Os dois tiveram que se apresentar na sede da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), às 15h, de 27 de maio de 1974, no Rio de Janeiro, para explicar detalhes que incomodaram os censores
Paulo Coelho e Raul Seixas, parceiros desde os anos 1970, registraram em cartório a Sociedade Alternativa Foto: Internet/Reprodução
Além da identificação de 377 responsáveis por graves violações de direitos humanos (tortura e morte) e do nome das 434 pessoas mortas ou desaparecidas durante a ditadura militar (1964-1985), as 4,4 mil páginas do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) trazem histórias pitorescas, que beiram o nonsense. Uma delas é a implicância dos censores com a expressão Sociedade Alternativa, usada pelo músico Raul Seixas e pelo parceiro dele no início da década de 1970, Paulo Coelho, que levou a dupla a ser detida e o escritor a ser torturado.
Os dois tiveram que se apresentar na sede da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), às 15h, de 27 de maio de 1974, no Rio de Janeiro, para explicar detalhes que incomodaram os censores a respeito do álbum Krig-Há, Bandolo!, lançado no ano anterior e que foi o primeiro solo de Raul. O disco tem as primeiras parcerias do cantor com Paulo Coelho. Os dois se conheceram em maio de 1972, após Raul ler um artigo do escritor na revista A pomba, especializada em ufologia.
“Eles se apresentaram sem advogado, pois acreditavam que essa seria mais uma intimação para discutir a liberação de canções censuradas, fato já ocorrido anteriormente”, assinala o relatório. O texto da CNV afirma que Raul foi liberado 30 minutos após o depoimento, mas que Paulo Coelho ficou três horas em uma cela do Dops. “O policial encarregado do interrogatório questionou o conteúdo do gibi encartado no LP, de autoria do escritor, com desenhos de sua então namorada, Adalgisa Eliana Rios de Magalhães, 28 anos, estudante de arquitetura. Tratava-se de uma história em quadrinhos com quatro páginas inspirada nas aventuras de Tarzan, personagem criado por Edgar Rice Burroughs.”
O interrogatório foi interrompido e um camburão, com quatro policiais armados, foi prender Adalgisa. Na madrugada de 28 de agosto, o casal foi fichado. “No documento, o item ‘Motivo da prisão’ permaneceu em branco. Sem nenhuma ordem , mandado de prisão ou mesmo uma acusação formal, os dois tiveram seus pertences recolhidos e foram obrigados a vestir o uniforme da detenção. No interrogatório, foram questionados sobre o conteúdo do gibi e a criação da Sociedade Alternativa, marcadamente influenciada pela contracultura”, descreve o relatório.
Segundo os documentos pesquisados pelos integrantes da CNV, os interrogatórios foram individuais e duraram várias horas. Os dois não foram torturados nas dependências do Dops. Os policiais queriam informações sobre brasileiros exilados no Chile. O advogado contratado pela família de Paulo Coelho foi informado no Dops que o escritor seria liberado ainda de 28 de agosto. Às 22h, o casal assinou o alvará de soltura.
Sem barba
Os pesquisadores da CNV tiveram acesso a documentos do órgão de segurança que comprovam que o casal foi conduzido ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, naTijuca, bairro do Rio de Janeiro. “O compositor foi interrogado entre as 23h de 14 de junho e as 4h do dia seguinte. Ao contrário da ficha do Dops, quando fotografado com bigode e cavanhaque, Paulo Coelho é identificado como tendo barba e bigode ‘aparados’. Ou seja, a data do inquérito do compositor e de sua namorada no DOI-Codi (14 e 15 de junho) não corresponde ao dia em que foram presos e sequestrados (27 e 28 de maio)”, detalha o relatório da CNV.
Os documentos do Exército não especificam quanto tempo o casal ficou preso no quartel. Na biografia de Paulo Coelho escrita por Fernando Morais (O Mago — A extraordinária história de Paulo Coelho), é citado um diário em que ele atesta estar em casa em 31 de maio.
No depoimento de cinco horas que prestou no Exército, Paulo Coelho detalhou sua parceria com Raul Seixas e tentou explicar sobre a Sociedade Alternativa: “Que o depoente e Raul Seixas resolveram fundar a Sociedade Alternativa, a qual foi registrada em cartório para evitar falsas interpretações; que o depoente e Raul Seixas estiveram em Brasília e expuseram os preceitos da Sociedade Alternativa aos chefes da Polícia Federal e da censura, que colocaram que a intenção não era ir contra o governo, mas, inclusive, interessar a juventude num outro tipo de atividade”.
Filosofia
O lema “Faça o que tu queres há de ser tudo da lei” deriva da filosofia do britânico Aleister Crowley, cuja obra influenciou Raul Seixas e Paulo Coelho. As primeiras manifestações surgiram durante a turnê do disco Krig-Há, Bandolo!, em que os shows eram uma ode à Sociedade Alternativa. Raul chegou a conseguir um terreno, em Minas Gerais, para construir o que seria a Cidade das Estrelas. O auge da filosofia foi no disco Gita, de 1974, quando a música Sociedade alternativa fez parte do álbum.
Fonte – Diário de Pernambuco