Um crânio com dois orifícios na parte posterior jaz sobre um pedaço de papelão, à espera de perícia. Em meio às crostas de terra em sua superfície, pode-se ver o códão E-34, escrito com hidrocor vermelho.
“Essa marca esverdeada é a impressão deixada pelo projétil”, explica a antropóloga forense Patrícia Bernardi, junto à maca metálica coberta por fragmentos ósseos que ela deve observar, analisar e catalogar.
Na sala, localizada em um bairro barulhento e quente no centro de Buenos Aires, há ossos por todas as partes: esqueletos inteiros, partes de braços e pernas, pedaços de crânios cobertos de terra.
São os restos dos desaparecidos.
“É a última coisa que resta de uma pessoa, bem como a última oportunidade para que o corpo fale e conte a verdade”, diz a antropóloga.
Após o fim do governo militar na Argentina, em dezembro de 1983, teve início um processo de busca e identificação das quase 10 mil pessoas que foram classificadas como desaparecidas pela Secretaria de Direitos Humanos, em meio a um desejo nacional por justiça.
Atualmente, as organizações de direitos humanos estimam que o número de vítimas do regime que governou a Argentina com mão de ferro entre 1976 e 1983 chegou a 30 mil.
Durante décadas, as “Mães da Praça de Maio” pedem informações que lhes indiquem se filhas e filhos estão mortos. Para isso, foi criada uma equipe dedicada a buscar e identificar os restos das vítimas.
Algo que não existia no mundo.
“O osso mostra a qualidade de vida que alguém teve”, explica Bernardi, enquanto alisa a superfície de um fêmur. “Temos que saber como os ler para saber tudo o que está dizendo.”
A antropóloga há 32 anos trabalha no projeto e é um dos membros fundadores da Equipe Argentina de Antropologia Forense (Eaaf). Mas, em 1984, tinha outros planos. Queria ser arqueóloga e descobrir antiguidades, em vez de estar com o peso histórico dos desaparecidos argentinos no quarto ao lado de seu escritório.
“Sequer sabia o que era um antropólogo forense.”
Em junho de 1984, porém, ela conheceu Clyde Snow, um antropólogo forense americano que viera para Buenos Aires a pedido de vários órgãos argentinos para decidir o que fazer com os restos mortais dos desaparecidos.
Chegou com a fama de “Sherlock Holmes dos ossos”. Trabalhara na identificação da ossada do criminoso nazista Joseph Mengele, que tinha se escondido no Brasil depois da guerra, e participara da autópsia do presidente americano John Fitzgerald Kennedy.
Mais tarde, trabalharia nas valas comuns de curdos mortos pelo regime de Saddam Hussein no Iraque e testemunhou contra o ditador no julgamento que levou Saddam à forca em 2006.
“Snow era a imagem do antiprofessor. Dava-nos aula em um bar, fazendo gráficos em guardanapos. Era muito humano e inteligente. Bebia e fumava muito. Conversamos muito, ainda que sempre em um inglês básico, pois ele não falava uma palavra de espanhol”, lembra Bernardi.
Graças à burocracia militar, havia um registro pormenorizado de prisões e enterros. Mas para tirar os ossos da terra, Snow queria mãos mais hábeis que as de coveiros, para não danificar ossos – as de arqueólogos iniciantes, como Patrícia. Ela e dois colegas – Luis Fondebrider e Mercedes Doretti – foram convidados pelo americano para auxiliá-lo no projeto.
“Achamos estranho que um americano quisesse nossa ajuda para isso. Nós nunca tínhamos trabalhado com ossadas, e a pressão para encontrar os desaparecidos era enorme”, lembra a antropóloga.
Mas o trio aceitou e, dias depois, reuniu-se nos portões do Cemitério de Avellaneda, na capital. Depois de sete horas de escavações, encontraram alguns ossos. “Não sabíamos muito bem onde estávamos cavando, mas me lembro de olhar para cima de dentro do buraco e ver as botas dos militares que nos observavam. Pensei: ‘Meu Deus, onde fomos nos meter'”.
Durante a escavação, Bernardi ouviu palavras duras de alguns militares. “Eles diziam que se tivessem feito o trabalho direito nós não estaríamos lá. O país estava muito instável. E, se os militares voltassem ao poder, era bem capaz que nós fôssemos os próximos desaparecidos.”
As escavações prosseguiram e foram revelando novas e novas valas. Seguiram encontrando esqueletos e classificando o achado, buscando marcas de violência nos ossos.
Dos cemitérios, foram para os laboratórios para analisar vestígios ósseos, sinais particulares, até chegarem ao primeiro caso positivo: em 1985, identificaram os restos de uma mulher – Liliana Carmen Pereyra, de 21 anos, que estava grávida de cinco meses quando desapareceu, em 15 de outubro de 1977.
Em abril de 1985, Snow levou este e outros resultados positivos para o Julgamento da Junta Militar, um processo instaurado pelo presidente Raúl Alfonsin para apurar as violações de direitos humanos cometidos pelos militares.
Snow entregou as provas mais certeiras contra os militares. Bernardi conta que advogados de defesa deixaram a sala. O trabalho de escavação não resultara apenas em ossos mas na evidência científica que contrariava a versão oficial de generais e almirantes de que jovens como Liliane tinham morrido em conflitos armados com as autoridades. Exames dos restos mortais da jovem revelaram que ela tinha sido executada.
Na tribuna, o americano apresentou fotos de outros casos: crânios danificados por marcas de balas na região da nunca, sugerindo disparo a 30 cm de distância, um sinal claro de tiros à queima-roupa, não de um enfrentamento.
Mas o caso de Lilian foi emblemático: ficou provado que ela dera à luz o bebê enquanto estava presa.
Mas como os cientistas conseguiram provar isso?
A equipe do Efaf explica que há ossos cruciais para buscar informações sobre seu dono. Um deles é o fêmur, que permite estimar a idade e a estatura. O crânio e o pélvis ajudam a decifrar o sexo. Já a arcada dentária pode ser comparada com a ficha odontológica da pessoa.
Os detalhes revelados pelos ossos permitem o cruzamento de informações que milhares de parentes de desaparecidos deixaram nos registros de uma comissão nacional. Dentes arrancados, defeitos físicos, acidentes sofridos, profissão (esqueletos de motoristas, por exemplo, apresentam atrofias nos discos da coluna). Tudo poderia ajudar.
“No caso de Liliana Pereyra, sua mãe disse que, dois meses antes da prisão, ela tinha passado por uma cirurgia de extração do dente canino superior direito. No crânio que achamos no cemitério, podíamos ver o espaço em que faltava o dente e havia sinais de uma extração recente.
Os ossos também delatam feridas. Muitas se desintegram com a carne, mas ficam alguns rastros. Fraturas no braço causadas por torturas, colunas vertebrais avariadas por disparos, crânios perfurados.
A equipe até agora já conseguiu confirmar a identidade de 700 pessoas, mas há outras 600 caixas de ossos à espera de um nome. Nelas, uma constante: feridas de tiros, muitos deles pelas costas, e à queima-roupa.
“Soube que Laura, minha filha, foi sequestrada e executada pelas costas, em vez de em um enfrentamento. Levaram-na da prisão para ser morta nos arredores de Buenos Aires”, conta à BBC Mundo (o serviço em espanhol da BBC), a ativista Estela de Carlotto, que recebeu o corpo da filha em agosto de 1978, algo pouco usual sob o regime militar.
Em 1985, ela pediu a exumação do corpo da filha para saber mais sobre sua morte, ela teve uma surpresa que lhe deu uma nova causa para lutar: durante a escavação, Clyde Snow, chamou-lhe para conversar.
“Ele me disse: ‘Estela, você é avó’. Nos pélvis há uma marca que mostra que mulheres deram à luz”, conta a ativista, hoje presidente do grupo Avós da Praça de Maio, que luta para saber o paradeiro de filhos de desaparecidos nascidos em cativeiro.
Estima-se que, na Argentina, haja pelo menos 500 crianças nascidas nessas circunstâncias e adotadas de forma clandestina, crescendo com outra identidade. Foi o caso do neto de Estela, que foi encontrado em 2014. E do filho de Liliane.
O descobrimento das “pegadas de DNA” pelo britânico Alec Jeffreys, em 1985, fez com que, a partir da década passada, fosse possível usar os ossos dos desaparecidos para determinar laços familiares através da genética, em vez da buscar de sinais como os relatados por parentes. Desde 2003, a técnica triplicou o número de identificações feitas pelo laboratório argentino.
O DNA também ajudou no trabalho de identificação de bebês e avós biológicos: em 2008, Hilário Bacca, um comerciante que vivia no centro da capital argentina, foi submetido a uma série de exames de sangue porque se suspeitava que ele era filho de desaparecidos.
Os exames confirmaram a identidade de sua mãe: Liliana Pereyra. Hilário foi o 95º neto recuperado pelas Avós da Praça de Maio, mas ele não ficou muito satisfeito.
“Conheci minha identidade biológica por meio de um exame compulsório e que não queria fazer. E agora preciso lidar com isso”, queixou-se ele à BBC Mundo, em 2011.
Seus pais “adotivos” foram a julgamento por apropriação de menores, mas Bacca insiste em defendê-los e chamá-los de “pais de coração”. Ele até testemunhou a favor deles no julgamento e se recusou adotar seu sobrenome verdadeiro.
“A essa altura da minha vida querem que eu desapareça para fazer de mim um Pereyra ou um Cagnola (sobrenome do pai, Eduardo, também desparecido), que para mim não existem.”
No entanto, Bacca passou a trabalhar com as Avós da Praça de Maio.
“Nunca sabemos como os familiares vão reagir diante de uma verdade assim. Vemos de tudo”, diz Patrícia Bernardi.
Os ossos continuam chegando. Vêm de cemitérios de outros recantos do país ou de valas clandestinas como o Pozo de Vargas, um poço de 40 m de profundidade em Tucuman, no norte da Argentina, que os militares usavam para desovar corpos de desparecidos. Recentemente, o laboratório conseguiu confirmar a identidade de um estudante sequestrado em 1976. Quarenta anos depois de sua família começar a buscá-lo.