“Mentira não promove concórdia”, diz Dilma

Em uma cerimônia marcada pela emoção e pelo esforço do governo para demonstrar que a Comissão da Verdade é uma iniciativa de Estado e não será pautada pelo revanchismo, a presidente Dilma Rousseff deu posse ontem aos sete integrantes do colegiado que apurará as violações aos direitos humanos praticadas durante a ditadura militar. A comissão terá dois anos para apresentar um relatório sobre os fatos investigados e narrar o que aconteceu com as vítimas que sofreram desaparecimentos forçados, torturas e assassinatos. Antes, porém, poderá ter de se posicionar oficialmente se investigará os crimes praticados por grupos de esquerda no período.

O assunto é uma demanda dos militares da reserva, que inclusive já fizeram chegar a alguns dos integrantes da Comissão da Verdade uma lista com 119 supostos crimes praticados pela esquerda durante o regime militar. E também provoca mal-estar numa ala dos ex-militantes de esquerda, que está insatisfeita com a falta de declarações mais incisivas contra a ideia por parte de alguns dos membros da comissão.

Ex-guerrilheira e integrante de grupos que pegaram em armas para lutar contra a ditadura, Dilma evitou a polêmica. Enalteceu a atuação dos grupos de resistência contra a ditadura e, por outro lado, sinalizou que não patrocinará iniciativas que busquem a revisão da Lei de Anistia, um objetivo de organizações de defesa dos direitos humanos que gera preocupações entre os militares.

“A palavra verdade, na tradição grega ocidental, é exatamente o contrário da palavra esquecimento. É algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem tampouco o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento. É memória e é história. É a capacidade humana de contar o que aconteceu”, discursou a presidente.

Dilma destacou que reverencia os que lutaram pela democracia enfrentando a truculência ilegal do Estado, mas reconhece e valoriza os pactos políticos que levaram o país à redemocratização. “O Brasil merece a verdade. As novas gerações merecem a verdade, e, sobretudo, merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia”, afirmou, emocionada. “É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma história sem voz. E quem dá voz à história são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la.”

A solenidade foi prestigiada por oficiais das Forças Armadas e ex-militantes de esquerda, como os ex-ministros José Dirceu (Casa Civil) e Franklin Martins (Comunicação Social), o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) e o assessor especial do Ministério da Defesa José Genoino. Contou com a presença também de vítimas da ditadura, seus familiares e até mesmo ex-apoiadores dos governos militares, como o deputado Paulo Maluf (PP-SP). Já a participação dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor e José Sarney teve como objetivo demonstrar que a Comissão da Verdade faz parte de um processo de consolidação da democracia e não se trata de uma iniciativa apenas deste governo.

Dilma lembrou, por exemplo, que foram os ex-presidentes Lula, FHC e Collor que enviaram o projeto de lei que criou o colegiado, criaram a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e ajudaram a abrir os arquivos dos departamentos de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo e do Rio de Janeiro, respectivamente. A presidente lembrou ainda a importância de Sarney na transição para a democracia, assim como os papéis desempenhados por Itamar Franco e Tancredo Neves.

Em linha com a declaração de integrantes do colegiado de que não haverá “apedrejamentos”, Dilma frisou que a criação da Comissão da Verdade não foi movida pelo revanchismo. “O país vai aceitando pouco a pouco e progressivamente que chegou o momento de dizer que faz tanto tempo e não dá para ficarem fatos ainda escondidos. Temos que revelar tudo, e essa revelação não tem como objetivo botar alguém na cadeia. O objetivo é impedir que se repitam fatos como os que ocorreram”, acrescentou Fernando Henrique.

Os sete integrantes do colegiado são o advogado José Carlos Dias, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, a advogada Rosa Maria Cardozo da Cunha, o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles, o diplomata e sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, a psicanalista Maria Rita Kehl e o advogado José Paulo Cavalcante Filho. Embora Rosa Maria tenha sido sua advogada durante a ditadura, Dilma assegurou que não foi influenciada por critérios pessoais ao nomeá-los.

“Convidei mulheres e homens com uma biografia de identificação com a democracia e aversão aos abusos do Estado”, disse. “O país reconhecerá nesse grupo, não tenho dúvidas, brasileiros que se notabilizaram pelo espírito democrático e pela rejeição à confrontos inúteis ou gestos de revanchismo.”

A Comissão da Verdade fez ontem mesmo a sua primeira reunião oficial. O colegiado não terá um presidente. Seus integrantes se revezarão na coordenação dos trabalhos por períodos iguais, e o primeiro a ocupar o posto será Dipp.

A comissão definiu ainda que serão realizadas reuniões a cada 15 dias, sempre às segundas-feiras, sendo possível a convocação de sessões extraordinárias. A primeira reunião será na próxima semana. Os encontros serão no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília, que serviu como sede provisória da Presidência da República durante a reforma do Palácio do Planalto. Para sistematizar os trabalhos, o colegiado criará subcomissões e espera contar com a ajuda das comissões da Verdade criadas por alguns Estados para acelerar as apurações.

“Há o trabalho virtual, troca de informações, telefonemas. Essas reuniões tidas como formais são apenas para decidir, tomar alguma deliberação. As atividades poderão ser em qualquer lugar do Brasil, em qualquer local em que os membros da comissão, isoladamente ou conjuntamente, tiverem condições de realizarem o seu trabalho”, explicou Gilson Dipp.

O ministro do STJ relatou ainda que não ficou definido se as investigações sobre violações de direitos humanos vão se restringir aos agentes do Estado ou aos militantes que lutaram contra a ditadura militar. Para ele, no entanto, não há divergências e a lei é clara sobre o foco da comissão. “Desaparecimentos, mortes, torturas, evidentemente é o que está na lei, a comissão não tem que fazer interpretações subjetivas, nós temos que cumprir a lei. São essas as diretrizes”, declarou.

A interpretação de Claudio Fonteles é outra. “Essa comissão é fruto de uma lei que reconheceu que o Estado brasileiro violou direitos humanos através de servidores públicos”, disse. “Se essa lei mostrou esse quadro, então, nós temos de cuidar de avaliar as condutas dos servidores públicos, que violaram direitos humanos. É ser fiel à lei”, argumentou.

 

Fonte – Valor

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