A Comissão da Anistia do Ministério da Justiça realizou na semana passada, em Recife (PE), o “Congresso Internacional 50 anos do Golpe e a Nova Agenda da Justiça de Transição no Brasil”. Dentre outras atividades, durante este evento ocorreu a primeira audiência pública de prestação de contas das Clínicas do Testemunho.
Os integrantes das Clínicas destacam a importância de políticas de memória não apenas para as vítimas da violência, mas para toda a sociedade.
Iniciativa inovadora no país, o Projeto Clínicas do Testemunho é um programa vinculado à Comissão de Anistia que consiste na formação de núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados pela violência do Estado durante a ditadura militar.
São cinco as Clínicas do Testemunho: do Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo), do Instituto Projetos Terapêuticos (São Paulo), da Sigmund Freud Associação Psicanalítica (presente tanto em Porto Alegre quanto em Pernambuco) e do Instituto Projetos Terapêuticos (Rio de Janeiro).
Durante a audiência, membros das Clínicas do Testemunho falaram sobre suas experiências clínicas e institucionais e sobre a evolução dos trabalhos nestes primeiros meses do projeto.
O Viomundo conversou com Maria Beatriz Vanucchi, do Instituto Projetos Terapêuticos, e com Vera Vital Brasil e Alexei Conte Indursky, da associação psicanalítica Sigmund Freud das cidades de Rio de Janeiro e Recife, respectivamente. Todos eles são coordenadores das Clínicas do Testemunho.
Viomundo: De uma maneira breve como vocês avaliam a experiência das Clínicas do Testemunho?
Vera Vital Brasil: É um projeto piloto para uma politica pública que mostra que, finalmente, depois de tantos anos, o Estado começa a se responsabilizar por este campo de reparação aos afetados pela violência praticada por seus agentes. Inicia-se um processo que esperamos poder se efetivar, posteriormente, como programa estatal.
Viomundo: Quais são as especificidades do sofrimento de pessoas que são vítimas de crimes que nunca foram devidamente reconhecidos enquanto tais pelo Estado, nunca tiveram os criminosos responsabilizados e nunca tiveram suas circunstâncias completamente esclarecidas?
Vera Vital Brasil: O projeto piloto da Clínica do Testemunho tem propiciado uma experiência muito interessante e importante, porque os usuários deste serviço podem, pela primeira vez, tratar-se num dispositivo terapêutico proposto e suportado pelo Estado brasileiro. O traço de ser uma clínica incluída numa política de reparação dos danos causados pelo próprio Estado é uma marca distintiva. Não só porque implica o reconhecimento de um dever, mas pelo efeito simbólico que esta marca propicia. Muitos dos nossos pacientes já se trataram das mais variadas formas, durante esses 40 anos, mas neste momento têm a oportunidade de ter um tratamento num espaço terapêutico compartilhado. Podemos dizer que a clínica do trauma é uma clínica que tem suas especificidades, mas neste caso essa especificidade ganha uma dimensão mais aguda: a Clínica do Testemunho é uma clínica do trauma decorrente de uma catástrofe social. Definimos como catástrofe social o efeito na sociedade da quebra da função do Estado de sua posição de regulação dos laços sociais. Nos períodos caracterizados como “períodos de exceção”, o Estado, que seria o garantidor da lei, passa a ser o agente da violação da lei, aparece como o condutor de uma política pensada e dirigida para o extermínio e o terror. Portanto há uma dimensão de tratamento da sociedade como um todo, do trauma social.
Viomundo: Qual é a especificidade da clínica, neste caso?
Maria Beatriz Vannuchi: Por ser uma clínica no laço social, propomos uma clínica articulada nos dispositivos coletivos, grupais e familiares. E também propomos que sejam grupos transgeracionais. As várias gerações afetadas devem poder falar da história pessoal e social e de suas heranças.Podemos recorrer aos atendimentos individuais, ou mesmo ao recurso medicamentoso, quando necessário. Porém, ao nossa proposta é que esses recursos sejam usados pontualmente e não desloquem o grupo e os dispositivos coletivos do lugar de articulação e direção desta clínica. Há uma outra questão importante. Como bem disse Paulo Abrão, na abertura deste congresso, a violência de uma ditadura não se mede pela pilha de cadáveres que ela fez, mas pelo terror que difundiu em toda a sociedade. Nesse sentido há um dispositivo que temos tomado como clínico porque pretende incidir sobre o silenciamento ainda existente nos espaços sociais e que se refere aos efeitos do terrorismo de Estado na subjetividade de seus cidadãos. Esse dispositivo que tem um caráter mais coletivo e é o que chamamos de “Conversas Clínicas Públicas”, nas quais se abre um espaço coletivo para que as pessoas possam falar e ouvir.
Viomundo: Qual a importância de políticas públicas de memória para a evolução clínica destes pacientes?
Alexei Conte Indursky: O desenvolvimento de políticas de memória em todos os países que pretendem realizar sua transição democrática é fundamental não apenas para os afetados diretamente pelo violência totalitária, mas para a comunidade em sua ampla concepção. No tocante aos afetados diretamente pelas violações de direitos humanos, os memoriais e sítios de memória permitem que a vivência individual e subjetiva destes possa se conectar com a memória coletiva e social de sua comunidade que, após anos de silenciamento, torna-se pública. O memorial possui a potência de associar a pesquisa documental dos arquivos aos testemunhos, não se restringindo à frieza ou dureza de monumentos ou museus que muitas vezes fracassam em transmitir as experiências de resistência e solidariedade, bem como de terror e barbárie, às novas e velhas gerações. Aliás, essa preocupação de que as políticas de memória não sobreponham o terror à resistência e à solidariedade é fundamental no trabalho com os testemunhos, uma vez que são as memórias de solidariedade que muitas vezes se constituem como elementos desentoxicadores e curativos frente aos traumas que congelam os afetos e pensamentos. Assim sendo, as políticas de memórias são uma das ações que convocam aos sujeitos afetados a se tornarem atores da justiça de transição, rompendo o silenciamento ao devolver às experiências sua dimensão histórica e coletiva.
Viomundo: Como vocês veem, enquanto psicanalistas, a noção de reparação? A psicanálise não vê o trauma como algo que é radicalmente irreparável?
Alexei Conte Indursky: De fato, o trauma na psicanálise possui um caráter irredutível quanto ao real da violência que invade o sujeito. Existem coisas de que não se esquece nunca. Mas nós pensamos a reparação psíquica não enquanto uma ação que viria apaziguar o sofrimento através do apagamento do vivido. Muito antes, a reparação é possível na medida em que o sujeito, através de tratamento individual ou grupos de testemunho, consegue apropriar-se das vivências de horror as quais foi exposto narrando-as, ao invés de ser narrado por elas.
Maria Beatriz Vannuchi: O trauma, para a psicanálise, se caracteriza menos pelos fatos ocorridos do que pelo efeito de ruptura dos recursos psíquicos e dos laços de sustentação de um sujeito para lidar com o excesso na dor, tanto psíquica quanto física. Muitos pacientes se referem à sua dor pelo efeito dos golpes da tortura, mas também pelo golpe de seus laços de cumplicidade ou de seus grupos de referência. Para alguns, o efeito de devastação foi sentido na saída da prisão, ou na chegada ao lugar de exílio, onde não encontravam mais ninguém para partilhar seus ideais.Neste sentido, a “reparação” não é a eliminação da memória traumática, mas a criação, a construção de um repertório psíquico, de narrativas e de laços afetivos, defesas que temos para lidar com a experiência do desamparo. A inclusão da destruição é parte da reparação. O reconhecimento da quebra como parte da trajetória é uma passagem necessária para a reconstrução de um lugar no mundo. A ideia desta clínica não visa “curar” nem reparar integralmente o que não tem cura, mas incluir no repertório subjetivo e na historia compartilhada socialmente elementos que permitam a intermediação dos laços sociais e afetivos desses sujeitos no mundo.
Viomundo: Que tipo de dispositivos clínicos vocês consideram o mais apropriado para estes casos?
Maria Beatriz Vannuchi: O dispositivo articulador do tratamento é o grupo intergeracional. As intervenções pontuais nos atendimento de famílias, ou mesmo individuais, são dispositivos clínicos que temos usado nestes tratamentos e tem se mostrado bastante importantes. Quando uma situação mais delicada, referente aos laços familiares, desponta no grupo, para não incorrer na violência de expor e invadir os sujeitos em tratamento, propomos uma sequência de sessões familiares em paralelo aos atendimentos em grupo. As sessões individuais, quando necessárias, também são propostas. Mas o grupo permanece como articulador do tratamento. É importante ressaltar que essas intervenções clínicas pontuais são usadas para evitar que se reproduza a re-vitimização pelo excesso de exposição, experiência tão terrível da condição da tortura. Na tortura, o primeiro golpe é o da quebra dos limites da condição de intimidade, quando o corpo torturado sofre uma exposição obscena, um corpo para o uso do torturador. Respeitar o delicado limite da intimidade é condição de tratamento. Por outro lado, há uma tessitura dos laços e da cumplicidade que o grupo propicia, muito além das individualidades.
Viomundo: E como se trabalha clinicamente com a ideia de testemunhos? Quais os impactos da sistematização e publicização de um testemunho para os pacientes?
Alexei Conte Indursky: É justamente na medida em que o sofrimento individualizado pode ser endereçado a um outro, seja ele o terapeuta, um grupo de testemunho ou uma comissão de verdade, que o sujeito pode se re-posicionar frente a cena traumática, metabolizando o horror através da fala, do compartilhamento e da identificação da dimensão coletiva de sua vivência. Ou seja, cria-se espaços seguros para que o horror não invada novamente o sujeito, desestabilizando-o. Importante lembrar que o testemunho é sempre uma co-criação. Ele depende tanto da posição do testemunho frente sua experiência quanto das condições sociais de recebimento do testemunho. Muitas vezes é mais traumático para um testemunho não ser escutado ou ser tomado por um embuste do que o próprio conteúdo das cenas sobre as quais se fala. Nesse sentido, o Clínicas do Testemunho trabalha para produzir condições de possibilidade para que novos e velhos testemunhos possam vir ao público, minimizando os riscos de reatualização do traumático ou revitimização. O acompanhamento dos sujeitos que desejam testemunhar pela primeira vez, ou ainda daqueles que já o fizeram, mas desejam repensar qual é sua posição de testemunho, revela que o processo testemunhal é complexo e demanda muita coragem dos envolvidos, testemunhos e ouvintes. Não se toma um testemunho do dia para noite, evidentemente. Existe uma temporalidade necessária para acomodar/desacomodar as memórias e afetos que solicita dos terapeutas do Clínicas um acompanhamento durante esse processo para que os riscos de melancolização e isolamento não abatam o sujeito de forma abrupta. Frente a tais constatações, quando os participantes do Clínicas decidem por formalizar os registros orais ou/e escritos feitos por eles, vemos uma potência clínica muito forte na possibilidade de historicizar e de publicizar esse processo testemunhal, no qual essas ida e vindas subjetivas serão registradas. São movimentos de saúde muito importantes, mas não compulsórios. O trabalho clínico trata de acompanhar o sujeito na sua descoberta por horizontes possíveis de expressão e elaboração do trauma.
Maria Beatriz Vannuchi: O testemunho, na concepção psicanalítica, pode ser pensado como a produção de sentido produzido por um sujeito sobre suas experiências em sua narrativa. O testemunho público, com tudo o que carrega de político e também em sua dimensão jurídica, pode ou não ter um efeito simbólico importante, pode ser ou não uma produção de sentido. A fala por si só é um início, mas não tem um efeito de reparação. Há cidadãos que nunca puderam falar disso e outros que só conseguem falar disso. Uma situação bastante recorrente nos grupos é o horror, que muitas vezes essas pessoas vivem, quando tentam falar e ouvem um silêncio ou uma desqualificação de sua fala. Isso pode gerar o silêncio ou a compulsão à fala. Quando o sujeito pode fazer o movimento importante de se apropriar desta fala no testemunho, e também escutar o reconhecimento que a sua narrativa causa no outro, há um ponto de partida para tecer os efeitos de reparação. A reparação possível vem pela abertura do que se instalou como um sofrimento privado, uma cripta isolada e devastadora que invade pela dor, pelo adoecimento ou pelo terror. A reparação passa necessariamente pela tessitura dos laços que sustentam o sujeito, o que permite que ele possa lembrar e esquecer. A reparação é a possibilidade de sair de uma posição passiva, para uma possibilidade de fazer algo com isso. Portanto, o efeito reparador do testemunho depende bastante daquilo que ele constrói com o outro, no campo social.
Por Dario de Negreiros e Rafael Schincariol, especial para o Viomundo