O regime militar deixou marcas profundas no corpo e na alma de muitos brasileiros. Com a proximidade do aniversário de 50 anos do golpe, em primeiro de abril, muitas vítimas dos anos de chumbo iniciam um período de reflexão, em que dolorosas lembranças voltam à tona.
Repórter conta que pais transformaram experiência traumática em conscientização dos filhos
Durante a próxima semana, a BBC Brasil publicará uma série de reportagens sobre o tema, abordando diversos aspectos do período militar no Brasil e destacando personagens que, com suas histórias, trazem à vida os fantasmas dos 21 anos entre a queda de João Goulart e a Nova República.
O pai de Pablo Uchôa, correspondente da BBC Brasil em Washington, foi uma das vítimas. Militante trotskista, ele cumpriu pena de prisão em Pernambuco nos anos 70, depois de ter passado três meses em uma prisão “dantesca” do Dops em Recife.
No depoimento abaixo, Uchôa narra a trajetória de seu pai e relembra a forma como ele encarou as dificuldades do período, transformando o legado da ditadura “não em rancor, mas em consciência política para os seus filhos”.
Na minha meninice, nunca achei que meu pai, Inocêncio, fosse super-herói. Mas eu sabia que ele era um homem forte.
Diziam que, nos anos de chumbo, tinha apanhado tanto que, certa vez, os algozes do regime militar lhe haviam quebrado um cacetete no peito.
E, no entanto, como em um filme de Roberto Benigni, crescemos, meu irmão e eu, relativamente protegidos dos detalhes mais cruéis da perseguição política que tocou nossa família.
Tive o privilégio de nascer em uma família politizada e militante de classe média de Fortaleza. Aprendi, talvez mais precocemente que outras crianças, o significado da palavra anistia.
Conhecia, por depoimentos alheios, o terror a que foram submetidos os prisioneiros políticos durante o regime militar que se instalou no Brasil 50 anos atrás.
Mas não foi senão recentemente que meu pai me contou sobre sua própria experiência nas celas insalubres e infestadas de ratos e baratas no Dops do Recife, onde ficou detido por três meses antes de cumprir sentença na Casa de Detenção daquela cidade.
Retrato ‘dantesco’
Apelidado de “buque”, o “submundo do órgão”, ele descreve, era o retrato “dantesco” de uma prisão medieval, com suas grades que garantiam nenhuma privacidade aos detentos. Estes dormiam seminus no chão, esfomeados, com frio e embrulhados em folhas de jornais velhos.
Até então eu ignorava que meu pai havia passado noites algemado às grades, isolado, forçado a se manter acordado após um bate-boca com um oficial na Companhia de Guardas, onde permanecera por outros dois meses.
Inocêncio Uchoa chegou a passar por uma simulação de execução quando estava presoE que certa vez, alta madrugada, fora arrancado com alguns companheiros de sua cela e levado em um caminhão do regime militar até uma praia deserta.
A resignação de haver chegado ao fim de tudo quando os militares se alinharam em fila, empunharam seus rifles – preparar, apontar… e suspenderam a encenada execução, tortura psicológica das mais duradouras.
O termo “psicológico”, aqui, usado por meu pai como um poderoso eufemismo para o terror imposto aos presos políticos dos anos de chumbo.
É que, no curioso ordenamento dos ex-detidos, respeita-se a memória dos que foram submetidos à dor mais excruciante da pior tortura física – o infame pau-de-arara, os choques elétricos na ponta dos dedos, testículos e ânus, os estupros – e não saíram vivos.
Detenção
A foto em preto-e-branco que recebo de minha mãe, Angela, mostra um jovem de bigode farto e óculos de aros grossos, aparente normalidade só desmentida pelas grades de ferro ao fundo.
Foi tirada entre em 1970 ou 1971, quando meu pai ficou preso na Casa de Detenção do Recife.
“A detenção foi um alívio. Porque, quando você chega na Casa de Detenção, a sua prisão fica legalizada”, resumiu um de seus colegas de prisão, Mário Miranda, em um documentário apoiado pela Comissão da Anistia sobre 23 ex-presos políticos da detenção, A Mesa Vermelha(2013, direção Tuca Siqueira).
“Isso não é pouca coisa numa ditadura”.
O tratamento ali tampouco era “dos melhores”, diz meu pai, e com frequência os presos eram levados a fazer greves de fome em protesto contra os castigos, a degradação da revista a que os familiares eram submetidos – em especial as mulheres –, e por direitos básicos.
O filho do município de Aracati, irmão de 13, cuja propensão para os estudos o levara ao colégio marista (melhor possibilidade de educação para a época), já contava então com quatro processos penal-militares em Fortaleza, Recife e São Paulo.
Repórter diz que seus pais não se deixaram tomar pelo rancor, mesmo diante de horrores da ditaduraMeu pai presidia o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) quando o regime militar estourou o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) na cidade de Ibiúna, São Paulo, em 1968.
Dos cerca de 70 indiciados, dez eram do Ceará, meu pai, um deles. O incidente lhe rendeu o trancamento compulsório da matrícula pelos três anos seguintes.
Mas, àquela altura, quem havia entrado na Universidade como estudante havia se comprometido, no decorrer dos anos, com “fazer a revolução”, conta meu pai.
O regime militar pós-AI-5 (anunciado em dezembro de 1968) apertava o cerco contra os dissidentes. Para escapar, ele foi enviado a Pernambuco em 1969 como militante da Fração Bolchevique-Trotskista, atuando entre os camponeses nas lavouras de açúcar da Zona da Mata.
De certa forma, foi uma sorte que seu “aparelho”, como reportaram os jornais da época, tenha sido desbaratado rapidamente, em operações no Recife e em Fortaleza.
Não era segredo de ninguém a metodologia que os torturadores aplicavam aos “subversivos” para arrancar informações sobre o paradeiro de seus companheiros foragidos.
Clandestinidade
Meu pai deixou a prisão em abril de 1971. Casou-se com minha mãe (meu avô materno conseguiu que a união não saísse publicada nos boletins oficiais) e, dois meses depois, se mudou para o Rio de Janeiro, onde ela dava prosseguimento aos seus estudos de medicina.
Em setembro de 1971, a Justiça elevou sua sentença, lançando novamente sobre meus pais o manto da clandestinidade. As fotos de família da época são escassas.
De favores, meu pai conseguiu matricular-se a fim de terminar seus estudos de Direito na faculdade Cândido Mendes, em troca de “entrar mudo e sair calado” da sala de aula.
Sobre a vida na clandestinidade, destaco a descrição do amigo e ex-companheiro de cela de meu pai, José Arlindo Soares.
“A gente vivia completamente isolados”, contou ele no mesmo documentário (referia-se a quando, expulso da faculdade, vivia na iminência de ser preso).
“É como se você vivesse na cidade, mas a cidade não vivesse dentro de você. Você não interagia com a cidade.”
Meu irmão Marcelo (batizado em homenagem ao antigo nome de guerra do meu pai) e eu nascemos nesse período.
Ele ainda retém memórias de uma infância relativamente normal no Rio de Janeiro: passeatas em que saía gritando “Abaixo a dentadura!” montado sobre os ombros do meu pai; a distribuição de panfletos do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) sob as portas na campanha para o governo do Estado em 1978; amigos de família tocando músicas de Chico Buarque e Gilberto Gil ao violão.
Cenas de uma vida bela, alheia aos horrores de um regime que iniciava sua derrocada.
‘Passado a limpo’
Considero um sucesso que meus pais tenham traduzido 21 anos de ditadura não em rancor, mas em consciência política para os seus filhos.
(Marcelo, com seu engajamento político precoce, seria entrevistado aos nove anos de idade pelo jornal Diário do Nordeste durante um comício das Diretas Já em Fortaleza: “Interrogado se estava gostando da festa, Marcelo respondeu: ‘Claro, eu sou das Diretas, ora'”, escreveu o jornal.)
De certa forma, meu irmão continuou a luta de meus pais, advogando por ex-presos políticos, ensinando Direito Internacional e Direitos Humanos na Universidade de Fortaleza e escrevendo sobre memória e verdade.
Ex-coordenador especial de Políticas Públicas de Direitos Humanos no Estado, chegou a ciceronear uma Caravana da Anistia promovida pelo Ministério da Justiça.
Os momentos mais sombrios da história familiar não ficaram esquecidos, mas meu pai diz que tinha razões para manter a discrição.
“Ninguém quer falar (de tortura) num primeiro momento. É uma coisa muito dolorosa. A sociedade precisa de um pouco de silêncio”, reflete.
Além disso, ele diz, “nós entramos na lógica de ajudar na organização dos sindicatos, de associações, de lutar pela Constituinte, por eleições diretas, uma sucessão de coisas que não nos permitia ainda falar disso”.
Acredito que existissem igualmente razões práticas: uma busca nos arquivos do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) e de outros órgãos do regime militar indicaram que meu pai continuava sendo alvo de interesse pelo menos até 1989, uma década inteira após a Lei da Anistia.
Nessa época, ele estava fortemente envolvido com o estabelecimento de sindicatos e de organizações de esquerda no Ceará.
O advento da Comissão da Verdade, com seu objetivo de “passar a limpo” a história do período, é o mote para que venham à tona os segredos dos indivíduos, bem como das instituições.
É uma história intrinsecamente coletiva e, ao mesmo tempo, profundamente pessoal.
Fonte – BBC Brasil