Novos relatos expõem ‘ciência’ da tortura na ditadura militar brasileira

Sessões de espancamento acompanhadas por métodos para prolongar o sofrimento da vítima, um cronograma de ataques e até um jacaré colocado em celas. No regime militar, as práticas de torturas receberam um tratamento “científico” por parte dos autores dos crimes, segundo relatos contidos em documentos coletados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha em Genebra.

O Estado teve acesso pela primeira vez aos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha sobre o Brasil em sua nova fase de abertura de documentos. Nos 17 mil informes registrados entre 1965 e 1975 guardados em Genebra, a entidade manteve dezenas de documentos sobre o período mais sombrio da ditadura no Brasil.

No auge da repressão no Brasil, nos anos 1970, o comitê atuou para tentar garantir os direitos humanos dos prisioneiros. Esses relatos, segundo a Cruz Vermelha, são uma evidência do caráter institucional que as violações tiveram durante o período de maior brutalidade da ditadura no País. A entidade jamais foi autorizada a visitar os centros de torturas.

Os informes não puderam ser consultados pela Comissão Nacional da Verdade, que concluiu seus trabalhos em dezembro de 2014, antes de a entidade ter aberto seus arquivos.

‘Método’

Em 21 de janeiro de 1970, o comitê apresenta documentos detalhados das práticas contra prisioneiros políticos, escritos em português por ex-prisioneiros ou fontes que aceitaram, de forma anônima, repassar à entidade informações.

Em praticamente todos eles, é o caráter organizado e “científico” da tortura que é destacado. “A grande maioria dos presos passa por um processo de torturas físicas, morais e psicológicas. De acordo com a gravidade do caso ou a pressa em se obter informações, são colocados em cubículo isolados, em celas isoladas ou em celas coletivas (em ordem decrescente se importância)”, diz o relato.

“O método aplicado é o científico. Baseia-se na aplicação dosada de um sofrimento atroz dentro do limite exato da resistência humana. Para tanto, os cuidados médicos são constantes, para verificar o grau de resistência do torturado e evitar alguma marca permanente (loucura, fraturas, cicatrizes). Mesmo assim, em vários casos o limite foi ultrapassado e registram-se desequilíbrios nervosos, loucura, crises cardíacas, surdez”, descreve. “Trata-se de uma luta para destruir – não a resistência física – mas a resistência moral do preso. A pressão física é apenas um veículo para a pressão moral. Ao mesmo tempo que se submete o preso a torturas, acena-se com o fim de tudo, se (o detido) falar.”

Sequência

O ato de torturar não ocorria, segundo os documentos, de forma aleatória. “A tortura começa sempre com um espancamento. A fase seguinte é a do choque elétrico. “O aparelho utilizado é um telefone de campanha, de magneto.” O choque é aplicado simultaneamente ao “pau de arara”. Num outro relato sobre os “Tipos de tortura preferidos”, o documento aponta a “colocação de animais, como cobras, ratos e até um jacaré, na cela dos presos”.

Entre os torturadores, os relatos dos documentos da Cruz Vermelha apontam nomes citados pela Comissão Nacional da Verdade. Um deles é o Tenente Coutinho, “médico que controla cientificamente a tortura”.

Nos informes da Comissão da Verdade, trata-se de José Lino Coutinho da França Neto. Ele prestou serviço militar na unidade da Marinha na Ilha das Flores (RJ), em 1969 e 1970, e teve participação em casos de tortura. Outro é Miguel Laginestra, apontado como “torturador frio, mas que prefere que os outros façam o serviço”.

A presidente Dilma Vana Rousseff era militante da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares). Foi presa em 16 de janeiro de 1970 e ficou três anos encarcerada. Ela foi submetida a diversas sessões de tortura, sendo colocada no pau de arara, espancada, apanhando de palmatória, recebendo choques elétricos. Socos no seu rosto lhe causaram problemas na arcada dentária que persistem até hoje. “O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida. […] As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”, descreveu Dilma, em 2001.

Única sobrevivente da chamada “Casa da Morte” de Petrópolis, um dos centros clandestinos de tortura do regime militar, Inês Etienne Romeu foi integrante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e da Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) e sofreu constantes torturas e ameaças de morte e foi estuprada três vezes. “Meus carrascos afirmaram que ‘me suicidariam’ na prisão, caso eu revelasse os fatos que ouvi, vi e que me contaram durante os três meses de minha prisão, pois reconhecem que ‘sei demais'”, contou Inês.

O hoje vereador de São Paulo Gilberto Natalini (PV) era médico, com orientação política à esquerda, mas não possuía filiação político-partidária quando foi preso. Ele foi torturado por agentes do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) e ficou surdo em razão dos choques que sofreu. “O pau de arara não, esse não usaram comigo. Eu não lembro, mas eu aque que não usaram não, mas choques sim. Eu sou deficiente auditivo dos dois ouvidos, eu tive que fazer cirurgia ao invés de clínica médica, porque clínica médica precisa muito do estetoscópio”, relatou Natalini

A cineasta Lúcia Murat foi espancada, sofreu choques elétricas e abuso sexual por parte dos militares durante a ditadura. Ela foi presa duas vezes: a primeira em outubro de 1968, em um congresso estudantil, quando ficou apenas uma semana, e a segunda em 1971, quando vivia na clandestinidade. Ela ficou detida três anos e meio e contou que, neste período, pensou em se matar. “(Os militares) gritavam, me xingavam, me puseram de novo no pau de arara. Mais espancamento, mais choque, mais água e dessa vez entraram as baratas. Puseram baratas passeando pelo meu corpo, colocaram uma barata na minha vagina. Hoje parece loucura, mas um dos torturadores, de nome de guerra Gugu, tinha uma caixa onde ele guardava as baratas amarradas por barbantes e através do barbante ele conseguia manipular as baratas pelo meu corpo”, relatou Lúcia, em depoimento às Comissões Nacional e Estadual do Rio de Janeiro

A historiadora Dulce Pandolfi foi presa e torturada na década de 1970, durante a ditadura militar, e contou à Comissão Nacional da Verdade que foi usada como “cobaia” em aulas de tortura para militares. Integrante do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) na época, ela ficou um ano e quatro meses encarcerada e disse que jacarés foram utilizados para atemorizá-la. Ela também contou como os torturadores lhe deram um “soro da verdade”: “… eles me deram uma injeção que você já fica mais grogue. […] na época tinha este mito de que existiria um soro que você aplicava nas pessoas e a pessoa falava tudo. […]”, declarou. Ela afirmou ainda que o major da Polícia Militar Riscala Corbaje a torturou ao perceber que o soro não havia produzido o efeito esperado. “(Ele) me levou para uma sala, me deitou no chão, subiu nas minhas costas, começou a me pisotear e a me bater com o cacete. Dizendo, aos gritos, que ia me socar até a morte. O seu descontrole foi tamanho e os seus gritos tão estridentes que os outros torturadores entraram na sala e arrancaram ele de cima de mim”

O estudante Jean Marc Van der Weid era militante da Ação Popular e presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) em 1969, quando foi preso e levado ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Durante sua passagem no cárcere, ele foi torturado. “Havia outra tortura que Jean Marc odiava mais. Os guardas usavam palmatórias –pranchas planas de madeira dotadas de pequenos furos, normalmente usadas para castigar meninos de escola. Uma palmada ou duas provocavam uma dor penetrante, como picadas de agulhas de crochê, mas, até chegar à Ilha das Flores, Jean Marc jamais tivera medo da palmatória. Agora os torturadores usavam-na durante horas, atingindo-lhe repetidamente a cabeça, os rins e o sexo”, descreveu o relatório da Comissão Nacional da Verdade

Criméia Alice de Almeida era guerrilheira e militante do PCdoB e foi presa em dezembro de 1972, em São Paulo, grávida de sete meses. Ela foi submetida a diversos métodos de tortura: “Pela manhã, o próprio comandante major Carlos Alberto Brilhante Ustra foi retirar-me da cela e ali mesmo começou a torturar-me […]. Espancamentos, principalmente no rosto e na cabeça, choques elétricos nos pés e nas mãos, murros na cabeça quando eu descia as escadas encapuzada, que provocavam dores horríveis na coluna e nos calcanhares, palmatória de madeira nos pés e nas mãos. Por recomendação de um torturador que se dizia médico, não deviam ser feitos espancamentos no abdômen e choque elétricos somente nas extremidades dos pés e das mãos”, relatou Criméia

Darci Miyaki foi presa no dia 25 de janeiro de 1972, no Rio de Janeiro. Ela conta que foi agarrada por vários homens que a jogaram num Opala branco, onde levou pontapés. Três dias depois, ela foi levada para uma cela: “Tiraram toda a minha roupa… Logo que eu cheguei passei pelo corredor polonês, em que levava pancadas; ‘telefone’; caía, aí eles me levantavam –eu tinha cabelo comprido–, me levantavam pelo cabelo e em seguida me levaram para a sala de torturas”, relatou Darci à Comissão Nacional da Verdade, em junho de 2013. Ela contou ainda que foi violentada sexualmente e sofreu choque elétricos nas partes íntimas em São Paulo, para onde foi transferida depois. “Não dá para descrever, um torturador enfiar um fio na sua vagina, na sua parte mais íntima. Me tornei uma mulher estéril. O ato sexual, depois de tudo isso, se tornou algo muito estéril pra mim”, afirmou a militante

A militante Áurea Moretti Pires foi colocada no pau de arara e sofreu choques elétricos antes de ficar encarcerada no presídio Tiradentes, em São Paulo. À Comissão Nacional da Verdade, em janeiro de 2014, ela relatou uma das sessões de tortura. “Levaram, então, o cabo Aparecido com seu pau de arara, com seu choque elétrico, tá, eu amarrada do modo como eles fazem que fica amarrado, assim, pulso amarrado, de um modo que a parte de baixo da perna dá pra passar o cano do pau de arara, né?, então quando levanta a gente tá pendurado de cabeça pra baixo, e no caso ele tirou toda minha roupa, fiquei só de calcinha”. Imagem: Reprodução/Memórias da Resistência

O frei Tito de Alencar Lima foi torturado entre 1969 e 1970, sob comando do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) Sérgio Paranhos Fleury, e suicidou-se em 1974, na França. Incluído na lista de prisioneiros políticos soltos em troca da vida do embaixador suíço sequestrado pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), foi liberado em dezembro de 1970, quando foi viver no exílio. Na época, ele relatou uma sessão de tortura: “Revestidos de paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca ‘para receber a hóstia sagrada’. Introduziram um fio elétrico”. Na França, frei Tito apresentou sinais de transtorno psicológico e diversas vezes tentou o suicídio. Ele alegava estar sendo perseguido por Fleury, que estaria ameaçando a sua família. Entre suas anotações nos últimos meses de vida, havia a seguinte frase: “É melhor morrer do que perder a vida”

Fonte – O Estado de S. Paulo/UOL

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