Sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Num dia tradicionalmente identificado com o azar, a redação de O Estado de S. Paulo, então no centro da cidade, é invadida por policiais que tentam – sem sucesso – bloquear a saída e apreender os jornais no cais da expedição da rua Major Quedinho. Nesse mesmo dia, o governo militar decreta o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), que fecha o Congresso, cassa os direitos dos cidadãos e acaba com a liberdade de imprensa. O primeiro alvo é o Estadão, que ousou publicar, nesse mesmo dia 13, o editorial Instituições em Frangalhos, criticando duramente o presidente da República, marechal Costa e Silva (1899-1969), por pretender passar por cima da lei para processar o deputado Márcio Moreira Alves, autor de um discurso ofensivo às Forças Armadas. No dia anterior, a Câmara dos Deputados rejeitara o pedido de licença para que o Supremo Tribunal Federal processasse o político oposicionista. Então, o 2.º Exército entrou de prontidão nessa noite. A tragédia apenas começava.
As instituições, confirmando o último editorial redigido pelo diretor do jornal, Julio de Mesquita Filho (1892-1969), estavam mesmo em frangalhos. A prova fatal viria às 22 horas desse dia 13, uma hora antes de o ministro da Justiça, Gama e Silva, anunciar o AI-5: recusando-se à autocensura, o Estadão foi submetido à censura por ordem governamental. Alvo de ameaças e telefonemas anônimos, o jornal viria a ser censurado por três anos – de 2 de agosto de 1973 a 3 de janeiro de 1975. Nesse período, segundo levantamento do coordenador do Acervo Estadão, Edmundo Leite, foram cortados da edição 1.136 textos, substituídos por excertos de Os Lusíadas (no caso do Estadão) e receitas de bolo (no Jornal da Tarde), em protesto contra o arbítrio dos censores, que se instalaram na sede do jornal.
Um filme com os protagonistas dessa história, dirigido por Camilo Tavares, filho de um deles, o jornalista Flávio Tavares, ex-editorialista do Estadão banido pelo regime militar, estreia neste sábado, 20, às 14 horas, no Museu da Resistência. Com roteiro do jornalista José Maria Mayrink, autor do livro Mordaça no Estadão, seu título, Estranhos na Noite, evoca um antigo sucesso de Frank Sinatra, Strangers in the Night. Com deliberada ironia, quem cantava a música na Redação era o diagramador Gellulfo Gonçalves, anunciando em código a presença de censores. Gellulfo também aparece no documentário, produzido pela Pequi Filmes, que, entre 27 depoimentos, traz Eva Wilma e Irene Ravache, duas veteranas atrizes que lutaram contra a censura e resistiram às arbitrariedades da ditadura. Irene, inclusive, negou-se a revelar o paradeiro de colegas perseguidos pelos militares, colocando sua segurança em risco.
Atos de coragem custaram caro a jornalistas que não tiveram a mesma sorte, como Antonio Carlos Fon, repórter policial que denunciou os crimes do Esquadrão da Morte, foi preso e barbaramente torturado. A sua é uma das muitas histórias do filme que será exibido no sábado, no Memorial da Resistência, antiga sede do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), extinto em 1983. Como ele, outros jornalistas do Estadão foram perseguidos por defender a causa das liberdades e dos direitos humanos. Carlos Garcia, chefe da sucursal do Recife em 1974, entrevistado no filme, levou choques elétricos e foi pendurado no pau de arara para revelar como funcionava a “célula comunista” no Estadão, um jornal que, evoque-se, apoiou o golpe militar de 1964 – a desilusão com os desvios do regime antidemocrático não tardou a chegar. Claro que muitos dos seus jornalistas eram comunistas. A direção do jornal, como enfatiza Júlio César Mesquita no filme, não pedia atestado ideológico de seus funcionários. “É uma tradição nossa”.
A censura proibiu a notícia da prisão de Garcia. Por vezes era a Polícia Federal que avisava por telefone quais temas deviam ser evitados ou simplesmente proibidos. Outras vezes, eram bilhetes de oficiais do Exército. O roteirista do filme, José Maria Mayrink, entrevistou profissionais que testemunharam os mais absurdos casos. “Todos os jornais publicaram a cobertura da saída do ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, em maio de 1973, menos o Estadão”, lembra Mayrink, o primeiro repórter a ver o corpo do guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969) ainda no carro, emboscado na Alameda Casa Branca. Sobre Cirne Lima, o anúncio de sua demissão foi substituído, na edição de 10 de maio de 1973, por um anúncio de um programa da rádio Eldorado, Agora É Samba.
Delfim Neto, então ministro da Fazenda, aparece no filme negando que tenha sido o pivô da demissão de Cirne Lima. E aproveita para declarar que nunca houve “milagre econômico” e assinaria de novo o AI-5, que permitiu a censura aos jornais. Sobre ela, aliás, Julio de Mesquita Neto (1922-1996), diretor responsável do Estadão, cargo que assumiu em 1969, guardou uma história lembrada por Mayrink no filme. Chamado a depor num Inquérito Policial Militar, em janeiro de 1973, o editor, interpelado por um major se era o diretor responsável do jornal, respondeu: “Não, é o professor Alfredo Buzaid, ministro da Justiça”. E completou: “No caso, depois da censura, quem decide o que sai ou deixa de sair no Estado é o professor Alfredo Buzaid”. A ironia, claro, não foi bem recebida.
Não havia mais censura aos jornais em 1975 quando o jornalista Marco Antônio Rocha, hoje editorialista do jornal, recorreu ao então editor Ruy Mesquita (1925-2013), ao ser ameaçado, no mesmo ano da prisão e morte de Vladimir Herzog no DOI-Codi. Rocha conta no filme que o editor ligou para o ministro da Justiça assumindo que ele se encontrava sob sua proteção. “Papai o recebeu em casa e ele dormiu no meu quarto”, conta Ruy Mesquita Filho.
“Naquela época, o inimigo tinha nome endereço”, comenta a atriz Irene Ravache. “Hoje, com juízes desfilando em carros de condenados, vejo que ainda não chegamos ao fundo do poço, que não temos uma verdadeira oposição”, conclui. No filme, a palavra final é dela, condenando os anistiados do regime que argumentaram estar cumprindo ordens: “As ordens também existem para não serem cumpridas”. E, lendo um trecho de Millôr Fernandes, Eva Wilma completa: “Mas, no fim, o mal nem sempre vence”.
Fonte – O Estado de S. Paulo/Paraná Online