Igreja colaborou com golpe de 1964

Integrante da Comissão da Verdade, Anivaldo Padilha afirmou que as igrejas protestantes preparam o clima político para o golpe militar no Brasil em 1964. As instituições religiosas usavam os sermões para propagar o discurso anticomunista em consonância com o pensamento norte-americano. A declaração ocorreu durante palestra na Universidade Metodista de São Paulo, ontem pela manhã. O cientista social é pai do ministro da Saúde e virtual candidato ao Palácio dos Bandeirantes no ano que vem, Alexandre Padilha (PT).

O pesquisador sustentou que os pastores e bispos sofriam forte influência dos Estados Unidos desde a década de 1950, quando a Guerra Fria já era uma realidade. “A Igreja foi responsável pela preparação do clima político na justificativa do golpe militar e na consolidação do poder”, disse.

Para criar instabilidade no governo do presidente João Goulart (1961–1964), os líderes protestantes contavam com a colaboração do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), entidade financiada pelos norte-americanos para criar campanhas que criassem atmosfera de insatisfação popular. As transmissões ocorriam em cinemas e indústrias.
Passado 1º de abril de 1964, dia do golpe, a relação entre militares e instituições religiosas se estreitou, enquanto frequentadores dos cultos, principalmente a juventude, se engajavam no movimento contra o regime.

Anivaldo é metodista e foi denunciado pelos irmãos José Sucasas Júnior e Isaías Fernandes Sucasas, pastor e bispo da igreja, segundo a ficha dele no Dops (Departamento de Ordem Política e Social).

Ele cuidava do jornal que circulava na igreja e que, segundo os líderes, tinha conteúdo subversivo. “Durante uma sessão de tortura queriam que eu admitisse que era comunista. O torturador me disse que um pastor havia me denunciado”, contou.

Depois da denúncia, ficou um ano preso, passou seis meses na clandestinidade e 13 anos de exílio – Chile, Uruguai, Argentina, Estados Unidos e Suécia. Apesar da situação em que líderes metodistas o colocaram, Anivaldo negou que sua fé tenha abalado. “Aprendi a fazer distinção entre a instituição e a comunidade cristã. A instituição é podre como qualquer outro setor da sociedade, mas a comunidade não”, explicou. Atualmente, ele frequenta a Igreja Metodista do bairro da Vila Mariana, na Capital.

O cientista social destacou que, com o fim do regime militar, as igrejas criaram a cultura do silêncio. Ele defendeu que o trabalho de apuração dos episódios ocorridos nos anos de chumbo tornou-se essencial para evitar que as lideranças eclesiásticas cometam os mesmos erros do passado. “O resgate da memória é fundamental para compreender o que ocorre hoje no Brasil. Só assim teremos condições de construir nosso futuro”, avaliou.

Por conta disso, Anivaldo defendeu que cada igreja protestante instaure uma comissão da verdade. “As igrejas adotam a práticas ditatoriais que continuam até hoje. É preciso que cada uma crie sua comissão”, ressaltou.

A professora da Faculdade de Teologia na Metodista Magali Cunha, que também integra a Comissão da Verdade, reforçou a tese do colega. “Temos um passado mal resolvido que deixou marcas e feridas que ainda não foram cicatrizadas. O passado ainda está em nós”, reiterou.

‘Pressão levará militares ao banco dos réus’

Anivaldo afirmou que somente a pressão popular pode fazer com que os torturadores sejam levados ao banco dos réus. Baseado na lei de anistia, o Judiciário não acata denúncias contra pessoas que cometeram crimes durante a ditadura militar.

O cientista social declarou que os juízes não se sensibilizam com os relatos apresentados pelo Ministério Público e que embasam o pedido de julgamento. “O Judiciário é o poder mais conservador que tem entre as três instâncias da República. É o poder mais insensível às necessidades políticas sociais e é o mais elitista, mas ele vai ter que debruçar sobre isso (julgamento de torturadores)”, analisou.

A vontade de Anivaldo é de que os militares participantes das sessões de tortura sejam analisados pela Justiça comum, como ocorreu na Argentina e no Chile. “Claro que queremos a condenação de torturadores, mas quero que seja punido por corte judicial no estado de direito com amplo direito de defesa. Não fazer com eles o que fizeram conosco”, destacou. As práticas de tortura utilizadas na América Latina eram todas similares e são enquadradas como crime contra a humanidade.

Quando a Comissão da Verdade foi criada, em novembro de 2011, muito se discutiu sobre o caráter não-punitivo do grupo. Anistiados políticos alegaram que o trabalho poderia ficar prejudicado justamente porque não teria a missão de apontar culpados. “A controvérsia em torno da comissão e da lei que criou era que muita gente queria o poder de punição. Eu mesmo pensava que devia ser o poder de investigar e propor indiciamento, mas percebi que nenhuma comissão da verdade teve esse poder. A punição compete ao Judiciário.”

Anivaldo traçou um paralelo com o Tribunal de Nuremberg, na Alemanha. O júri setenciou nazistas que teriam ferido o direito internacional durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em quatro anos foram julgados 199 homens, sendo 21 deles líderes nazistas.

‘Ditadura está presente no sistema eleitoral’

Pai do possível candidato do PT ao Palácio dos Bandeirantes no ano que vem, Anivaldo disparou contra o sistema político-eleitoral brasileiro. Segundo o cientista social, a política não dá abertura para participação popular, o que é uma forma ditatorial.

“A ditadura continua presente na forma como Estado se relaciona com a sociedade. Ela está presente na estrutura político-eleitoral. O sistema que foi criado para impedir mudanças e para possibilitar poder absoluto, o poder econômico nas eleições”, criticou. Ele não gosta de comentar sobre Alexandre, seu filho com projeção política.

A reforma política debatida no Congresso pretende acabar com o financiamento privado de campanha. O cientista social citou o exemplo da bancada ruralista no Congresso Nacional que, segundo ele, é financiada por latifundiários. “Os grandes empresários não representam nem 5% da sociedade e detêm quase 200 deputados. Eles não têm partido, eles têm bancada”, ressaltou.

Anivaldo defendeu a realização de plebiscito ou referendo para definir quais pontos da legislação eleitoral devem ser modificados. “É forma de superar esse entulho autoritário”, completou.

 

PRÁTICAS

O anistiado avaliou que a PM (Polícia Militar – sem citar Estado específico) dá sinais que as práticas cometidas nos porões da ditadura permanecem vivas na memória dos militares. “A PM não foi criada para servir à sociedade, mas para matar e servir o Exército. A ocultação de cadáver é atividade que é praticada até hoje”, disse. Ele citou como exemplo o movimento das Mães de Maio, que procuram seus filhos assassinados durante os ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) em maio de 2006.

O caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza foi outro exemplo. Em julho, ele foi visto sendo levado por policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha e nunca mais apareceu. “A pergunta continua: onde está Amarildo?.”

Grupo de trabalho revela tortura aos índios

“Simplesmente inaceitável o que aconteceu com os indígenas.” Anivaldo não conteve as lágrimas após dar sua conclusão sobre o tratamento que os índios tiveram durante o regime militar.

A Comissão da Verdade foi surpreendida com diversas denúncias de abusos por parte dos militares. Existem indícios de aldeias que foram disseminadas com dinamites jogadas pelos repressores.

Os agentes treinavam indígenas e ensinavam técnicas de torturas para eles – existem relatos de formaturas de policiais índios, onde os cadáveres de colegas de aldeia eram carregados como forma de troféu. O grupo teve acesso aos vídeos produzidos pelo regime. “Os militares forçavam o índio a exercer papel de polícia”, afirmou.

O motivo de tanta violência era um só: a expansão do agronegócio, principalmente na Amazônia. “Há documentos que mostram conivência entre ditadura e o grande proprietário de terra, indústria do agronegócio. Nesta situação é difícil separar o agente de Estado e o latifundiário porque em grandes partes trabalham juntos.”

O cientista alegou que os índios foram disseminados por conta dos interesses empresariais, pois eles não tinham noção do que ocorria no Brasil. “Nós, que lutávamos contra a ditadura, tínhamos plena consciência do que estávamos fazendo. Os índios não sabiam nem o que era Estado”, declarou Anivaldo, não escondendo sua revolta.

Boa parte do relatório da Comissão da Verdade deve ser dedicada aos episódios com os indígenas. Anivaldo relatou a dificuldade no desenvolvimento do trabalho, principalmente pela falta de documentos, tendo em vista que a maioria dos índios na época não era alfabetizada. “Não estamos lidando com cultura letrada, somente oral. Temos que nos basear em relatos.”

 

Fonte – Diário do Grande ABC

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