Ex-presidente diz que viu militantes torturados nos porões e que teve coragem e ousadia de denunciar o arbítrio ao próprio regime quando “pouca gente dava a cara a bater”
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso resgatou as notas taquigráficas da histórica reunião do Conselho de Segurança Nacional (CSN) de 1969 para afirmar que o ex-ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, foi decisivo na cassação do ex-governador Mário Covas, que na época era deputado federal.
General Costa e Silva é empossado na Presidência da República em 1967. Foto: Arquivo/Agência Senado
“Ele participou da decisão. E a opinião dele dizendo que Mário Covas era socialista foi importante na decisão de Costa e Silva”, diz FHC, no final de uma hora e oito minutos de depoimento gravado em áudio e vídeo pela CNV, na tarde de quarta-feira, em São Paulo.
O ex-presidente lembra que, ao se deparar com o nome de Covas na lista de parlamentares submetida ao extinto Conselho, o próprio presidente da República, general Artur da Costa e Silva, resistiu à cassação argumentando que era religioso, conhecia Covas e, até onde sabia, não tinha informações de que estivesse envolvido com comunistas ou subversão – “era bom moço”.
Para atenuar o ato, diante de outras opiniões favoráveis à cassação, o general chegou a sugerir que fosse tirado o mandato de Covas, mas não os direitos políticos. As notas taquigráficas, segundo FHC, registram que logo em seguida houve a seguinte intervenção de Delfim.
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“Esse eu conheço. É de Santos. Esse é socialista mesmo”, relembra FHC, atribuindo a Delfim o papel de tira-teima na votação pela cassação, da qual participavam vários outros ministros integrantes do Conselho de Segurança Nacional.
Com a fala do então ministro da Fazenda, Costa e Silva, conforme registra a ata, se dá por vencido e diz que “neste caso” o mandato seria cassado. “O Delfim não era duro (linha dura do regime militar). Ele deu um depoimento. Mas…”, disse FHC, sem concluir a frase.
‘Vi gente torturada’
FHC guarda uma cópia da ata com as notas taquigráficas em seu acervo e a manteve em segredo, embora ache que com a abertura dos arquivos da ditadura, já esteja disponível para consultas. O ex-ministro Delfim Netto é um dos poucos remanescentes do primeiro escalão do governo militar ainda vivos. Seu papel no período deve constar em um dos capítulos do relatório final da CNV, que será apresentado em dezembro.
Professor de filosofia da USP cassado pelo regime, perseguido e ameaçado de prisão por um mandado que vigorou de 1964 a 1967 e o levou ao exílio para não ser encarcerado, Fernando Henrique fez revelações importantes na CNV, como as denúncias sobre tortura, que diz ter levado ao general Golbery do Couto e Silva, então chefe da Casa Civil do Planalto.
“Ameaçaram me torturar, mas não me torturaram. Vi gente torturada”, disse, ao reproduzir o diálogo que travou, no Palácio do Planalto, com Golbery. Na audiência, o general teria admitido que o regime, encurralado pela linha dura – responsável por torturas, mortes e, no final, pela onda de atentados a bomba –, estava perdendo o controle da própria tropa. “Acho que o Golbery estava sendo sincero”, diz FHC, o primeiro ex-presidente que aceitou prestar depoimento à CNV.
Em um encontro com o coronel Juarez Brandão, a cujo gabinete chegou passando direto e sem consultar militares que guarneciam as dependências do quartel, contou que, irritado, chegou a dar um murro na mesa para responder à acusação de “mau brasileiro”.
“Estou aqui porque amo meu país”, lembra FHC, que diz ter deixado de lado sua conhecida diplomacia para inverter a lógica do autoritarismo e, assim, dialogar de igual para igual com os militares aos quais denunciou tortura e rebateu acusações. A ousadia, segundo ele, impediu prisões e torturas numa época em que “eram muito poucos os que se dispunham a enfrentar os militares”.
“Bisneto de brigadeiro, neto de marechal e filho de general”, FHC disse que embora tivesse no sangue o know-how da caserna, só usou o trânsito da família na área militar quando foi reclamar do arbítrio ao marechal Cordeiro de Farias. Dedicado à época à cátedra de filosofia da USP, afirma que não falava e ninguém sabia que ele era de uma família com históricas conexões com a área militar.
No difícil diálogo com o coronel Brandão, disse ter ouvido deste manifestações de ódio até contra políticos próximos ao regime, mas opostos à linha dura, como o ex-governador paulista biônico Paulo Egídio. “Ele me disse que viraria o Paulo Egídio de pernas para baixo e o pegaria pelos colhões”, lembra FHC, que à época relatou o episódio ao próprio Egídio.
Na sede da Oban, braço violento do regime e QG de Brandão, FHC conta que o fotografaram com número criminal preso ao peito e, depois, com um capuz na cabeça, foi submetido a interrogatório “maluco”. Lembra que só anos depois entendeu que a insistência do interrogador sobre suas “relações” com o trotskismo na Argentina e Uruguai tinha sido motivada pelo encontro com um dirigente da Quarta Internacional, Ernest Mandel, num evento no México, do qual, curiosamente, se opôs durante o debate.
O policial também queria saber das relações com o ex-ministro Roberto Campos, quadro da ditadura, o que deixou a FHC a conclusão de ele era considerado pelo regime “traidor pelos dois polos”, ou seja, pela esquerda e pela direita. O ex-presidente conta que no conturbado período dos confrontos entre militantes com a polícia, na Rua Maria Antônia, escapou de ser preso blefando. “Mostrei um talão de cheque, disse que tinha meus documentos e fugi”, lembra.
“Naquela época todo mundo tinha medo. Tocava a campainha da casa e as pessoas morriam de medo”, lembra FHC, que rechaça as críticas que avaliam que ele optou por um exílio voluntário. “Se voltasse seria preso”, afirma. Ao ser informado que havia contra ele um mandado de prisão, passou vários dias escondido na casa de amigos no eixo Rio/São Paulo.
De volta ao País, já livre das ameaças, FHC diz ter feito a opção por denunciar publicamente as arbitrariedades do regime, o que levou gente da própria esquerda a achar que contava com misteriosa proteção.
Fernando Henrique avalia que não foi importunado pelas manifestações públicas porque o regime tinha um “sentimento falso” de que contava com apoio internacional, quando na verdade, o que o favorecia e lhe dava relativa capacidade de atuar eram os contatos com colegas professores de universidades da Europa e dos Estados Unidos.
“Todo mundo dizia que eu tinha costas quentes. Eu não tinha costas quentes. Tinha era coragem de dizer e fazia isso publicamente. Pouca gente dava a cara a bater. Tanto é que me botaram na Oban e perdi o emprego”, diz o sociólogo que, contrário à luta armada, apostou no “esfarinhamento” do militarismo e acertou. “Foram anos muito difíceis para pessoas que têm independência de espírito”, reflete.
Fonte – IG