Do período pré-golpe ao da redemocratização, 858 camponeses foram mortos no campo brasileiro. Do total, 370 são sindicalistas e lideranças de lutas coletivas. Mas a Comissão de Mortos e Desaparecidos reconhece apenas 17 trabalhadores rurais entre as 457 vítimas oficiais da ditadura. “Esses camponeses são os desaparecidos dos desaparecidos”, diz coordenador do Projeto Memória e Verdade, Gilney Viana.
O governo quer incluir pelo menos 370 camponeses, assassinados entre 1961 e 1988, na lista oficial de mortos e desaparecidos da ditadura militar. São, principalmente, sindicalistas e lideranças de lutas coletivas que tombaram em decorrência da política repressora dos militares. Segundo o coordenador do Projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Gilney Viana, a invisibilidade dos trabalhadores rurais é tão grande que eles foram alijados, até mesmo, das leis da Anistia, de 1979, e da Comissão de Mortos e Desaparecidos, de 1995, criadas para reparar a violência cometida pelos agentes de estado, durante o regime. “Esses camponeses são os desaparecidos dos desaparecidos”, afirma.
Autor do estudo que levantou nomes e biografias dos trabalhadores rurais mortos e desaparecidos, Gilney atesta que, de 1961, o chamado período pré-ditadura, até 1988, o da redemocratização, 858 camponeses foram, comprovadamente, assassinados no campo brasileiro. Além dos já 370 já catalogados pela pesquisa como vítimas do regime, há outros 488 casos em que não há informações suficientes para que seja feita a caracterização como tal.
O curioso, segundo ele, é que apenas 15% deles foram assassinados diretamente pelos agentes de estado. A maioria foi morta por jagunços e milícias a serviço dos latifundiários. “Mesmo no auge da ditadura, a repressão no campo foi praticamente majoritariamente pelos agentes privados. Os militares terceirizaram a repressão aos camponeses. Por isso, é tão difícil para os familiares dessas vítimas comprovarem a responsabilidade do Estado sobre os assassinatos”, acrescentou.
Nas palavras da deputada Erika Kokay (PT-DF), que presidiu a sessão convocada pela Comissão Parlamentar da Verdade para discutir o tema, “o estado alimentava a mão armada do latifúndio para substituí-lo na execução dos crimes”. Segundo ela, esses crimes precisam ser reconhecidos e punidos, para que a cultura da violência não perpetue no país. “A democratização não significou o arrefecimento da repressão no campo. A terra e seus trabalhadores continuam sendo tratados como pertences de uma pequena elite”, denunciou.
Giley Viana atestou que, de fato, o número de camponeses assassinados após a Lei da Anistia e no chamado período de redemocratização foi maior do que o registrado durante a ditadura. Entre 1964 e 1979, o período mais duro do regime, há registros de 246 mortos e desaparecidos. Entre 1979 e 1885, ou seja, da edição da Lei da Anistia à redemocratização, de 379. “Os militares, primeiro, acabaram com a resistência ao regime nas cidades para depois se dedicarem ao campo”.
O coordenador do Projeto Memória e Verdade ressaltou, ainda, que a
Comissão de Mortos e Desaparecidos, desde que foi criada, apreciou mais de 800 requerimentos de familiares de vítimas, reconhecendo um total de 457 vítimas da ditadura. Destas, apenas 17 eram camponeses. “Especialmente aqueles que tinham uma militância partidária pública. Os camponeses comuns, que não pertenciam à partidos políticos ou escondiam sua militância, não foram beneficiados pela lei”, contabiliza. Ele estima que a Lei da Anistia também não beneficiou os camponeses na proporção necessária. Dos 70 mil pedidos recebidos pela Comissão, menos de mil se referem ao seguimento.
O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do livro “Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos”, Moacir Gracindo Soares Palmeira reiterou que, quando se fala em ditadura, se pensa quase que automaticamente em repressão a estudantes, jornalistas e militantes de esquerda. “Apesar da chamada agitação no campo ter sido apontada como uma das causas do golpe militar, muito pouco se falava sobre a repressão no campo, principalmente em função da censura”, observou.
Símbolo da resistência camponesa ao regime, o eterno militante maranhense, Manoel da Conceição, concorda que os trabalhadores rurais merecem o reconhecimento da história. Ele mesmo, que foi preso nove meses, sofreu toda sorte de torturas, perdeu uma perna e testemunhou execuções e chacinas, não sabe contabilizar o número de companheiros perdidos durante a luta pela terra e contra a repressão. E é exemplo vivo da inoperância do Estado em reparar as famílias dos camponeses vítimas do regime. Há seis anos processa o estado brasileiro, sem sucesso.
Fonte – Carta Maior