Anistia não impediu punições de militares na América Latina

A ideia de que anistias a violações aos direitos humanos ocorridas durante regimes autoritários bloqueiam a possibilidade de julgamentos já é passado na maior parte da América Latina, como explica Marcie Mersky, diretora do International Center for Transitional Justice (ICTJ).

Especialista em comissões da verdade, Mersky trabalhou na comissão da Guatemala, apoiada pela ONU e, no ano passado, participou de uma série de projetos junto ao Ministério da Justiça brasileiro para ajudar Brasília a entender a experiência de outros países na área.

“Quando as primeiras comissões da verdade foram criadas na América Latina, nos anos 1990, acreditava-se que as leis de anistia bloqueavam totalmente a possibilidade de investigações criminais”, diz Mersky.

“Essas noção foi jogada por água com o tempo por uma série de casos como o da Argentina, em que alguns grupos conseguiram driblar a anistia sugerindo interpretações criativas ou explorando brechas.”

Segundo a especialista, o papel de comissões da verdade como a que foi inaugurada no Brasil é alimentar um debate na sociedade sobre o que ocorreu no passado. lsso, em muitos casos, favoreceu indiretamente a abertura de julgamentos, mas, salvo uma exceção (no Peru), comissões não têm sido responsáveis por estabelecer responsabilidades criminais.

Crimes em continuidade

Na Argentina e no Chile, comissões da verdade foram inauguradas logo após a redemocratização, mas ambos os países também acabaram aprovando perdões aos militares (no caso argentino, depois que um período inicial, em que foram julgados generais de alta patente, acabou gerando inquietação entre os militares).

Com o tempo, nos dois países, advogados de organizações ligadas à defesa dos direitos humanos conseguiram fazer a Justiça aceitar a interpretação de que “desaparecimentos” eram crimes “em continuidade” – portanto, não cobertos pelas suas anistias.

A Argentina anulou duas leis de anistia em 2003. No Chile, o perdão aos militares ainda está vigente, mas desde que a nova interpretação foi aceita pela Suprema Corte do país, em 2004, mais de 500 pessoas foram levadas à Justiça.

No Uruguai (que derrubou a anistia definitivamente no ano passado), a Justiça ordenou em 2006 a prisão de Juan María Bordaberry, líder do país no período de exceção, pelo assassinato de parlamentares uruguaios na Argentina, aceitando o argumento de que a anistia de 1986 só cobria crimes cometidos em solo uruguaio.

E na Guatemala, a Comissão para o Esclarecimento Histórico ajudou organizações da sociedade civil a reunirem evidências para apoiar acusações de genocídio – não cobertas pela anistia guatemalteca – contra o general Efraím Rios Montt, que governou o país no período mais violento do conflito civil, entre 1982 a 1983.

Em janeiro, um juiz aceitou o indiciamento de Rios Montt, acusado de responsabilidade em dezenas de milhares de mortes de indígenas guatemaltecos.

Em todos esses casos, o papel das comissões da verdade foi ajudar a munir advogados de direitos humanos com evidências para construir seus casos e abrir um debate na sociedade sobre as violações de direitos humanos ocorridas em períodos autoritários, criando um clima favorável para decisões da Justiça a favor da flexibilização das anistias.

No Brasil, alguns grupos estão tentando seguir os passos latino-americanos, mas até agora tentativas de driblar a anistia com interpretações alternativas tiveram pouco sucesso.

Recomendações

O Brasil é um dos últimos países na América Latina a estabelecer uma comissão da verdade oficial para investigar os crimes do regime militar.

Ao fato de a comissão brasileira não ter poderes de remeter casos para julgamento, para Mersky isso não é necessariamente uma desvantagem.

“Se o objetivo é levantar casos para julgamento, a comissão têm de se concentrar na responsabilidade individual de cada agente do Estado”, explica a especialista. Já se o objetivo é reconstruir o que aconteceu, pode-se usar uma variedade maior de métodos de investigação e detectar mais facilmente padrões de violação, responsabilidades institucionais e inclusive casos de cooperação (entre os regimes dos países da região).”

Além disso, segundo Mersky, a comissão da verdade brasileira poderá fazer recomendações – e uma delas pode ser justamente que a anistia não é “construtiva” e que a Justiça brasileira deveria abrir alguns casos.

“Estabelecer as responsabilidades criminais é papel dos tribunais e não acho que seja interessante ter uma comissão da verdade substituindo o papel de outras instituições do Estado”, diz.

 

Fonte – Terra

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