prática sistemática dos crimes de desaparecimento forçado, assassinato e tortura praticados por agentes públicos durante a ditadura de 1964-1985 com vistas à eliminação de opositores políticos são graves violações de direitos humanos ou crimes contra a humanidade e, segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, são imprescritíveis. Esta tese foi adotada recentemente pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em parecer ofertado na ADPF 320, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), visando ao cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Contudo, algumas decisões de TRFs têm barrado as iniciativas criminais do MPF. Ações penais em que provas nos autos demonstram cabalmente a existência de verdadeira política de Estado praticada contra a sua população têm sido suspensas em Habeas Corpus (por exemplo, HCs 0005684-20.2014.4.02.0000 e 0104222-36.2014.4.02.0000, ambos julgados pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região). Votos em que, claramente, há um desprezo pela luta de dissidentes políticos e um reforço do já “mofado” discurso de legitimação de uma suposta “guerra de dois lados” com a utilização de expressões como “inconformismo” com fatos “já definitivamente lançados à paz do arquivo” e recurso a fontes como páginas da internet voltadas à divulgação de obras escritas por militares acusados de liderar atos de repressão.

Além disso, decisões da Justiça Militar de arquivamento de inquéritos como os do Riocentro são citadas como barreiras intransponíveis mesmo diante de novas provas. Vê-se, portanto, que a “sanha” pela necessidade de “enterrar” as ações penais é tanta que os processos de habeas corpus passam a tratar descaradamente do mérito das ações penais, ignorando a jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal a respeito da dimensão daquela ação constitucional (ver, por exemplo, HC 114.326 no STF). Pior, a tese de que a Emenda Constitucional 26/1985 teria “anistiado” fatos posteriores a 1979 é ressuscitada, quando o dispositivo normativo expressamente estabelece uma anistia apenas para opositores políticos e limitada até o ano de 1979.[1]

Na sua fundamentação, o relator da decisão que negou seguimento à denúncia no caso Riocentro, o desembargador Antonio Ivan Athié do TRF da 2ª Região, chega a registrar que “atos terroristas” causavam a morte de inocentes e que, “evidentemente as Forças Armadas tinham de cumprir a sua missão constitucional”. É realmente espantoso nos depararmos com uma argumentação que invoca a missão constitucional justamente do grupo que violou esta missão no que ela guarda de mais fundamental e sublime. O golpe de Estado efetivado pelas Forças Armadas em 1964 com o apoio de setores civis e elitistas da sociedade brasileira violentou a necessária obediência que tais forças devem manter ao presidente eleito pelo voto popular e aos direitos e garantias que sustentavam a Constituição do país, que foi rasgada contínuas vezes pelos Atos Institucionais. É lamentável que, em um caso como este, ao invés dos nossos juízes reconhecerem e apontarem para o maior assalto já operado no país à missão constitucional das Forças Armadas, e levado adiante por elas mesmas, não sem a corajosa oposição daqueles militares que disseram não, eles prefiram continuar lançando suspeitas àqueles que tiveram a coragem de resistir a um governo usurpador e a um Estado ditatorial e violador de direitos fundamentais.

Como se não bastasse, o relator ainda expressou na sua decisão uma justificativa para a ditadura, na melhor linha do “mal necessário”, já afirmado pelo ministro Marco Aurélio Melo meses antes do julgamento da ADPF 153. Disse ele que talvez não estivéssemos todos aqui reunidos democraticamente “acaso não tivesse havido a reação das Forças Armadas, que cumpriram o seu papel, com excessos, evidentemente, com ilícitos, como todos naquela época, mas para proteger a situação que hoje vivenciamos.” Diante de uma manifestação como esta, firmada sem nenhum constrangimento em uma decisão judicial, só nos resta constatar a lógica tortuosa de que, para “salvar a democracia”, é preciso instalar uma ditadura de mais de duas décadas, e que o fato de hoje vivermos em uma democracia não se deve justamente àqueles que combateram a ditadura, mas sim aos que a instalaram.

Quanto a essa verdadeira inversão de papéis, o que revela a permanência da lógica da ditadura no nosso Poder Judiciário, é preciso lembrar que o artigo 8º do ADCT da Constituição de 1988 não trata os anistiados, como faz a Lei de Anistia de 1979 ou a Emenda Constitucional 26/1985, como criminosos políticos. Tal discussão sobre os  crimes políticos e o que seriam os chamados “crimes conexos” para efeito de anistia, na verdade, toma como paradigma o direito vigente na ditadura e não a Constituição de 1988. Essa querela, portanto, seja a partir da Lei de Anistia de 1979, seja a partir da Emenda Constitucional 26/1985 não faz sentido do ponto de vista da Constituição.

Assim, o questionamento a respeito dos chamados “crimes conexos” perde sentido quando se verifica que, para a Constituição de 1988, quem cometeu crimes foram os agentes da ditadura; aliás, muitas vezes, crimes contra a humanidade. E esses não são suscetíveis de anistia ou de graça, como determina o artigo 5º, inc. XLIII, em relação à tortura. E são imprescritíveis, como determina o Direito Internacional dos Direitos Humanos constitucionalmente reconhecido. Não interessa saber o que são “crimes conexos” e sua relação com os crimes políticos porque, para a Constituição de 1988, a resistência à ditadura não foi um crime. Quem se opôs à ditadura exerceu seu direito de resistência. Daí não ter pertinência o argumento acima, outrora levantado no voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF 153. A própria discussão sobre a relação da anistia prevista na Emenda Constitucional 26/1985 e a atual Constituição torna-se deslegitimante. A Assembleia Constituinte de 1987-1988 rompeu com toda tentativa de controle político da transição, assim como a instituição da Comissão Nacional da Verdade constitui ruptura com a cultura do esquecimento forçado, ainda presente entre membros do Poder Judiciário.

Há mais aspectos a considerar. Enquanto alguns juízes federais mostram-se sensíveis às determinações do Direito Internacional dos Direitos Humanos, nos tribunais regionais federais o que se vê é um total afastamento de uma normatividade que é fundamental para a justiça de transição brasileira. Há todo um acervo normativo que inclui desde os “Princípios de Direito Internacional reconhecidos na Carta do Tribunal de Nuremberg e nos julgamentos do Tribunal”, passando por inúmeras resoluções da Assembleia-Geral da ONU, decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, decisões no direito estrangeiro, das Supremas Cortes da Argentina, do Chile, do Peru e do Uruguai (muitas destas referidas no parecer do PGR na ADPF 320), que acertadamente reconhecem a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e a obrigação do Estado em promover o esclarecimento das violações. Em alguns dos países citados, como Chile e Uruguai, leis de anistia foram consideradas válidas pelo Judiciário, mas não ilimitadamente, tendo sido igualmente afastada a possibilidade de aplicação em branco, que torna os crimes insusceptíveis de investigação. Na Argentina, mesmo no período em que a anistia teve validade, o Judiciário não deixou de promover investigações, aplicando-a apenas quando devidamente esclarecidos os delitos e satisfeito o direito à verdade das vítimas e da sociedade.

Parece que nossos tribunais navegam contra esse fenômeno que já se chamou de “justiça em cascata”[2]. Contra todos os efeitos do que vinha se formando a partir de decisões judiciais proferidas desde a década de 1980 em países como Bélgica, França, Itália, Alemanha, Espanha, Argentina e México[3], que, reconhecendo a dimensão dos crimes contra a humanidade, dimensionaram a “jurisdição universal”, nossos tribunais caminham para uma “jurisprudência” cada vez mais doméstica e circular.

Degenerando ainda mais o quadro vigente, a alta reprovabilidade dos crimes de desaparecimento forçado, crimes estes permanentes, é questionada por suposições ditas “lógicas” a respeito do destino e da condição de desaparecidos políticos. As decisões do próprio STF nas Extradições 974, 1.150 e 1.278 são solenemente ignoradas. Em todos esses processos, foi deferida a entrega de ex-agentes públicos por conta da equivalência da permanência do desaparecimento forçado aos crimes de sequestro no Brasil; o STF manteve seu entendimento mesmo depois do julgamento da ADPF 153.

Tanto na seara civil, quanto na criminal, o que está atualmente em jogo é muito maior do que causas individuais em questão: é o modo como nosso sistema de justiça responde a crimes contra a humanidade. O tratamento até agora dispensado à questão insere nosso Judiciário na pior tradição autoritária. Muito mais do que legitimar uma auto-anistia ditatorial, o poder judiciário tem negado sua própria função de garantidor da legalidade, vez que mesmo que a anistia aos agentes da ditadura legítima fosse (o que discordamos), inexiste razão para que não seja aplicada apenas e tão somente após o devido processamento dos crimes e o esclarecimento dos fatos. Ainda pior, ao afirmar um “direito ao esquecimento” e a “obrigação de perdoar”, levando a máximo termo a pretensão autoritária da ditadura militar, afasta-se completamente do direito legislado, que impõe justamente o contrário: o direito à memória, à verdade, e ao amplo acesso à informação. Ao fazê-lo, descumprindo a lei, o Judiciário torna-se cúmplice dos crimes que deveria processar.

Sob os auspícios da Constituição de 1988, lida como deve sê-lo à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, devemos rechaçar publicamente a possibilidade de formação imatura, premeditada e estrategicamente guiada por concepções políticas ultrapassadas de uma jurisprudência que vá tentar sucumbir com tão importantes iniciativas da sociedade civil e do Ministério Público perante o Poder Judiciário brasileiro. Este, como qualquer ator em nossa “comunidade de princípios”, pauta-se por uma responsabilidade institucional que deve ser levada à sério e é sob seu influxo que nossa argumentação se coloca. As graves violações contra os direitos humanos praticadas por agentes públicos durante a ditadura de 1964-1985 são crimes contra a humanidade, portanto, imprescritíveis e não sujeitos à possibilidade de afastamento da persecução penal por anistia. Sua devida investigação e esclarecimento constitui não apenas um direito subjetivo das vítimas, mas de toda a sociedade, e sua concretização é uma imposição legal a todo servidor público, inclusive àqueles em togas ou fardas.

 

[1] “Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.

§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais.

§ 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no “caput” deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.”

[2] Cf. SIKKINK, Kathryn. The justice cascade – how human rights prosecutions are changing world politics. Nova York, Londres: W.W. Norton & Company, 2011; SIKKINK, Kathryn. “A Era da Responsabilização: a ascensão da responsabilização penal individual”. In: PAYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. A Anistia na Era da Responsabilização –  o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília/Oxford: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia/University of Oxford, Latin American Centre, 2011, p. 34-74.

 

[3] Cf. ROHT-ARRIAZA, Naomi. The Pinochet effect – transnational justice in the age of human rights. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2005.

 

Fonte – Consultor Jurídico

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