Comissão Nacional da Verdade e Ministério Público se queixam de que as Forças Armadas têm dificultado investigações sobre a ditadura militar ao deixar de fornecer informações
Pedro Dallari (D) em reunião da Comissão Nacional da Verdade: crítica à falta de colaboração
As Forças Armadas têm se recusado a responder dezenas de ofícios da Comissão Nacional da Verdade e do Ministério Público Federal, travando a investigação de crimes da ditadura (1964-85). Desde que foi criada, em maio de 2012, a comissão não recebeu qualquer informação relevante do Exército, Marinha ou Aeronáutica, segundo levantamento feito a pedido da reportagem. Oficialmente, o discurso é outro: o Ministério da Defesa e as três Forças afirmam que estão colaborando.
A comissão requereu a relação de oficiais que serviram em órgãos da repressão, questionando ainda quais foram as bases militares utilizadas. Não houve resposta. De um pedido de informação sobre 60 militares, somente a Marinha respondeu, apresentando o nome de dois. Nenhum dado foi obtido de um outro requerimento que cobrava dados sobre 309 casos de torturas, mortes e desaparecimentos.
Procuradores, responsáveis pelas investigações dos crimes do período, dizem o mesmo: a falta de colaboração atrapalha o andamento de inquéritos abertos em diversos estados com o objetivo de questionar a validade da Lei da Anistia em casos de desaparecimento forçado.
Embora sejam os órgãos federais os que mais respondem aos pedidos da Lei de Acesso à Informação (índice superior a 95%, de acordo com a Controladoria Geral da União), as três Forças adotam tática protocolar de apresentar informações superficiais ou incompletas. Segundo um ex-ministro da Defesa do governo Lula, as Forças Armadas se especializaram em repassar “informações minimalistas”, sem se comprometer. A preocupação é de que a abertura dos arquivos possa incriminar militares pela tortura ou morte de opositores. “Essa prática demonstra um claro compromisso institucional com as graves violações da época”, diz Pedro Dallari, coordenador da Comissão Nacional da Verdade.
O boicote dos militares também prejudica o trabalho do Ministério Público Federal. “Quando pedimos informações, o tratamento costuma ser cordial, mas os resultados são mínimos”, conta o procurador Marlon Weichert. No Rio, procuradores que investigam casos como o atentado do Riocentro esbarram no mesmo boicote. O Exército tem se negado a prestar informações básicas como a ficha funcional de oficiais e o controle de entrada dos quartéis.
Juízo
Responsável por intermediar a relação entre a Comissão da Verdade e as Forças Armadas, o Ministério da Defesa informou que apenas quatro pedidos de informações aguardam resposta dos comandos militares. Segundo a pasta, de um total de 30 requisições, 26 já foram respondidas, sendo que 12 foram enviadas com a apresentação de documentos. O Ministério da Defesa não faz juízo sobre as respostas que envia à Comissão da Verdade. “Procura simplesmente cumprir seu papel institucional e cooperar em tudo o que pode para atender os pedidos que lhe são formulados”, disse, em nota.
A Marinha, por sua vez, informou que é rigorosa no cumprimento das leis e dos regulamentos, e que continuará contribuindo com as tarefas do Ministério Público Federal, da Comissão Nacional da Verdade, ou de outro órgão do Estado com competência em realizar diligências sobre quaisquer temas de interesse da sociedade, colocando-se à inteira disposição para o atendimento de qualquer demanda que esteja ao seu alcance. A Aeronáutica informou que tem contribuído com a Comissão da Verdade e outros órgãos governamentais para o cumprimento de suas atividades. Já o Exército, também procurado, não respondeu.
Foco na Casa da Morte
A Comissão Nacional da Verdade fará na terça-feira uma audiência pública sobre a Casa da Morte de Petrópolis, uma das maiores barbaridades realizadas pelos militares que deram o golpe em 1964. A audiência foi planejada com base na denúncia da mineira Inês Etienne Romeu, dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e única sobrevivente da Casa da Morte, feita ao Conselho Federal da OAB no ano de 1979.
A Casa da Morte foi um centro clandestino de tortura, morte e ocultação de cadáveres instalado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em uma residência de um bairro afastado da cidade de Petrópolis. Com base nos depoimentos de Inês Etienne e de outras pessoas, a CNV realizou investigações, diligências e identificou torturadores que atuaram na casa no período em que ela esteve presa, que foram convocados para prestar depoimento na audiência, que será transmitida ao vivo pela internet. (www.tinyurl.com/cnvaovivo)
Inês foi presa pelo Delegado Sérgio Paranhos Fleury em São Paulo, em 5 de maio de 1971. Ela foi levada à Casa da Morte de Petrópolis, onde viveu 96 dias de cárcere privado, sendo submetida a torturas, a estupros e a todo tipo de humilhação. Em 11 agosto de 1971, Inês foi libertada e no dia seguinte internada em um hospital, onde a prisão foi oficializada.
No hospital, em 18 de setembro de 1971, Inês finalizou seu depoimento. Em 5 de setembro de 1979, pouco depois de sair da prisão em virtude da anistia, ela finalmente pode entregar seu testemunho ao Conselho Federal da OAB. Em sua denúncia, ela identificou seus torturadores e carcereiros, bem como vários militantes que passaram pela Casa da Morte de Petrópolis, onde foram torturados, executados, tiveram seus corpos ocultados e continuam desaparecidos.
Em fevereiro de 1981, Inês Etienne Romeu conseguiu localizar e reconhecer a casa onde esteve presa em Petrópolis, assim como seu proprietário, Mario Lodders. Em 2012, a casa foi declarada de utilidade pública pelo Município de Petrópolis, com o objetivo de transformá-la num centro de memória. Além dos depoimentos, a Comissão apresentará na audiência relatório preliminar de pesquisa sobre a Casa da Morte de Petrópolis, com exposição de filmes, fotografias e documentos. A audiência será às 9h, no Auditório do Arquivo Nacional, no Centro do Rio de Janeiro.
Fonte – Estado de Minas