‘Acorda ABC’: comissão visa identificar torturadores

Associação Centro de Memória do ABC pretende trazer à tona os militares da região que utilizavam prática de tortura durante o regime militar (1964-1985). O projeto ‘Acorda ABC’ projeta coletar depoimentos de pessoas que sofreram com a repressão no período da ditadura. Cerca de 120 pessoas serão ouvidas pelo pesquisador Cido Franco. Com as histórias sendo contadas, os personagens do regime começam a ser revelados.

Diferentemente da maioria dos trabalhos sobre o tema, o projeto ‘Acorda ABC’ não planeja esconder aqueles que seguiram ordens e praticaram a tortura. O período a ser estudado pela associação será de 1964 até 1979, época considerada a mais pesada da ditadura.

Adonis Bernardes, diretor da associação, recordou que existem ex-servidores do regime em plena atividade, inclusive, na região. “Muitos trabalham em empresas como vigias, seguranças. Outros ocupam cargos públicos. Essas pessoas precisam ser identificadas e punidas no sentido moral, tendo em vista que legalmente nada mais pode ser feito.”

A identificação de torturadores que moram no Grande ABC passa pela Lei da Anistia. Na época que a legislação entrou em vigor, em 1985, as pessoas que participavam do regime receberam o mesmo direito daqueles que foram considerados subversivos. A isonomia é questionada até hoje.

Franco, que também foi preso e exilado político, destacou que o Brasil foi exceção em relação ao direitos e deveres da anistia. “Os torturadores devem ser identificados porque aqui foi um dos poucos países do mundo que eles tiveram liberdade”, afirmou.

Chico Bezerra, integrante da Associação e representante do grupo ‘Tortura Nunca Mais’, avaliou que a identificação dos militares que praticaram a tortura é importante para a conscientização dessa geração – abaixo de 35 anos. “Nossa juventude precisa acordar e saber. Muitos jovens não sabem que muitas vezes um avô ou um tio foi torturador”, disse o militante.

O trabalho ‘Acorda ABC’ tende a ser direcionado para os jovens. Além do livro que será lançado com os depoimentos, a entidade vislumbra produzir gibis para distribuição nas escolas municipais. Um documentário também está nos planos do grupo. “Através dos depoimentos queremos ter acesso aos jovens para que essa historia não fique esquecida. Se há democracia hoje, é graças ao povo que lutou contra o regime”, avaliou Bernardes.

A expectativa é que o trabalho demore dois anos para ficar pronto. As pessoas com mais idade terão prioridade. “Já tenho 10% do material coletado porque muitos que desejo ouvir estão com a saúde fragilizada ou estão morrendo”, disse o pesquisador.

O trabalho da Comissão da Verdade, em Brasília, é outro elemento que terá acompanhamento do grupo. Embora ressaltem a relevância do espaço, a associação entende que o caráter não punitivo prejudica a propagação da história. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a instalar comissão para investigar crimes contra os direitos humanos durante uma ditadura militar.

Metalúrgico teve morte de três irmãos

Derly Carvalho figura entre os fundadores do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que posteriormente veio revelar a liderança política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A militância iniciada no começo da década de 1960 lhe rendeu a morte de três irmãos e um exílio. “Fui diretor do sindicato em 1962 e os meus irmãos vieram para a luta comigo”, contou. A militância teve início aos 22 anos.

O quarteto acabou caindo na clandestinidade e seguiram juntos para fora do Brasil em busca de sossego. Antes de ser exilado, Derly ficou dois anos e três meses preso. “Fui para Chile e Argentina. Os meus irmãos sempre me acompanharam”, recordou.

Tudo corria bem até que a Operação Condor entrou em ação. A aliança entre regimes militares de Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai tinha como principal objetivo captar pessoas contra as ditaduras e acabar com as lideranças esquerdistas.

Dois irmãos de Derly foram capturados por essa operação durante o exílio na Argentina. Ambos foram capturados numa emboscada. “Eles foram assassinados em Foz do Iguaçu (no Paraná). Ainda não sabemos muitos detalhes sobre o que aconteceu”, recordou.

Em 1971, foi a vez que Derly perder seu terceiro irmão durante uma sessão de tortura. “Ele foi preso e depois assassinado pelos torturadores. Depois foi a minha vez de ir preso”, relatou o ex-metalúrgico.

Atualmente, Derly possui um trabalho ativo na propagação das histórias da ditadura em sua página no Facebook. Aos 73 anos, o ex-preso político reiterou que o trabalho de conscientização da juventude em relação à história do Brasil não pode parar.

Padre sofreu nas maõs de Sérgio Fleury

O padre Rubens Chasseraux sente na pele as dores da repressão. Aos 75 anos, ainda gagueja ao pronunciar – contra a vontade – o nome de Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), responsável por sua prisão e sessões de tortura.

Rubens era garoto de uma família tradicional de Santos que queria ser padre. Estudou, mas logo no começo da faculdade iniciou sua militância na JEC (Juventude Estudantil Católica). Não passou muito tempo para cair nas mãos do regime militar.

O trabalho realizado na Vila Palmares começou a ser supervisionado pelos órgãos de investigação. O padre acredita que foi delatado por colegas da igreja. O motivo para cair nas garras da ditadura foi a excursão de cinco ônibus para o evento do governador Roberto Costa de Abreu Sodré, na Praça da Sé, no dia 1º de maio. Na ocasião, o comandante do Estado foi apedrejado pela população.

Foram cinco prisões durante a ditadura, sendo que a primeira durou 34 dias. Padre Rubens conta com detalhes o primeiro encontro com Fleury. “Ele invadiu minha casa. (Eu) estava descalço e sem camisa em cima do sofá pregando um crucifixo de metal na parede. Ele se apresentou, falou muitos palavrões. Me jogou dentro do carro e saiu comigo”, recordou.

As sessões de torturas psicológicas começaram antes mesmo de chegar ao Dops – trajeto que demorou cerca de seis horas, segundo padre Rubens. “Ele falava que ia me atirar na represa. Me fizeram descer do carro e eu sentia que estava pisando num local molhado. Estava encapuzado. Não via nada”, contou ele.

O padre mencionou que levou muito choque e foi jogado numa cela individual. Segundo relatos de presos do Dops, o local era destinado para pessoas consideradas líderes de movimentos contra o regime. “De repente me vi num local imundo e estava sozinho”, destacou.

Nos dias seguintes à prisão, as torturas continuaram. Além dos choques e das agressões, padre Rubens foi alvo da roleta russa. “O torturador colocou uma bala e girou o tambor. Perguntou se eu estava com sorte e apertou o gatilho. Graças a Deus, não aconteceu nada comigo.”

O ex-preso político defende a identificação dos torturadores e faz um comentário sobre o delegado Fleury. “Era um covarde quando estava sozinho. Vivia acompanhado de dois guarda-costas. Ele nunca aparecia sozinho”, recordou o padre.

 

Fonte – Diário ABC

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