Pela primeira vez, a Justiça brasileira decidiu que os crimes praticados por militares durante a ditadura são considerados crime contra a humanidade
Rubens Paiva foi dado como desaparecido em 1971, durante a ditadura militar. Morte só foi confirmada em 2014
O ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, acolheu pedido do Ministério Público para ouvir testemunhas no processo que apura a responsabilidade criminal de vários militares acusados de terem assassinado o deputado Rubens Paiva, um dos casos mais lembrados das truculências praticadas pela ditadura imposta ao país pelo golpe de 1964.
Conforme notícia publicada pelo Correio Braziliense de 26 deste setembro, o processo se encontrava suspenso por decisão do mesmo ministro, mas, entre outras razões para ele retomar a sua tramitação, está a necessidade de ser produzida prova testemunhal de pessoas já muito idosas, de acordo com o pedido do Ministério Público.
Em maio passado, como já noticiara a Folha de São Paulo, o processo crime foi instaurado pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. Por força da lei de anistia, a defesa deles impetrou um habeas corpus, o que provocou a suspensão do processo, agora retomado. Agora, de acordo com a mesma notícia, o Tribunal regional federal do Rio de Janeiro, no início deste mês já tinha removido qualquer motivo para o processo permanecer suspenso:
“A Segunda Turma Especializada do TRF (Tribunal Regional Federal), do Rio, decidiu nesta quarta (10), por unanimidade, restabelecer a ação penal e retomar o processo que apura a morte e desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971. Pela primeira vez, a Justiça brasileira decidiu que os crimes praticados por militares durante a ditadura (1964-1985) são considerados crime contra a humanidade. “O crime não prescreveu porque o corpo de Rubens Paiva não apareceu”, disse o desembargador Messod Azulay, relator do caso. “Nós nunca perdemos a esperança. Eu, minha família, meus irmãos. Esperamos 43 anos por isto. Queremos que as pessoas sejam julgadas e digam o que aconteceu”, disse Vera Sílvia Paiva, filha de Rubens Paiva. “Os crimes cometidos contra a humanidade não podem ser abraçados pela Lei de Anistia”, afirmou a procuradora Silvana Batini. “Não podemos admitir que alguém que use farda e fuzil para matar um brasileiro. Nossa Constituição não tutela o terror. Isso não é compatível com a democracia”, disse em seu voto o desembargador federal André Fontes.” “O Ministério Público Federal ainda pede na denúncia que os militares deixem de receber suas aposentadorias e que os órgãos militares retirem medalhas e condecorações obtidas por eles ao longo da carreira.”
As versões dadas pelas Forças Armadas sobre essa morte sempre passaram a ideia de que não eram responsáveis por qualquer crime. Uma delas era a de que o deputado havia fugido depois de preso, antes de sua entrada no Doi-Codi. Desde que se instalaram no país a Comissão de Anistia e as Comissões nacionais e estaduais da verdade, a busca de comprovação dessas versões se intensificou e um fato ocorrido no Rio Grande do Sul, no dia 1º de novembro de 2012, contribuiu decisivamente para provar a falsidade dessas versões.
O coronel Julio Miguel Molinas Dias morreu nesse dia, alvejado por tiros de arma de fogo, quando chegava em sua casa. À época, o fato também ficou sujeito a mais de uma versão. Teria sido um assalto de gente que pretendia ficar com a sua coleção de armas; teria sido uma “queima de arquivo” de militares interessados em não ver seus nomes envolvidos em qualquer dos processos instaurados pelas ditas Comissões, por crimes praticados durante a ditadura contra militantes de esquerda, já que o coronel exercera funções de comando no Doi-Codi.
A investigação da polícia, porém, encontrou na casa de Molinas uma grande quantidade de documentos comprobatórios de atividades desenvolvidas pelo aparelho policial de repressão durante o regime militar, entre os quais o da entrada de Rubens Paiva no estabelecimento prisional, onde se alegava ele nunca estivera. Tudo sobre o famoso episódio da explosão do Rio Centro, igualmente, ali estava registrado, em detalhes.
Essa documentação foi entregue à uma filha de Rubens Paiva, pelo ex-governador Tarso Genro, em reunião realizada no Palácio Piratini, pela Comissão Nacional e pela Comissão Estadual da Verdade em fins de novembro do mesmo 2012. Não é de se duvidar que esses papéis tenham servido de prova para o Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro ter dado prosseguimento ao processo crime ajuizado contra os militares denunciados. A nota da Folha os identifica como: José Antonio Nogueira Belham, Rubens Palm Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Jurandir Ochsendorf e Jacy Ochsendorf e Souza.
Quando Ulysses Guimarães levantou um dos exemplares da Constituição Federal de 1988, na sessão solene do congresso Nacional que a promulgou, sob aplausos entusiásticos, referiu-se ao período histórico do tempo brasileiro, imediatamente anterior ao da democracia ali instaurada, como nojento.
O processo crime relativo ao assassinato de Rubens Paiva, agora retomado em sua tramitação, confirma esse nojo. Isso não é reconhecido, entretanto, por muitas/os brasileiras/os. Grande parte dos últimos protestos públicos contrários à presidenta Dilma, justamente uma das mais famosas vítimas do Estado de exceção daquela época, pedem que ela ou renuncie ao seu mandato ou se suicide!
As brasas da violência de então, portanto, não tinham se consumido como se imaginava, e elas agora estão removendo as cinzas que as encobriam, reavivadas por um poder tão forte como o que conseguiu ocultar, durante mais de cinco décadas o fogo do seu ódio. A nação não pode se queimar de novo.
Fonte – Rede Brasil Atual