Espião da ditadura, Cabo Anselmo diz que foi traído por chefe da repressão após entregar namorada

Autobiografia do mais conhecido agente duplo brasileiro chega às livrarias

“Não fiz nenhum juramento à foice e ao martelo”, afirma, em entrevista ao R7, José Anselmo dos Santos, 74 anos, o mais conhecido agente duplo da ditadura militar. Nos anos 1960, ele era um talismã da esquerda. Tinha um discurso incendiário e treinamento em Cuba. Dez anos mais tarde, revelou-se outro: infiltrado entre guerrilheiros, permitiu que a repressão prendesse e torturasse inimigos do regime. A Comissão Nacional da Verdade apontou, em seu relatório final, nove mortes relacionadas ao espião. Entre elas, a de Soledad Barrett Viedma, sua então namorada.

“Era uma pessoa doce”, diz Anselmo sobre Soledad. “Mas enérgica em relações às questões da ideologia”. Capturada em 1973 com a ajuda de Anselmo, ela foi torturada e morta ao lado de outros cinco militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), em Pernambuco, no episódio que ficou conhecido como o Massacre da Chácara São Bento. “Foi o pior dia da minha vida”, diz Anselmo. O espião nega que a namorada estivesse grávida, como se acredita. E acusa seu chefe, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, já falecido, de não ter cumprido o acordo de poupá-la. “Eu pedi e ele prometeu.”

O infiltrado acaba de lançar a autobiografia Cabo Anselmo: Minha Verdade (256 páginas, R$ 39,90). Duas noites de autógrafo devem acontecer nesta semana, em São Paulo. Marinheiro de primeira classe — uma espécie de soldado da Marinha — foi chamado de “cabo” pela imprensa e assim ficou o apelido. Na semana passada, na sede da editora Matrix, na zona oeste de São Paulo, ele concedeu entrevista ao R7. Por duas horas, deu detalhes sobre sua atuação como colaborador, tratou de sua vida e do Brasil de hoje e elogiou as últimas manifestações pró-impeachment. Revelou que, anônimo, foi ao ato de 15 de março no Rio.

Anselmo respondeu sobre pontos nebulosos de sua biografia, como a ajuda do líder comunista Carlos Marighella na concepção do discurso que deu origem à Revolta dos Marinheiros, em 25 de março de 1964. “Ele mesmo sentou na máquina e me deu o discurso pronto”, diz. O encontro teria acontecido na rua México, centro do Rio. A fala de Anselmo na festa de aniversário da associação dos marinheiros provocou um levante que irritaria a cúpula das Forças Armadas e se tornaria um dos estopins para o golpe militar ocorrido em 1º de abril, uma semana depois.

O espião deu detalhes também sobre como escapou da delegacia do Alto da Boa Vista, no Rio, em 1966. Após o golpe, Anselmo permaneceu preso por dois anos. Para fugir, teria dito ao policial de plantão que havia marcado um encontro amoroso. “Foi um papo de homem: ‘Olha, eu vou encontrar uma menina ali e tal, volto já’.” A facilidade é apontada por alguns como um indício de que Anselmo já seria, naquela época, um colaborador do regime, possivelmente um agente da agência de espionagem americana, a CIA. Ele nega.

Anselmo afirma que passou a atuar a favor da polícia em 1971, após ser novamente preso, sofrer duas sessões de tortura e ser convidado a mudar de lado pelo delegado Fleury, um dos mais truculentos perseguidores de guerrilheiros. “Eu tinha já a intenção: ‘Bom, eu vou ser preso. E quando for preso, eu vou abrir o jogo’.” O espião diz ter aceitado a proposta após ter se decepcionado com a realidade cubana, durante os dois anos em que esteve na ilha. “Quando eu cheguei aqui [Brasil], o que eu vi nesta nação? As pessoas na rua, trabalhando, pleno emprego.”

O espião confirma, ainda, a colaboração na captura de José Raimundo da Costa. “Sem dúvida nenhuma”. Ex-colega de Anselmo na Marinha e militante da VPR, José Raimundo está desaparecido desde 1971. Mas nega envolvimento em outras mortes, como as de Edgar Aquino Duarte e Aluizio Palhano Pedreira Ferreira. A certa altura da entrevista, Anselmo chega a afirmar que entregou Yoshitane Fujimori, ativista da VPR morto em 1970. Mas, em seguida, nega. “Não. O Fujimori, não”, diz. “Nessa época, eu nem estava nisso.”

Anselmo fala ainda de como sobrevive desde sua última ação como infiltrado, em 1973: a operação plástica para não ser reconhecido, o trabalho em uma madeireira e a atuação como consultor de recursos humanos para grandes empresas. Diz ter estudado os mestres da psicologia. “Eu li todo Freud, Adler, Jung.” E afirma ter aplicado técnicas de programação neurolinguística em treinamento de pessoal. “A programação neurolinguística foi boa para mim” diz. “Mas foi muito melhor trabalhar, travar relacionamentos.”

Há anos, ele luta para recuperar sua carteira de identidade. “Você tem uma para mim aí?”, pergunta. Sua certidão de nascimento sumiu, e a Marinha, apesar de ter comparado suas digitais com as cadastradas quando era marinheiro, não pode fornecer o documento ao homem que foi banido da corporação em 1964, com o Ato Institucional nº 1 — o primeiro do regime militar. Apontado como um dos maiores traidores da história do Brasil, Anselmo diz ter a consciência tranquila. “Eu não acorrentei ninguém”, afirma. “A decisão foi pessoal, a decisão foi de cada um.” Ele diz ter traído a pátria no momento em que foi a Cuba aprender técnicas de guerrilha. Mas nega ter traído seus companheiros de luta armada. “Não fiz nenhum juramento à foice e ao martelo.”

 

Marighella, a Revolta dos Marinheiros e a fuga do Alto da Boa Vista, na versão de Cabo Anselmo

José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, tornou-se uma figura notória a partir de 25 de março de 1964. A associação dos marinheiros, da qual era presidente, comemorava seu segundo aniversário. Após discurso de Anselmo, os praças iniciaram uma revolta. A manifestação acabou somente no dia seguinte. O presidente João Goulart anistiou todos os amotinados, que haviam tido prisão decretada pela indisciplina. A cúpula das Forças Armadas interpretou o ato de Jango como uma quebra na hierarquia militar. Em 1º de abril, os generais tomaram o poder.

Anselmo foi preso pouco depois do golpe. Após passar por diversas prisões, foi acomodado na carceragem da delegacia do Alto da Boa Vista, no Rio. Lá permaneceu até março de 1966. Sua fuga, facilitada pelo policial que estava de plantão, é apontada como suspeita pelos que consideram que Anselmo já colaborava com os militares ou com a CIA desde antes do golpe ou desde o início do regime militar. Anselmo nega essa condição e afirma que só passou a colaborar com o regime a partir de sua segunda prisão, em junho de 1971.

Confira a entrevista:

R7 – Em sua recém-lançada autobiografia, o senhor diz que o discurso que fez na associação dos marinheiros em 1964 foi, em parte, escrito por Carlos Marighella. Como se deu isso? O senhor se encontrou pessoalmente com Marighella?

José Anselmo dos Santos – A diretoria da associação estava dividida. Eu era a parte, digamos assim, de relações públicas. Era o mocinho que fazia os discursos. Agora, a direção política mesmo estava com Marco Antônio da Silva Lima [morto pela repressão em 1970], que era um caboclo da Paraíba, ponta firme, que tinha contatos políticos. Havia outros dentro da associação, uns poucos, que só agora eu estou sabendo, pela leitura de um outro livro, que eram do Partido Comunista. Mas o Marco Antônio não. O Marco Antônio era mais radical. Então, ele se uniu com o pessoal do Marighella, que estava saindo do Partido Comunista. O Marco Antônio me levou até o Marighella. Nós havíamos feito uma reunião na diretoria para saber como seria o discurso, fizemos um esboço de discurso. Saímos com Marco Antônio e um outro, não me lembro quem, para um escritório na rua México, no Rio. Lá estava o Marighella e mais dois outros senhores. Ele leu o discurso e disse: ‘Ah, não! Vamos melhorar isso’. Ele mesmo sentou na máquina e… me deu o discurso pronto. Com toda parte ligada à coisa política, apoio às reformas etc. e tal.

R7 – Apoio às reformas de base?

Anselmo – Exato. Eu li aquele discurso umas duas, três vezes. Ou quatro. E tudo bem. Veja: eu era um moço, estava na presença de pessoas importantes na política. Eu não sabia direito quem eram, mas eram pessoas importantes. Tão importantes para mim como o almirante Aragão, tão importantes quanto o Darcy Ribeiro, tão importantes quanto… entende? Pessoas que eu tive contatos esporádicos e que estavam ali para ajudar a associação. O próprio presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde, que me deu duas caixas de livro para botar na biblioteca da associação. Quer dizer, essas pessoas importantes. Mas a coisa política, da Guerra Fria… isso era muito tênue na minha cabeça e na cabeça lá da maioria [dos marinheiros].

R7 – O senhor memorizou o discurso?

Anselmo – Não, não. Eu li.

R7 – Outro episódio controverso de sua vida é a fuga da delegacia do Alto da Boa Vista, em 1966. Como era exatamente a sua situação ali na carceragem? O senhor tinha livre circulação?

Anselmo – O panorama era o seguinte, os próprios policiais achavam: ‘Ah! isso tudo vai passar! Você vai ser solto logo’. Só que foram soltos, por habeas corpus, todos, quase 40 ex-marinheiros e fuzileiros navais. Só o habeas corpus para mim é que não ia para adiante. Foram soltos todos aqueles caras do Partido Comunista, sargentos etc., que estavam em uma prisão especial lá em cima. E o único prisioneiro que restou fui eu. Então, lá dentro, sozinho, os policiais sempre chegavam para bater papo. O próprio chefe da delegacia chegou e falou: ‘Olha, será que você não podia ajudar a gente aqui a datilografar umas coisas?’. Respondi: ‘Claro!’. Eu não tinha o que fazer. Meu negócio lá era ler, fazer exercício no pátio, na hora do banho de sol…

R7 – E, mesmo na condição de preso, o senhor chegou a ir para a rua?

Anselmo – Houve. A primeira vez que houve uma circulação assim livre na rua foi quando houve uma chuva forte, que toda a parte do Alto da Tijuca ficou isolada. Então, toda a população ali se mobilizou para fazer assistência às pessoas. E o chefe que estava na delegacia, o investigador Marinho, se não me engano, disse: ‘Você não quer ajudar na escola?’. Eu disse: ‘Quero. Claro! Vou lá ajudar’. E fui lá para a escola para ajudar. Percorria algumas lojas pedindo material para alimentação. E eles levavam até a escola, onde havia um monte de pessoas. Eu ajudei um pouco ali e depois voltei. Até ganhei uma garrafa de vinho “Nau Sem Rumo”.

R7 – Mas, no momento da fuga, o senhor pagou uma propina para o policial que estava no plantão?

Anselmo – Não foi uma propina, não. O alemãozão que estava lá era um cara legal, tinha família etc. E eu tinha algum dinheiro. Bom, eu ia sair, não ia precisar mais daquele dinheiro. Alguém ia cobrir as minhas despesas. Então, eu cheguei e disse: ‘Toma aí! Para você!”. Eu sabia que ele era um cara casado, com filhos, com dificuldades etc. Foi muito mais uma ajuda para ele. Mas não como uma forma de comprar o cara. Todos eles tinham confiança. No convívio, se estabeleceu uma confiança. Não que eu fosse policial ou que tivesse me tornado policial ou coisa parecida. Foi uma confiança humana.

R7 – O senhor, então, conseguiria sair dali sem a propina?

Anselmo – Sim, sem dúvida nenhuma. E também, [para ser liberado] foi um papo de homem: ‘Olha, eu vou encontrar uma menina ali e tal, volto já’.

R7 – Foi a Ação Popular [grupo de esquerda] que o ajudou na fuga?

Anselmo – Não. A AP [Ação Popular] passou o trabalho para a Polop, Política Operária [outro grupo de esquerda]. A Polop que me transportou dali. Imediatamente fomos embora. Quando descobriram que eu não estava mais na cadeia, na prisão, eu já estava a meio caminho de São Paulo.

Capa do livro Cabo Anselmo: Minha Verdade, recém-lançado (Ed. Matrix, 256 páginas, R$ 39,90)/Foto: Divulgação

Cabo Anselmo confirma encontro com atleta cubana antes de ser preso: ‘Entreguei um chaveiro a ela’

A segunda prisão de José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, em junho de 1971, é um episódio controverso. Após sua fuga do Alto da Boa Vista, em 1966, Anselmo encontrou-se com Leonel Brizola (que do exílio tentava organizar a resistência contra os militares) e foi, então, enviado a Cuba para ter aulas de técnicas de guerrilha. Retornou ao Brasil em 1970, como integrante do grupo guerrilheiro VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Com um bilhete ao comando da organização, chega a encontrar-se, ainda em 1970, com líder Carlos Lamarca. Não há uma versão clara, porém, sobre como, no ano seguinte, a equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury localizou Anselmo em um apartamento da rua Martins Fontes, no centro de São Paulo, e o capturou. Nem o próprio Anselmo consegue explicar. Mas confirma ter-se encontrado, pouco antes de ser detido, com atleta cubana — uma das hipóteses é a de que ele teria sido seguido a partir de então. A imprecisão sobre como o ex-marinheiro foi rastreado foi apontado como mais um indício de que ele já seria um infiltrado desde os anos 1960. Anselmo nega. E conta como foi torturado naquele ano.

Confira a entrevista:

R7 – Um episódio que ainda deixa dúvidas é a sua segunda prisão, em 1971, no apartamento da rua Martins Fontes. O Edgar de Aquino Duarte estava com o senhor naquele momento [detido na mesma data, Edgar dividia o apartamento com Anselmo e está desaparecido até hoje]?

José Anselmo dos Santos – Não. O Edgar estava fora, estava no trabalho dele. Ele nem sempre estava ali, dormia em outro lugar. Aquele apartamento, ele alugou mais para me guardar. Mas ele passava lá quase toda tarde, quando saía do trabalho.

R7 – O Edgar estava fora da luta armada na época?

Anselmo – O Edgar estava. Olha, você quer saber uma coisa? Eu me surpreendi também lendo um livro, que baixei recentemente na internet: Todo Leme a Bombordo. Ali existe uma série de coisas sobre aquelas pessoas da associação [dos marinheiros]. Uma delas é que o Edgar teria participado de um grupo de guerrilhas lá no interior do Mato Grosso ou coisa parecida. E quando eu me encontrei com ele, no Uruguai, ele disse que não ia fazer nada. Ou seja: compartimentou a missão dele [a compartimentação era uma técnica usada pela guerrilha para proteger seus integrantes de delações: cada um guardava só para si sua missão]. Mas, quando acabou aquele negócio, ele se estabeleceu aqui em São Paulo e foi viver a vida dele. Estava absolutamente fora. Tenho certeza de que estava absolutamente fora.

R7 – Trabalhava na Bolsa?

Anselmo – Trabalhava na Bolsa de Valores.

R7 – Houve um depoimento recente na Comissão da Verdade de São Paulo […]

Anselmo – [interrompe] Comissão da mentira. Aliás, comissão da meia verdade, que é a verdade que interessa somente para o lado do pessoal de esquerda. Eu sei que eles querem encobrir todos os erros deles, como o pessoal da direita quer encobrir também. Todos os erros de uma guerra suja que ninguém esclareceu na totalidade.

R7 – Nesse depoimento, uma senhora chamada Maria José Wilhensen, que era próxima do Edgar, afirmou ter ouvido dele uma menção ao episódio do encontro com a seleção de vôlei cubana, no qual o senhor teria entregado à capitã do time um bilhete ou um presente destinado a Fidel Castro. Há uma versão de que o senhor teria sido seguido e preso a partir desse episódio. Esse encontro com a delegação cubana ocorreu? O senhor foi assistir a esse jogo?

Anselmo – Que jogo? Que jogo? A gente tinha ido ver um filme naquele cinema da avenida São João, Cine Espacial. Antigamente existia: era um cinema com três telas e não sei o que lá. Fomos ver um filme ali. Quando saímos do cinema, caminhando a pé para chegar até a Martins Fontes, em frente ao hotel San Raphael, estava aquele monte de gente da delegação cubana. Me deu um saudosismo naquele momento. Aí eu fui lá, eu tinha um chaveirinho que era um chapeuzinho de cangaceiro, e disse: ‘Olha, toma aí para você’. Entreguei para uma atleta. Isso é fato. Mas foi uma coisa assim: pluf-pluf. ‘Oi, tudo bem? Toma aí para você um presente’.

R7 – O presente era para a atleta? Não era para Fidel?

Anselmo – Que para o Fidel!? Aliás, Fidel Castro, eu tive diante dele, a quatro metros de distância, durante horas. Não me aproximei porque… sabe aquele negócio de o espírito não bater? E de ver assim a cara de prepotente. Eu digo: ‘Tem falsidade aí’. Não me aproximei.

R7 – No livro, ao tratar dessa sua segunda prisão, em 1971, o senhor menciona que o Aluízio Palhano Ferreira havia sumido [desaparecido político, Palhano era militante da VPR com quem Anselmo mantinha contato]. O senhor atribuiu a ele a sua captura?

Anselmo – Não. Não atribuo ao Palhano. Quando eles encontraram o endereço, a única pessoa que tinha aquele endereço era o Palhano. Ele era o chefe, o superior meu dentro daquele grupo. Digamos, era o comandante do negócio lá. Comandante de dois ou três. Muito bem. [Edson] Quaresma some [ex-marinheiro, militante da VPR], eu pego no jornal, está lá: morto. Daí eu vou encontrar com o Palhano, o Palhano sumiu. ‘E agora, José?’ A única pessoa que tinha, em código, o meu endereço era ele. O Carlos Alberto [hoje delegado de polícia, o então investigador Carlos Alberto Augusto agente do Dops] conta uma outra história. A história de um cheque que Edgar deu para um camarada para compra de um terreno etc. Eu fico com uma interrogação desse tamanho se foi esse cheque, ou se foi o Palhano, ou se eu já estava sendo seguido sem saber. Essa interrogação é muito grande. A única pessoa que poderia esclarecer, se quisesse, é o Carlos Alberto. Mas a história do Carlos Alberto… eu tenho dúvidas.

R7 – Há quem atribua a morte do Palhano ao senhor.

Anselmo – Ah, não! tsc-tsc-tsc.

R7 – Foi antes?

Anselmo – Foi antes. É só pegar as datas. Se você pegar os documentos, as datas etc., você vai ver. É tranquilo.

R7 – No livro, o senhor narra um encontro com uma pessoa em Ibiúna…

Anselmo – Não, não vou dizer quem é.

R7 – Mas havia uma mulher na sacada que seria do Dops.

Anselmo – É que a pessoa com quem eu me encontrei disse: ‘Você está vendo aquela pessoa na sacada? É uma agente do Dops’.

R7 – Nesse momento, o senhor estava com o Yoshitane Fujimori [militante da VPR morto pela repressão em dezembro de 1970].

Anselmo – Estava.

R7 – E o senhor acredita que foram seguidos a partir desse encontro?

Anselmo – Não. Não fomos porque nós entramos no mato. E no mato é muito mais fácil de observar quem que vem.

R7 – E por que o senhor não quer revelar quem é essa pessoa?

Anselmo – Você vai mexer em feridas…

R7 – Depois da captura, na Martins Fontes, o senhor foi levado ao DOPS e lá sofreu duas sessões de tortura? Ou foram mais?

Anselmo – Exatamente. Eu fui preso de tarde, umas três horas da tarde, por aí. Me botaram numa cela isolada e na madrugada do dia seguinte me levaram para a primeira sessão de porrada.

R7 – Quem que eram os torturadores? Henrique Perrone [policial da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury no Dops] estava entre eles?

Anselmo – Esse camarada aí era o chefe do negócio. Ele tinha um anel com uma caveira. E tinha outros. Eu não me lembro o nome dessa gente mais, não.

R7 – Nem apelido?

Anselmo – Eu não sei se tinha um Parreirinha. Deixa eu ver… Eu apaguei… Olha, é um troço tão doloroso que eu apaguei. Eu já citei outros nomes em outra ocasião, mas eu apaguei da minha memória esse troço. É um negócio muito ruim de lembrar. Muito constrangedor, é horrível.

R7 – Perrone participou da prisão do senhor?

Anselmo – Eu não sei. Um dos que eu me lembro que participou era chamado de Índio, um camarada com cara de índio, escura. Esse participou.

R7 – Carlos Alberto Augusto participou também?

Anselmo – O Carlos Alberto estava ali também. Estava.

 

 

Foto da capa do livro: Cabo Anselmo durante a Revolta dos Marinheiros, em 1964

Decisão de entregar companheiros de luta armada foi tomada após viagem a Cuba, diz Cabo Anselmo

José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, afirma que, depois de sua prisão em 1971, decidiu colaborar com a repressão conscientemente, pois havia se desiludido com o regime socialista após as passagens por Tchecoslováquia e Cuba. Anselmo afirma também que, mais do que um agente duplo, se considerava um prisioneiro do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Ele conta como ocorria sua colaboração, tanto na localização de militantes como na análise de interrogatórios de presos.

Confira a entrevista:

R7 – Como foi esse início dessa vida como agente duplo?

José Anselmo dos Santos – É. Eu já tinha a intenção de cair fora desde que estava em Cuba. Por causa do que eu vi, por exemplo, na minha passagem pela Tchecoslováquia, a experiência que tive por lá, na minha passagem por Cuba, durante os dois anos. E é gozado o seguinte: eu estive em Cuba nos dois anos e meio, mais ou menos, em que aqui se davam os maiores embates e assaltos [a banco promovidos pela guerrilha para financiar a luta armada]. Aquela coisa quente da guerrilha urbana eu não vivi. Cheguei aqui quando estava quase tudo acabado. Agora, veja, eu tinha já a intenção: ‘Bom, eu vou ser preso. E quando for preso, eu vou abrir o jogo’. Quando eu cheguei aqui, o que eu vi nessa nação? As pessoas na rua, trabalhando, pleno emprego, a liberdade, aquele negócio todo. Tinha até jornal falando contra o governo já. Quando eu vi aquele negócio, eu disse: ‘Algo está errado’. Daquela ideologização, daquela coisa vivida em Cuba… Era da água para o vinho. Então, eu já tinha essa intenção. Na hora em que fui preso, bom, fiquei calado no início porque tinha uma identidade falsa e eles não sabiam ainda quem eu era. Depois da primeira sessão de porrada, eles já sabiam quem eu era. Aí, partiram para a segunda sessão de porrada. E, no terceiro dia, eu fui levado para a presença do doutor Fleury [Sérgio Paranhos Fleury, um dos principais atores da repressão]. E disse: ‘Olha, não precisa mais, não. Está tudo bem. Agora eu colaboro com vocês. Eu vou ser informante de vocês. Não tem problema nenhum’.

R7 – Então a iniciativa partiu do senhor?

Anselmo – Não, não, não. Desculpa, não é isso. Não é que a iniciativa partiu de mim. Ele disse: ‘Você colabora e tudo bem’. Eu disse: ‘Está bom, colaboro e tudo bem. Como é essa colaboração? Quais são os termos dessa colaboração?’. ‘Bom, você vai fazer o ponto e, depois do ponto, nós seguimos a pessoa. Deixa que tomamos conta. É só isso’ [‘fazer o ponto’ é a gíria para os encontros, que ocorriam geralmente na rua, entre os integrantes da luta armada para troca de informação e material].

R7 – No livro, me pareceu haver uma tensão sobre essa época em que o senhor era agente duplo[…]

Anselmo – [interrompe] Você diz agente duplo. Na minha consideração, eu simplesmente era um prisioneiro dando informações para negociar minha própria liberdade. Uma liberdade que, depois, eu vim a reconhecer como mito. Hoje, até você está sendo vigiado 24 horas por dia. Basta ter um celular…

R7 – Mas é justamente essa tensão a que eu me refiro. Há momentos, em que o senhor atribui o seu papel de colaborador ao fato de ter sido torturado, de permanecer o tempo todo sob vigilância. Em outros momentos, o senhor se coloca como uma pessoa consciente que desejava combater o comunismo.

Anselmo – De fato. Os policiais fizeram aquilo porque não sabiam, não estavam dentro da minha cabeça para saber que eu já havia tomado essa decisão. Agora, eles que estavam com o preso, eles que colocariam os termos. Eu esperei que eles colocassem. Eu poderia dizer: ‘Não. Eu não vou fazer isso’. Ia continuar preso? Ia continuar levando cacete? Quando eu conscientemente já sabia…

R7 – Minha questão é a seguinte: Essa colaboração com a polícia, o quanto se deve à sua consciência e o quanto se deve à prisão, à tortura, à vigilância etc.?

Anselmo – A prisão, a tortura etc. foi somente assim uma ponte. Agora, conscientemente, desde Cuba eu sabia: ‘Eu não foi continuar fazendo isso. E, se a polícia me prender, eu falo’.

R7 – Sobre a suspeita de o senhor era, desde antes de 1964, agente da CIA […]

Anselmo – [interrompe] Ô! Você sabe, rapaz? Eu até tenho que cobrar os dólares desse último mês, porque eu não recebi ainda. Barbaridade! Eu não vou responder a isso porque é tão… [silêncio]

R7 – Na época em que estava à frente da associação dos marinheiros, em nenhum momento o senhor chegou a passar informações sobre o que se passava ali a seus superiores?

Anselmo – Não. Tudo o que eu fazia ali era público. O único encontro que eu tive com um almirante também tinha um outro companheiro da diretoria do lado. O resto era público, era notório.

R7 – Após o senhor aceitar colaborar, foi sempre [investigador, hoje delegado] Carlos Alberto Augusto que seguiu o senhor?

Anselmo – Desde o princípio.

R7 – E, após o ponto, os policiais do Dops se encontravam com o senhor?

Anselmo – Sim, claro.

R7 – Logo em seguida?

Anselmo – Logo em seguida. Eu fazia o ponto e deveria ir a um ponto de encontro onde eles estavam me esperando. Às vezes até voltava de ônibus.

R7 – E o senhor se encontrava com Fleury pessoalmente?

Anselmo – Eu ia para a prisão. Tinha uma cela que eu estava lá e me tiravam de lá para fazer o ponto.

R7 – Prisão no Dops?

Anselmo – No Dops.

R7 – Uma outra parte desse trabalho do senhor como agente duplo era a análise dos interrogatórios do Dops. Como era feito isso?

Anselmo – Como você descobriu isso?

R7 – Fui lendo por aí.

Anselmo – Lendo?

R7 – É, lendo.

Anselmo – Hum… É, está dito sim. O doutor Tuma me chamou algumas vezes, o pessoal que estava trabalhando com ele, para analisar as coisas que as pessoas diziam. Porque havia nomes conhecidos dentro daquele negócio. Conhecidos da VPR, etc. ‘Você conhece esse? Conhece esse? Conhece esse?’ Gente que havia estado em Cuba, tal, essa coisa toda. Então eu dizia: ‘O que ele está dizendo é verdade’, ‘o que ele está dizendo não é’, ‘isso aqui, eu acho que não é assim’. Esse era o tipo de coisa.

R7 – Isso era com Romeu Tuma?

Anselmo – Isso foi algumas poucas vezes com o doutor Tuma, lá no quinto andar, onde era a inteligência do Dops.

R7 – Era o próprio Tuma que te fazia perguntas a respeito dos interrogatórios?

Anselmo – Não, o Tuma não. Os rapazes que trabalhavam com ele. Eram três. Tinha um escrivão e dois rapazes que eram, sei lá, estagiários.

Cabo Anselmo durante a Revolta dos Marinheiros, em 1964/Foto: Reprodução

Cabo Anselmo fala sobre namorada morta após sua delação: ‘Fleury tinha prometido poupá-la’

Soledad Barrett Viedma era namorada do espião José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo. Nascida no Paraguai e treinada em Cuba, veio ao Brasil para militar na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Sua missão era, ao lado de Anselmo, montar uma casa de apoio no Recife. Só descobriu que o companheiro colaborava com a repressão em janeiro de 1973, pouco antes de ser apanhada pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O comando da guerrilha havia identificado a dupla atuação de Anselmo e enviou a ela uma mensagem para executar o traidor.

Detida, Sol, como Anselmo a chamava, foi torturada e assassinada ao lado de outros cinco militantes da VPR: Pauline Philipe Reichstul, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luis Ferreira, Jarbas Pereira Marques e José Manoel da Silva. O episódio ficou conhecido como Massacre da Chácara São Bento. Anselmo admite ter colaborado para a captura da companheira e nega que ela estivesse grávida. Segundo ele, o feto encontrado no IML junto aos corpos era o bebê de Pauline. O espião ainda acusa o delegado Fleury de não ter cumprido a promessa de poupar Soledad.

Confira a entrevista:

R7 – No livro, o senhor narra um encontro amoroso com uma mulher em Cuba, que termina numa ‘pousada’. Essa mulher é Soledad?

José Anselmo dos Santos – Não.

R7 – É outra mulher?

Anselmo – É outra.

R7 – Mas o senhor conheceu Soledad em Cuba.

Anselmo – É.

R7 – Não teve um contato amoroso com ela lá?

Anselmo – Não, a Soledad era companheira do Francisco [codinome do militante José Maria Ferreira de Araújo, ex-marinheiro]. Nós éramos muito amigos, todo mundo do grupo era amigo. E eu era fotógrafo, aprendi fotografia lá. E eu fotografei a filha da Soledad até que ela deu os primeiros passos.

R7 – A Ñai?

Anselmo – É, a Ñasaindy.

R7 – Com relação à morte dela, após ela ser capturada a partir de sua atuação, o senhor narra no livro que havia uma promessa de Fleury para poupá-la[…]

Anselmo – [interrompe] Eu pedi. Eu pedi e ele prometeu.

R7 – Ele prometeu?

Anselmo – Prometeu.

R7 – Na entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2011, o senhor afirmou que ele não havia dito nada.

Anselmo – Não, ele não tinha dito nada de que iria prender e… [silêncio]

R7 – O senhor não imaginava o desfecho?

Anselmo – Não. De maneira nenhuma, de maneira nenhuma. Eu via todo mundo ser preso. Ser preso, levar cacete para poder dar mais coisa etc. Como eu podia imaginar que houvesse outro tipo de coisa? Mas de modo nenhum. Não.

R7 – Mas havia outros militantes, companheiros do senhor, que haviam sido presos e, após a prisão, mortos. O senhor tinha essa informação.

Anselmo – Não. Companheiro morto após a prisão? Quando eu cheguei no Brasil, Marco Antônio [da Silva Lima, um dos líderes dos marinheiros] já tinha morrido, o marido da Soledad [José Maria Ferreira de Araújo] já tinha morrido. Olha, a gente está tratando de pessoas que… aqueles da associação dos marinheiros que foram para lá [Cuba] eram caras fantásticos. Era gente boa de coração que estava envolvida dentro de um negócio que não entendia direito. Agora, no caso em que você me perguntou aqui, da Soledad, quando já estava lá no Recife, nós — eu, ela — conversávamos que: ‘Esse troço daqui não tem futuro’. E várias vezes eu disse para ele: ‘Olha, por que você não vai para Cuba e fica com a Ñai?’. Ela já estava decidida a fazer isso. Nessa ocasião, então, eu falei a ela e ao irmão dela: ‘Deixa isso aí’. O irmão não tinha nada a ver com o grupo, ele estava de visita, casou com uma menina lá que não tinha nada a ver com política, absolutamente. O Jorge era um artista. Ele compunha, o negócio dele era compor.

R7 – No dia da prisão de Soledad, o senhor sabia que ela seria presa?

Anselmo – Sabia. Naquele instante eu sabia que ela seria presa porque ela tinha sido seguida saindo de casa. E já todo mundo estava sabendo que eu estava imobilizado para decidirem o que iriam fazer comigo. E essa decisão seria… ‘piz’! [a VPR havia decidido matá-lo]

R7 – O senhor viveu com ela no Recife por quanto tempo?

Anselmo – Um ano ou mais.

R7 – E o [investigador, hoje delegado] Carlos Alberto Augusto ficava com o senhor o tempo todo.

Anselmo – Ficava.

R7 – Como se davam os encontros com ele sem que Soledad soubesse.

Anselmo – Eu e a Soledad montamos uma fachada. Era uma lojinha que vendia blusas bordadas a mão. Eu vi que naquele mercado não existia isso. E depois, como no Paraguai o pessoal borda muito, resolvemos fazer blusas bordadas a mão para vender para turista. Ela contratou uma moça que era costureira. Montamos a lojinha lá e ao lado da lojinha tinha uma garagem. Fechamos a garagem e, como a gente tinha, em Olinda, contatos com artistas, a cada tempo se fazia ali uma mostra de quadros dos artistas locais para que a imprensa fosse e para divulgar a loja. Então, ela ficava lá no trabalho dela, eu saía.

R7 – Foi Carlos Alberto que, pouco antes da prisão de Soledad, informou o senhor que a VPR havia decidido executá-lo?

Anselmo – O Carlos não. A gente que sabia.

R7 – O senhor sabia?

Anselmo – Sabia.

R7 – Como o senhor soube?

Anselmo – Eu li.

R7 – Leu a mensagem que foi passada para Soledad?

Anselmo – Sim.

R7 – Ela mostrou para o senhor?

Anselmo – Mostrou.

R7 – E…

Anselmo – Ela mostrou e depois disse: ‘Eu vou sair’. E saiu.

R7 – Foi naquele momento que ela foi presa?

Anselmo – Uhum [afirmativo]…

R7 – Ela mostrou para que o senhor fugisse?

Anselmo – Não, porque na casa havia outras pessoas ali comigo.

R7 – Essas pessoas foram presas também?

Anselmo – Foram presas.

R7 – Fazem parte dos seis [mortos no Massacre da Chácara São Bento]?

Anselmo – Não. Era pessoal da família da mulher do Jorge. Estava a irmã da mulher do Jorge, a mulher do Jorge. Estavam crianças da família dela.

R7 – Então Soledad deu uma oportunidade para que o senhor fugisse antes que fosse executado pela VPR?

Anselmo – [silêncio] Tanto que eu cheguei até a janela, o Carlos [Alberto Augusto] apareceu lá embaixo na porta de um boteco e fez um sinal: ‘Sai, vamos’. Daí eles entraram, subiram para me dar uma retaguarda e cobertura. E eu fui direto para o aeroporto.

R7 – Em nenhum momento, o senhor chegou a pensar em abrir o jogo para ela?

Anselmo – Daquilo tudo? Não… Ô, cabra, ela tinha tomado uma decisão na vida dela. Ela tinha toda uma formação de um lar comunista, tinha estudado na [universidade] Patrice Lumumba, na Rússia, tinha passado pelo Chile, depois por Cuba, onde se juntou com esse companheiro da gente, ex-marinheiro. Teve uma filha lá. Eu nem imaginava que ela fosse abandonar a filha e vir para cá. Quando ela chegou, tudo bem. ‘Opa, uma pessoa conhecida. Querida e tal’. Agora, ela veio para ser, sei lá, a mulher que era a minha fachada. A partir daí, nós nos relacionamos amorosamente e… ela era uma pessoa doce. Agora, era enérgica em relações às questões da ideologia. Ela tinha preparação desde a infância.

R7 – O que aconteceu imediatamente depois desse resgate do senhor?

Anselmo – Eles me levaram para o aeroporto de Guararapes. Havia um voo de um avião militar, da FAB. Eu vim para São Paulo, me botaram em um hotel. Eu fiquei no hotel aguardando algum tempo até que… Na manhã seguinte, fui ler o jornal e… Foi o pior dia da minha vida, posso dizer, tive um choque, uma dor imensa de ver na manchete as fotografias do que havia acontecido no Recife [o Massacre da Chácara São Bento]. Foi uma das piores experiências na minha vida. A pior. Da minha vida toda.

R7 – O senhor afirma no livro que Soledad não estava grávida.

Anselmo – Não. Não estava, não estava. Você tem aí a prova no livro.

R7 – O senhor menciona que ela teria ido a um posto de saúde para colocar um DIU. Onde exatamente aconteceu esse procedimento?

Anselmo – Olha, logo que ela chegou, ela passou algum tempo aqui em São Paulo sem que eu tivesse contato. Eu estava no Recife. Até que houve uma pessoa que chegou lá no Recife com uma mensagem que disse: ‘Olha, você vai para São Paulo fazer o ponto com a pessoa que você vai trazer para cá’. A pessoa nem sabia quem era. Eu viajei a São Paulo e fui até o local para o encontro. Quem surge? Soledad. Daí eu fui com ela para o Recife e um mês, dois meses depois que a gente estava no Recife, ela fala no negócio de abortar, que ela estava com um filho que não era desejado… Então eu a trouxe para São Paulo de novo, pois eu tinha morado numa pensão ali na Vila Mariana, numa casa dessas em que se aluga quarto, e conheci uma senhora, muito amiga minha, que tinha abortado várias vezes. Fui lá, apresentei, e a pessoa a levou para fazer o aborto. Passamos ali alguns dias nessa mesma pensão, até ela se recuperar um pouco, e voltamos para o Recife. No Recife, logo que ela chegou, foi a um posto de saúde e colocou um dispositivo intrauterino, um DIU.

R7 – Então foi em um posto de saúde do Recife?

Anselmo – Foi no Recife.

R7 – Que posto de saúde era esse?

Anselmo – Não, não. Ela foi com a mulher do Jorge, a Leninha. Era amiga dela. Eu estava aplicado em outras coisas, entende? A minha parte, que ela não sabia, de ‘fazer a revolução’ [a compartimentação de informação]. Enquanto que ela tinha a parte dela, que eu não sabia. As ordens dela de ‘fazer a revolução’. Isso é compartimentação. Cada um tem uma coisa que fazer.

R7 – O senhor afirma que era Pauline que estaria grávida.

Anselmo – A Pauline, sim. A Pauline chegou na nossa casa de apoio uma vez e foi com a própria Sol [Soledad] a um posto de saúde porque estava com problema de gravidez.

R7 – Isso ocorreu quanto tempo antes da prisão e morte dos seis?

Anselmo – Olha, você está com um espaço aí de um ano. Digamos menos três meses, nove meses. Nove meses, digamos. Você está com um tempo aí de um tempo de gestação, normal.

R7 – O senhor nunca teve dúvida sobre isso?

Anselmo – Eu fiquei na dúvida até há pouco tempo, quando eu vi a entrevista do Jorge. Eu tinha uma baita dúvida: ‘Como é que pode?’. Ela tinha o dispositivo, nós tínhamos todo cuidado nesse sentido. Nenhum queria mais fazer outro aborto ou coisa parecida. E, depois, naquela própria condição de vida, não dava para fazer aquilo. Fazer filho? Eu sabia que a Pauline estava… Então eu desconfiava: ‘Poxa, houve uma troca aí. Mas quem que fez essa troca? Foram os médicos? Foram os policiais? Ou será que foi a imprensa para mostrar o monstro que era o Anselmo?’. Eu tinha dúvida nesse sentido. Mas quando eu vi a entrevista do Jorge [depoimento no site Documentos Revelados]: ‘Ai, que alívio!’. Porque ali ele determina uma coisa: a doutora Mércia, que era a advogada que foi ao IML, ela pegou a fotografia da Pauline e a fotografia da Soledad e trocou, simplesmente.

 

Cabo Anselmo durante a Revolta dos Marinheiros, em 1964/Foto: Reprodução

Cabo Anselmo lista guerrilheiros que delatou

Edson Neves Quaresma e Yoshitane Fujimori foram mortos em dezembro de 1970. Aluizio Panhano Pedreira Ferreira desapareceu em maio de 1971 após ser capturado. Os três haviam tido contato com José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, antes de sua prisão, em junho de 1971. As “quedas” dos militantes foram apontadas como mais um indício de que ele já colaborava com o regime. Anselmo chega a dizer que Fujimori foi vítima de sua atuação, mas depois nega.

Na entrevista abaixo, ele faz referência a pessoas que o levaram até o líder da VPR, Carlos Lamarca, ainda 1970. Inês Etienne Romeu foi a guia de Anselmo no encontro. Poucos meses depois, ela foi capturada pela equipe de Fleury e se tornaria a única sobrevivente das torturas da Casa da Morte, em Petrópolis. O espião nega envolvimento na detenção de Inês.

Anselmo confirma, porém, ter colaborado com a captura de seu ex-colega de Marinha José Raimundo da Costa, integrante da VPR, e de Carlos Eugênio Paz, o Clemente, militante da ALN.

Confira a entrevista:

R7 – O senhor nega a estimativa de que 200 pessoas foram presas a partir de sua atuação. Tem, então, ideia de quantos foram presos, mortos ou desapareceram a partir da colaboração do senhor?

José Anselmo dos Santos – Não, não tenho. Durante os pontos feitos em São Paulo, digamos que cada ponto rendesse outra pessoa, que levava a outra e assim vai. Como você vai saber?

R7 – Essa ação em São Paulo ocorreu somente em 1971?

Anselmo – Sim.

R7 – Depois disso, o senhor estava no Recife?

Anselmo – Sim, sim.

R7 – Há alguns casos de pessoas que teriam desaparecido a partir da sua atuação. Um deles é Luiz Araújo de Almeida, da Ação Libertadora Nacional, a ALN [grupo de esquerda], que teria levado Paulo de Tarso Celestino [desaparecido em julho 1971] a um encontro com o senhor. O senhor se lembra desse episódio?

Anselmo – Eu não lembro com quem eu me encontrava. Olha, com o Clemente [Carlos Eugênio Paz, outro militante da ALN, que está vivo] eu tenho certeza.

R7 – Clemente [Carlos Eugênio Paz] narra, em uma entrevista ao site Ópera Mundi, um episódio em que foi perseguido de automóvel por Fleury, na Vila Mariana, após encontrar-se com o senhor…

Anselmo – Eu li isso, eu li. Eu achei um pouco fantasioso pelo seguinte: o único encontro que eu tive com o Clemente foi em Santo Amaro e ele me passou um revólver. Nos encontramos numa rua, tinha o negócio da senha e tal. Ele me encontrou, me passou um revólver. Ele foi para um lado e eu fui para o outro.

R7 – Não houve um encontro num apartamento?

Anselmo – Não, não. Eu acho que isso aí já é exagero, fantasia, sei lá. É mito. Agora, eles estão no pleno direito de dizer qualquer coisa, porque eles têm toda uma organização para montar aquilo que eles quiserem dizer dentro dessa história. E eu sou um único. E é a primeira vez que eu estou falando… “A minha verdade” [título do livro].

R7 – Na época em que colaborava, o senhor se encontrou com José Raimundo da Costa?

Anselmo – José Raimundo, sim.

R7 – José Raimundo foi capturado depois de se encontrar com senhor?

Anselmo – Sem dúvida nenhuma.

R7 – Há alguma outra pessoa?

Anselmo – Ah! O Fujimori. [silêncio] O Fujimori? Não. O Fujimori não. O Zé Raimundo, o Clemente, sim. Tem pessoas que não foram presas, pessoas que me levaram de São Paulo para o Rio, para o encontro com o Lamarca. Aliás, não. Nessa época, nessa época, eu nem estava nisso [atuando como agente duplo].

R7 – Inês Etienne Romeu?

Anselmo – A Inês não. Eu nem tive contato com ela durante esse período em que eu estava… preso.

R7 – Na morte de Edson Quaresma o senhor também não teve envolvimento?

Anselmo – Também não. Foi antes, muito antes.

R7 – Ele morreu com Fujimori.

Anselmo – Eu não tenho nem ideia de quando o Fujimori foi… Ah é! Estava junto, é verdade. Acho que foi no mesmo caso. No mesmo tiroteio lá que morreram os dois [A versão oficial, na época, era de tiroteio].

R7 – No livro, o senhor narra muito rapidamente o encontro com o Onofre Pinto [um dos líderes da VPR] no Chile. Como foi esse contato?

Anselmo – É. Eu havia perdido os contatos aqui, né? Perdi todos os contatos… Eu, então, viajo para o Chile para refazer contatos. Penso: ‘Bom, e agora? Como é que é?’ E decido: ‘Eu vou ao Chile, faço contatos e vai continuar a mesma coisa. Eu faço o ponto e a polícia se encarrega’.

R7 – Mas, sem contatos, como o senhor encontrou o Onofre lá?

Anselmo – Ah, tá! Durante a viagem que eu fiz para Cuba, passando pela Tchecoslováquia, eu fiquei em um hotel internacional e conheci duas meninas chilenas. Então, eu e o outro menino que estava comigo fizemos contato com essas duas chilenas. Estávamos sempre juntos, fomos a teatro juntos, passeamos juntos. E eu sabia do nome das meninas chilenas [não usavam codinomes]. Eu tinha o telefone de uma delas. Fui a Santiago, telefonei, nós nos encontramos. E ela disse: ‘Olha, quem vai poder te ajudar nisso é a outra moça’. Aí me colocou em contato com a outra moça, que era ativista e tinha contato com o senador Altamirano [Carlos Altamirano Orrego, então secretário-geral do Partido Socialista do Chile]. Eu tinha conhecido o senador Altamirano em Cuba, na conferência da OLAS [Organização Latino-Americana de Solidariedade, composta por movimentos de esquerda latino-americanos]. Então, ela me conduziu ao gabinete do Altamirano. Ele mandou que eu esperasse no hotel e, um dia depois, foi dado o contato. E o contato era… o Onofre Pinto.

R7 – E, mesmo no Chile, o [investigador, hoje delegado] Carlos Alberto continuou te seguindo?

Anselmo – Não, o Carlos Alberto não foi. Mas que durante todo tempo havia seguimento, havia.

R7 – Inclusive no Chile?

Anselmo – Inclusive lá no Chile.

R7 – O senhor lembra quem era?

Anselmo – Nem sabia quem era. Só sabia que estava presente.

R7 – Mas isso era uma desconfiança do senhor ou o senhor tinha certeza?

Anselmo – Não era desconfiança, não. Era certeza. O próprio pessoal aqui, o Fleury no caso, disse: ‘Você vai estar coberto o tempo inteiro’. Coberto significa: ‘Alguém vai estar vigiando você o tempo inteiro’.

R7 – O senhor não chegou a pensar em pedir asilo no Chile?

Anselmo – Se eu pedisse asilo naquele instante… Quando eu fui ao Chile, o Chile já estava comunista. Eu iria pedir asilo, também sendo contrário? Conscientemente, eu era contrário àquilo. Eu ia pedir asilo dali para quê? Para ficar distante do meu País. Não, eu nasci aqui e tenho que morrer aqui. É aqui que eu tenho que pagar meus pecados e morrer. Eu posso ir lá, achar muito bonito. Conhecer a França, conhecer a Itália, conhecer a Suíça, passar pelo Canadá, pela Irlanda. Eu passo, lindo, poxa. Mas simplesmente um passeio cultural. Agora, a minha raiz está aqui. Comer mandioca, tapioca.

R7 – O senhor conhecia outros infiltrados?

Anselmo – A informação que eu tinha era informação lá de dentro. Se você quiser saber alguma coisa mais, e se ele quiser falar, procure o Carlos Alberto.

R7 – O senhor não conheceu nenhum outro infiltrado?

Anselmo – Não. Eu li alguma coisa… Vamos lá: isso aqui é ilação. Eu li, penso: ‘Puxa, aconteceu isso, pode estar acontecendo isso’. Eu li que pessoas fizeram também o trabalho de informação, depois trocaram de nome e estão vivas até hoje. E as famílias nunca tiveram contato: são desaparecidos. E as famílias recebem indenização.

R7 – Quem seriam essas pessoas?

Anselmo – Ah! [aceno negativo] Você acha que, se alguém fez isso, vai dizer? Não vai nunca dizer.

R7 – O senhor não tem possíveis nomes?

Anselmo – Não, não. De leituras que eu fiz, eu cheguei a essa conclusão. E, se você for pesquisar, você vai ver três ou quatro nomes que estão lá postos.

 

 

Soledad Barrett Viedma, namorada de Anselmo, capturada com a colaboração dele e morta pela repressão

A cirurgia plástica de Cabo Anselmo, a vida atual e a participação nas manifestações anti-Dilma

 

Em 1973, a ação que levou às mortes de Soledad Barrett Viedma e outros cinco integrantes da VPR no Massacre da Chácara São Bento foi a última de José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, como agente infiltrado. Reconhecido como traidor e condenado à morte pelo comando da guerrilha, Anselmo desaparece e passa por cirurgia plástica. Nesta entrevista, ele fala da criação de uma empresa de consultoria de recursos humanos, de sua vida atual. E revela ter participado da primeira manifestação anti-Dilma, em 15 de março deste ano, no Rio de Janeiro.

Confira a entrevista:

R7 – Nesse período após 1973, a plástica ajudou? O senhor nunca foi reconhecido na rua?

José Anselmo dos Santos – A plástica ajudou bastante. Eles botaram um pedaço de osso aqui [no nariz]. Está visível. Então o nariz deixou de ser assim [formato côncavo] e passou a ser assim [convexo]. E pegaram outro pedaço da costela, tiraram aqui, e botaram aqui [na sobrancelha]. Tem um amontoado aqui para ganhar testa. No princípio, quando minha mãe chegou para ficar comigo e eu fui recebê-la no aeroporto, ela não me reconheceu. Depois ela olhou para mim e fez: ‘Meu filho! O que fizeram com você!?’.

R7 – Isso foi em 1973?

Anselmo – É. A partir daí de 1973, eu fui trabalhar com uma empresa de corte e transporte de madeira, de um delegado de polícia do Dops que era uma pessoa rica. O pai dele tinha várias fazendas de café. Não tinha nem necessidade de ele estar na polícia: Affonso Celso de Lima Acra. Era um bon vivant. Aquilo lá [o trabalho na polícia], para ele, não significava nada, era só status. Ele me levou para administrar o negócio do corte de madeira. Fazia transportes de eucaliptos para a fábrica de papel Simão. Eu tinha meu ganho mensal, essa coisa toda. Mas não tinha registro. Pouco tempo depois, veio a minha mãe e foi alugada uma casa. Eu pagava aluguel porque eu já estava trabalhando. Mas o aluguel estava em nome de outra pessoa. Uma casinha lá em Guarulhos, uma casinha geminada. E eu morei lá com a minha mãe por muito tempo.

R7 – O senhor passou todo esse período, até o fim dos anos 1990, nessa empresa?

Anselmo – Não. Depois de um tempo, eu saí da empresa do doutor Acra e, eu tinha uma companheira… E também não me pergunte nome, nem nada porque eu não vou dizer. Ela morreu também, mas tem toda a família dela e eu não quero absolutamente causar constrangimento. Como fiz com a minha família durante muito tempo. Então, com essa companheira, nós montamos uma pequena empresa de consultoria.

R7 – Consultoria?

Anselmo – Consultoria de recursos humanos para empresas. Eu comecei a fazer cursos. Ler tudo que tinha sobre administração empresarial. Alvin Toffler, por exemplo, me ajudou muito. Um dos primeiros trabalhos que eu fiz foi, por exemplo, entrevistar 830 empregados de uma empresa. E depois traçar um layout operacional e fazer um relatório de sugestões para aquela empresa. Foi tudo aceito, parte foi feito, funcionou muito bem. A partir daí veio mais uma, outra, outra, outra. E no final, a gente trabalhava muito com treinamento de pessoal. Eu montei cursos, trabalhei com o Senac, trabalhei com um monte de empresa. Fazia treinamento empresarial. Muito bem, aí nós chegamos à entrevista para o livro Eu, Cabo Anselmo [depoimento de Anselmo ao jornalista Percival de Souza, publicado em 1999].

R7 – O senhor menciona, no livro, ter trabalhado com PNL [programação neurolinguística]. O senhor usou a PNL também para pensar sobre sua própria vida?

Anselmo – Ah, não foi a PNL que me ajudou a pensar. Eu pensei. Eu li todo Freud, Adler, Jung. Li, não. Estudei. Detestei o Freud, amei o Jung. O Adler meio lá, meio cá. Karen Horney. E vai por aí. Li muita gente do meio psicológico para saber que diacho era aquilo. Depois eu conheci um curso de desenvolvimento espiritual. Aprendi muita coisa, foi bom. E depois veio a Sociedade Brasileira de Programação Neurolinguística. Eu fui fazer aquele fim de semana [treinamento]. ‘Esse troço é legal’, pensei. Aí passei na Summus Editorial e comprei tudo que tinha de livro sobre programação neurolinguística. Sapos em Príncipes, Atravessando, Transformando-se e vai por aí. Li todas aquelas escolas de programação neurolinguística. Li tudo. E comecei a pegar coisa dali e praticar, inclusive no treinamento do pessoal. A programação neurolinguística foi bom para mim. Mas foi muito melhor para mim trabalhar, travar relacionamentos. Quer dizer: autoestima. Poder pensar: ‘Eu posso fazer por mim, pela minha vida e pelos outros’. Eu tenho o princípio: ‘Se eu não estou servindo aos outros, de quem eu dependo, qual seria a outra coisa a fazer?’. Minha missão na vida é essa, acabou.

R7 – Em 1999, a partir da publicação do livro Eu, Cabo Anselmo e de uma reportagem na TV, a sua nova imagem, após a plástica, tornou-se pública.

Anselmo – É. Aí eu tive que abrir mão de todas as empresas com quem eu trabalhava porque senão eu seria reconhecido.

R7 – E do que o senhor vive hoje?

Anselmo – Tem umas pessoas que botam um dinheirinho para mim na conta de um amigo meu e o meu amigo vai lá no banco, tira e me dá.

R7 – Mensalmente?

Anselmo – Sim, senhor.

R7 – Pessoas da época em que o senhor atuou no Dops?

Anselmo – Não, pessoas que eu conheci depois. Pessoas até que o Carlos Alberto me apresentou. Mas é empresário, esse tipo de gente.

R7 – O [investigador, hoje delegado] Carlos Alberto Augusto não?

Anselmo – Ele não tem onde cair morto. O Carlos Alberto casou, divorciou, ainda paga plano de saúde para filha e para o filho que já são adultos. Carlos Alberto é um Dom Quixote. O Dom Quixote está lutando num terreno que não é o dele, que não existe. E, do outro lado, Dom Quixote está buscando o amor das mulheres. E, ainda, Dom Quixote está dando tudo o que pode. Ele é um sonhador.

R7 – Carlos Alberto reapareceu agora, ficou em evidência em reportagens de TV, durante as últimas manifestações.

Anselmo – Eu vi.

R7 – O que o senhor achou? Teve vontade de participar das manifestações também?

Anselmo – Eu participei de uma.

R7 – Qual?

Anselmo – A do Rio. Achei fantástico.

R7 – A primeira delas? De 15 de março?

Anselmo – A primeira. Achei um troço fantástico.

R7 – Subiu em carro de som?

Anselmo – Não, não. Eu passei pela avenida. Mas não foi gritando, nada disso. Eu sou observador. O negócio é o seguinte: eu acho que a população toda tem que se manifestar. E quando você vê hoje as pesquisas de opinião, vê que a governante está com 9% de aprovação, eu fico pensando: ‘Poxa, como é que pode?’. Depois você vê a fala da moça, o jeito que ela fala, ‘mandioca’, ‘mulher sapiens’. Como é que pode um negócio desse?

R7 – O senhor chegou a ser reconhecido na passeata?

Anselmo – Não.

R7 – Desde a divulgação de sua imagem, em 1999, alguém te reconheceu?

Anselmo – Reconheceu, veja você. Quando eu dei entrevista na TV Cultura, no Roda Viva, eu dormi num hotelzinho e, no dia seguinte, fui para rodoviária tomar um ônibus para ir para o lugar onde eu estava. Ali, um sujeito gritou: ‘Eu vi você, você é o fulano e tal, gostei’. Eu tomei um susto danado naquele momento.

R7 – Foi o único momento?

Anselmo – Ah, não! Também no Rio de Janeiro uma mulher que estava num daqueles grupos ali me reconheceu. Ela chegou e disse: ‘Você é o fulano!’. Aí eu fiz que não era comigo, dei as costas e fui…

R7 – Na passeata?

Anselmo – É, é. Pode até ter sido uma pessoa com quem eu convivi naquele tempo, né? Sei lá.

R7 – O senhor diz que perdeu sua carteira de identidade naquela época e não recuperou até hoje. Como está essa situação?

Anselmo – Opa! Você tem uma para mim aí? Está como você viu [no livro].

R7 – Mas há alguma ação na Justiça?

Anselmo – Eu não tenho um tostão para pagar advogado. O que me dão, dá para mal comer.

R7 – O senhor conta que já houve um comparativo entre as suas digitais e as digitais de seu cadastro na Marinha.

Anselmo – Claro.

R7 – E o que ocorreu?

Anselmo – A Marinha disse que não podia dar o documento.

R7 – Já chegou a ser parado na rua pela polícia e não ter como explicar essa falta de documentos?

Anselmo – Não. Sou um velho de cabelo branco.

R7 – Após sua nova imagem ser veiculada, em 1999, o senhor chegou a receber alguma ameaça?

Anselmo – Não. Só… você lendo determinados blogs, você vê pessoas que eram militantes, extremistas que perderam amigos ou que perderam familiares etc… Quer dizer: toda a esquerda mais comprometida com o movimento guerrilheiro, a mais radical, sem dúvida, tem ódio de mim. Eu não odeio ninguém. O mais importante para mim, sabe o que é? É o meu espírito. Estando de bem com isso aqui, eu te reconheço como parte de uma totalidade que nos perpassa. E que, se eu não estou te servindo, não estou fazendo nada.

‘Tenho a consciência tranquila’, afirma Cabo Anselmo

 

José Anselmo dos Santos afirma que escreveu a autobiografia Cabo Anselmo: Minha Verdade porque devia essa narrativa à sua família. No último trecho desta entrevista ao R7, Anselmo fala de suas convicções. E diz ter a consciência tranquila.

Confira a entrevista:

R7 – O que o motivou a escrever o livro? É um acerto de contas com sua história?

José Anselmo dos Santos – Eu devia essa história às pessoas da minha própria família, aos meus amigos e para as novas gerações do Brasil que não viram aquilo lá. Você está em um ambiente hoje que é bem diferente daquilo. O ambiente do mundo globalizado, da comunicação em tempo real, o ambiente em que você tem a informação que quer na própria mão.

R7 – Desde 2009 o livro estava escrito. Por que publicá-lo só agora?

Anselmo – Eu tenho um tipo de vida que é dependente de outras pessoas tomarem ou não iniciativa. Então, eu passei esse livro para uma pessoa que disse: ‘Eu vou buscar uma editora’. Mas essa pessoa — uma pessoa muito querida que até me ajudou a rever algumas coisas ali, a escrever algumas coisas —, por motivos de trabalho, não publicou. Num determinado instante, eu conheci uma outra pessoa que disse: ‘Ah! eu arrumo um editor!’. Essa pessoa foi a Marta Serrat. Ela me entrevistou há dois anos e disse: ‘Eu arrumo um editor’. Então, eu comecei a retrabalhar o livro e, finalmente, ela arrumou a Matrix, que topou a parada de fazer a edição.

R7 – Essa primeira pessoa, que não conseguiu o editor, te ajudou a escrever?

Anselmo – Ele fez duas leituras extensas comigo, em fins de semana. Inseriu coisas, mas eu tirei. Quer dizer, ele se dedicou nesse sentido.

R7 – Em determinado momento do livro, o senhor diz que os militares exerceram ‘uma ingrata, mas patriótica função constitucional’. Para o senhor, a ditadura foi isso?

Anselmo – Você tinha naquele instante um mundo dividido, ambientado na Guerra Fria. Os militares do Brasil, naquele instante, tinham sido formados onde? Nos Estados Unidos. A escola de formação dos militares era os Estados Unidos. O que os militares fizeram no momento? Os militares foram garantir a estrutura do poder, a instituição econômica do mundo ocidental, naquele momento, aqui. E os militares, ideologicamente, eram democratas naquele instante.

R7 – O senhor, então, acredita que os militares defenderam a democracia?

Anselmo – Naquele instante. A consciência, naquele instante, era essa. Tanto que, na rua, saiu gente a chamado das mulheres… tomaram a rua na Marcha da Família. Era gente de toda parte. Não era só estudante, como foi o negócio do Collor. É fácil, você deve saber perfeitamente isso, formar opinião num grupo, esse grupo se transformar numa massa crítica, e aí sair movimento na rua, tal, que vai num crescendo…

R7 – No livro, o senhor diz também: ‘Se há alguma liberdade no Brasil hoje, eu contribuí para isso’. O senhor acredita que o Brasil deve te agradecer?

Anselmo – Não, não, não. Eu não quero que agradeça, não. Eu contribuí de livre e espontânea vontade como missão. Ninguém no Brasil deve agradecer nada a nenhum herói, líder, não sei o que lá… Não. Cada brasileiro é um herói quando está trabalhando, levando a comida para casa, educando seus filhos, participando de comemorações, tomando sua cerveja no fim de semana, com a sua pizza, indo ao culto da sua igreja, seja ela qual for.

R7 – O senhor tem a consciência tranquila?

Anselmo – Ah sim. Claro. Sabe por quê? Sabe por que eu tenho a consciência tranquila? Eu não acorrentei ninguém, nem disse que fosse para lá fazer aquilo. A decisão foi pessoal, a decisão foi de cada um, a ideologia era de cada um, a formação era de cada um. Não fui eu. Agora, era um momento de guerra. Tudo pode acontecer na guerra. Era uma guerra não declarada. É o que acontece na guerra dos morros: a polícia vai lá e mata o bandido. Ele é bandido porque eu mandei ele ser bandido?

R7 – Há casos desses que são execuções.

Anselmo – Sim. Onde é que não tem isso? Do outro lado também não teve execução? O próprio Clemente conta da execução que ele fez. Ele tem a consciência tranquila porque matou um sujeito em defesa da coisa dele. Em defesa da revolução comunista [Em 2012, Carlos Eugênio Paz, o Clemente, afirmou, entrevista ao programa Dossiê Globonews ter participado da execução de um companheiro condenado à morte pelo comendo da guerrilha].

R7 – O senhor falou em heróis… eu queria terminar com a seguinte questão: O senhor se considera um herói? Ou um traidor?

Anselmo – Eu traí a pátria, traí o juramento no momento em que fui para Cuba. Traí o meu povo naquele instante. Agora, eu não fiz nenhum juramento à bandeira cubana, à bandeira soviética, nem à foice e ao martelo, nem ao Marx, nem ao Engels, nem ao Lenin, nem ao Trótski, nem ao Stalin. Não fiz. Eu fui envolvido dentro de um negócio, fui para lá, sem opção. O Brizola não me perguntou: ‘Quer ficar aqui estudando? Quer ir para Itália?’ Não. ‘O companheiro vai para lá para fazer um treinamento de táticas e técnicas de guerrilha’.

R7 – E Soledad? O senhor não a traiu?

Anselmo – Mas de que modo eu traí a Soledad? A Soledad tinha desde a infância uma opção de vida. Eu só poderia ficar junto, me casar com uma moça como a Soledad, se ela não estivesse naquilo. Mas a opção de vida foi dela, a escolha foi dela. Ela não poderia, por exemplo, fazer uma outra escolha, que, para mim, seria muito mais racional, lógica e humana: ficar criando a filha dela em Cuba?

R7 – Ela tinha confiança no senhor.

Anselmo – Mas ela não veio para cá para… Ela nem sabia que ia encontrar comigo. Ela não sabia com que ela ia encontrar. Como eu não sabia que ia encontrar com ela em São Paulo para ir lá para o Recife. Ela veio por uma decisão de fazer a guerrilha no Brasil. A guerrilha internacional.

 

 

Fonte – R7

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