Novos documentos do regime militar

Descoberta revela outra face do acervo da ditadura: a dos arquivos mantidos em segredo por particulares

Documentos obtidos pela reportagem do Diario de Pernambuco mostram como era a formação de agentes no serviço secreto da Aeronáutica, durante o regime militar. O material consiste em oito apostilas, que fazem uma descrição do que considera “forma subreptícia de atuar dos comunistas”, dá orientações de como identificá-los, dita normas para vigilância, ataca d. Helder Camara e recomenda que os oficiais estejam “sempre alertas” – inclusive em relação aos próprios familiares.

Destaca ainda o fato de intelectuais, artistas, economistas, sociólogos e religiosos estarem na oposição, afirmando que eles “lamentavelmente, por formação, convicções ou desajustes com o meio ambiente [grifo no original], foram atraídos ou, em sua grande maioria, incentivados a uma linha de ação tipicamente de esquerda”. Em pelo menos uma apostila o dramaturgo Nelson Rodrigues (que apoiava a ditadura) é usado como exemplo de combate às ideias e ações da esquerda.

Diferentemente de documentos que têm sido revelados em outros estados (pertencentes a arquivos de instituições), estes revelados pelo Diario são de um acervo particular. Outra singularidade é que eles têm uma característica mais teórica, estão mais preocupados em “fazer a cabeça” dos orientandos – e ajudam a compreender como foram formados os homens encarregados do aparato de repressão do regime. As apostilas não estão datadas, mas as informações nelas contidas indicam que são do período 1968-1969.

Cada uma delas têm um título diferente: “Guerra revolucionária”, “Informações”, “Contra-Informações”, “O ciclo de informações”, “Movimento Comunista Internacional”, “Democracia”, “Eu sou um ex-covarde” e “Segurança Interna”.  Ainda existem outros documentos no mesmo acervo, segundo apurou a  reportagem, produzida durante seis semanas.

Capas das apostilas da Aeronáutica distribuídas entre os agentes

Todas as apostilas têm um carimbo indicando “Ministério da Aeronáutica” e “Gabinete do ministro”. No centro do carimbo vem a sigla SISA, que é do Serviço de Informações e Segurança da Aeronáutica, criado em 24 de julho de 1968. Na opinião do historiador e professor Carlos Fico (Universidade Federal do Rio de Janeiro), autor de obras referenciais sobre o regime militar, os documentos da ditadura que têm sido descobertos por jornalistas revelam que ao contrário do que muitos afirmam, nem todos os arquivos foram destruídos. “A importância desses achados não está apenas no conteúdo de tais documentos, mas na própria existência deles”, afirma.

O criador do Sisa foi o brigadeiro João Paulo Burnier, da chamada linha-dura do regime militar. Ele foi adido da Aeronáutica no Panamá (1967) e lá estudou na famosa Escola das Américas, instituição que formou especialistas na repressão ao comunismo, ditadores e golpistas da América Latina. Posteriormente o Serviço teve a denominação alterada para Cisa (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica). Como Cisa, o serviço secreto da Aeronáutica foi acusado de envolvimento no  desaparecimento de Stuart Angel Jones e Rubens Paiva, em 1971, dois casos emblemáticos da repressão na ditadura.

Os serviços secretos do Exército (CIE), Marinha (Cenimar) e Aeronáutica (Cisa) formavam o que um estudioso do tema, Lucas Figueiredo, chamou de “trindade letal dos serviços secretos militares”. Lucas é autor de um livro pioneiro sobre a história do serviço secreto no Brasil, Ministério do Silêncio (Editora Record, 2006). A “trindade letal” fazia parte da comunidade de informações, comandada pelo SNI (Serviço Nacional de Informações). Todas atuavam autonomamente, mas compartilhavam informações. Essa articulação “foi fundamental para esmagar a luta armada no país”, diz Lucas. A comunidade montou um sistema de vigilância que se estendeu para todo o Brasil.

 

Temor com a “intoxicação”

A principal preocupação dos textos das apostilas é com o que denominam “guerra revolucionária”, aquela que ocorre dentro do próprio país. Os dois “objetivos constantes” desse tipo de conflito são “a conquista da população e a tomada do poder”, define a apostila “Guerra Revolucionária”.

Para conseguir estes objetivos, duas atividades eram seguidas, diz o texto, e os alunos deveriam conhecer bem cada uma delas.

A primeira eram as “atividades construtivas”, que tratavam da seleção e formação de bases (“Consiste em descobrir os elementos ativos da população e convencê-los”) e do aliciamento – esta praticada, entre outras formas, por meio da “sedução dos frustrados e dos inescrupulosos, através de cargos, favores e recompensas diversas”.

A segunda atividade era a “destrutiva”. Consistiria em “corrupção”, “desmoralização de autoridades”, agitação social, “intimidação” e “intoxicação”. A descrição do que seria a intoxicação: “É uma insidiosa técnica, que consiste nas meias-verdades, visa aos espíritos neutros, distorce o valor dos vocábulos, passando a dar-lhes um significado todo seu: paz, nacionalismo, imperialismo, democracia, autodeterminação dos povos, proletariado e outros, mascarando as próprias ideias e intoxicando os incautos, tornando-os imunes às advertências dos que se apercebem da ação subversiva”. No Brasil, “ essa técnica foi largamente explorada no último ano do governo João Goulart”.

Capas das apostilas da Aeronáutica distribuídas entre os agentes

 

“O suicídio da própria liberdade”

O tom que permeia todos os  textos é de que os orientandos deveriam estar em constante estado de alerta – em relação a tudo e a todos. “E lembre-se: o Sr. tem uma família: esposa, filhos, pais, irmãos – Preserve-os. Eduque-os. Alerte-os”, diz trecho da apostila “Eu sou um ex-covarde”.

Para quem tivesse dúvida, vinha o alerta: “Vivemos instantes de Guerra Revolucionária”. Por isso, “é necessário que esteja alertado para as ameaças, pressões, propaganda, contrapropaganda e ações que se verificam nos campos político, econômico, psicosocial e MILITAR [grifo no original]”.

Em julho de 1968, quando o Sisa foi criado, a ditadura estava em sua primeira fase, ainda tentando manter as aparências de que era uma democracia. Cinco meses depois houve a decretação do AI-5, marcando o endurecimento do regime, que chegaria ao seu estágio mais brutal no governo de Garrastazu Médici (1969-1974). As apostilas não fazem menção ao AI-5. mas ao que tudo indica elas foram produzidas antes do ato e depois dele.

Já está lá  a desconfiança com os procedimentos democráticos. “O culto da liberdade não pode chegar ao suicídio da própria liberdade”, lê-se na apostila sugestivamente intitulada “Democracia”. Mais adiante diz que “um dos problemas que se apresentam consiste em colocar os melhores homens nas posições representativas do poder político”, uma vez que muitos deles seriam “mal preparados para a função”.

 

Nelson Rodrigues, estrela do curso

O curso da Aeronáutica usa Nelson Rodrigues como material de propaganda e doutrinamento, e aproveita as opiniões dele para atacar a Igreja católica e o então arcebispo de Olinda e Recife, d. Helder Camara. Do material obtido pelo Diario, a apostila que enfoca o dramaturgo é a que tem o título mais impactante: “Eu sou um ex-covarde”. A frase é do próprio Nelson, usada por ele em crônicas para definir-se a si próprio e criticar aqueles que, “por medo de parecerem reacionários”, agiam como se progressistas fossem. “Hoje o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário”, dizia ele.

Dramaturgo genial, colunista polêmico e uma metralhadora giratória de opiniões conservadoras, Nelson Rodrigues (1912-1980) foi um apaixonado defensor da ditadura e em particular do presidente Garrastazu Médici. Mesmo assim surpreende encontrá-lo numa apostila de um curso para agentes da repressão. O material transcreve entrevista dele, apresentando-o como “um civil que, com excepcional coragem, deixou de ser covarde”.

Na matéria Nelson fala, entre outras coisas, sobre a Rússia (“onde não existe o direito de greve”, diz); anticomunismo (“Eu sou anticomunista que se declara anticomunista. Geralmente, o anticomunista diz que não é. Mas eu sou e o confesso”); esquerda (“O esquerdista é o maior moedeiro falso de todos os tempos”) e Igreja Católica, que na visão dele estaria ameaçada “pelos padres de passeata, pelas freiras de minissaia”.

Ao tratar de religião, Nelson não perdia a oportunidade de fustigar um dos seus alvos preferidos, d. Helder Camara (1909-1999), a quem chama de “falsário” e acusa de ter esquecido “tanto a letra do Hino Nacional como a do Padre Nosso e da Ave Maria”.

“Que ele pegasse uma carabina e fosse pro mato ou terreno baldio, dar tiros em todas as direções, como Tom Mix, isso é um direito que ele tinha, um risco que ele assumia. Então ele arriscaria a própria pele, assumiria uma responsabilidade trágica e eu não diria nada”, afirma Nelson na entrevista distribuída aos agentes do Sisa. “Mas, se ele não faz isso, porque a coragem física não é pra todo mundo, ele não tem o direito de pregar o que prega”. Para Nelson, “dom Helder prega a luta armada, prega a aliança do marxismo e do cristianismo. Dom Helder diz que não hesita em colher no marxismo os elementos que lhe parecem justos. Portanto, dom Helder é um cristão para quem não basta o cristianismo. É o cristão sem vida eterna. É o cristão marxista”.

Ao fim da transcrição da entrevista dele,  a apostila elenca uma série de frases que teriam sido ditas por d. Helder no exterior, mostrando tolerância  com a violência revolucionária, o comunismo e Cuba. Nesse ponto o texto estabelece relação com o líder comunista Marighela, partidário da luta armada: “A propósito das ‘experiências geopolíticas cubanas’, é interessante lembrar que CARLOS MARIGHELA, ex-dirigente do PC, recebeu treinamento em Cuba. É ele o dirigente dos atos terroristas contra estações de TV e assaltos a bancos”.

Em seguida o texto menciona a “ação terrorista comunista” e diz que ela “conta com apoio de Helder Camara”.   A Igreja Católica estaria já “infiltrada” por “maus elementos, agentes da guerra revolucionária”. Haveria “dois baluartes inexpugnáveis” que barravam estes agentes: a Igreja e as Forças Armadas. Mas, conclui a apostila, “atacados solertemente por infiltrações em seus próprios organismos, um dos baluartes cedeu: a Igreja se esboroa”.

 

Censura e infiltração

O raio de ação da comunidade de informações ia da coleta de dados à repressão direta, com direito também à censura, incluindo a postal, com o confisco de correspondência.

Na apostila “Contra-Informações” a censura é defendida assim: “É importante porque através de notícias inocentes são enviadas, codificadas, mensagens importantes. O pessoal de censura tem que ser altamente especializado para poder exercer a contento a missão”.

 

Resumo dos documentos

A descrição sucinta de cada um deles:

O ciclo de informações: 15 páginas. Trata da coleta, organização e disseminação de informações. que seria a última fase do ciclo.

Informações: 13 páginas.

Contra-Informações: Seis páginas: “Compreende os seguintes campos: Contra-espionagem, Contra-sabotagem e Subversão”.

Movimento Comunista Internacional: 20 páginas. Traça um painel da atuação internacional dos comunistas e cataloga três tipos de pessoas que, não sendo comunistas, são “colaboradores” do movimento: os “companheiros de viagem”, os “simpatizantes” e os “oportunistas”. Estes são os que “desejosos de subir ou aparecer, encostam-se aos comunistas e, por ambição, passam a com eles colaborar”. São um “tipo perigoso” tanto para os comunistas quanto para seus opositores, porque agiriam só por interesse próprio.

Eu sou um ex-covarde: 14 páginas. É a que se vale de Nelson Rodrigues para atacar a esquerda e d. Helder Camara.

Democracia: 12 páginas: “O culto da liberdade não pode chegar ao suicídio da própria liberdade”.

Guerra revolucionária: 21 páginas (veja matéria na página anterior).

Segurança interna: 30 páginas. “Em um país como o nosso, ainda não desenvolvido, é difícil a prática da Democracia, conciliando a segurança com a liberdade”.

Na mesma apostila faz-se a defesa da infiltração de agentes em organizações inimigas, prática que seria adotada depois na luta contra os movimentos de luta armada. De acordo com o texto, existiam dois tipos de contra-informação: a defensiva (“Negar ao inimigo informes ou acesso a nossas áreas vitais”) e a ofensiva, da qual a infiltração faria parte.

O impulso da luta armada só aconteceria depois do AI-5 (dezembro de 1968), mas antes disso já havia ações sendo praticadas pela esquerda, como o atentado no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, em 1966.

A julgar pelo que mostram as apostilas, porém, pelo menos o pessoal da Aeronáutica já se preparava para um conflito com a esquerda armada: “Não basta que as atividades dos nossos serviços de informações sejam suficientes. Há também necessidade de procurarmos anular e restringir as atividades de informações do inimigo, salvaguardar as nossas informações de ação de espionagem, resguardar o pessoal de ações subversivas e proteger o material das ações de sabotagem”.

 

Fonte – Diário de Pernambuco

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *