Documentos até então confidenciais da Secretaria de Segurança Pública mostram a preocupação da ditadura com a suposta atuação de “padres comunistas”. No DF, levantamento detalhado servia para monitorar líderes católicos
Os militares monitoraram missas e atividades das comunidades eclesiais de base e fizeram fichas de todos os padres e bispos que atuavam no Distrito Federal durante a ditadura. Documentos até então sigilosos da Secretaria de Segurança Pública da capital, abertos à consulta pública na semana passada, mostram como religiosos brasilienses foram seguidos e fiscalizados pelos agentes do regime. Na terceira reportagem da série “Brasília Confidencial”, o Correio mostra a preocupação do Estado com a existência de “padres comunistas”, que se aproveitariam dos encontros católicos para fazer “propaganda subversiva”.
Comparada à atuação de líderes católicos de outras unidades da Federação, a pregação dos religiosos do Distrito Federal foi classificada como “mais moderada” em relatórios das forças de segurança da época. “Somente 8% do clero do DF é de tendência reformista-progressista”, detalhou um documento confidencial dos militares, elaborado no início dos anos 1980. Entre os padres da região classificados como “progressistas”, com possíveis atividades suspeitas pelo regime, estavam Angel Maria Monreal Ayans, Domingos Bortoli Buzzamarelo, Urbano Raush, Manuel Eduardo Iglesias Rivas, Jesus Rocha, Bernardo Cansi, Antônio Iasi Júnior, Leopoldo D’Astous e Raymundo Damasceno Assis – este último é o atual arcebispo emérito de Aparecida.
O registro do percentual de católicos com perfil mais progressista mostra os níveis de detalhes do levantamento. À época, havia 42 paróquias e 56 casas e residências de religiosos. Os agentes da ditadura militar fizeram uma lista com descrição minuciosa de todos os padres que atuavam na capital federal. A relação traz nome completo, idade, naturalidade e tendências políticas de cada líder religioso.
Outro relatório aponta preocupação com “a distribuição pela Igreja ou por entidades, órgãos ou movimento a ela ligados, de documentos variados, tais como cartilhas políticas, cadernos visando à educação popular, livretos interpretando as Cartas Papais, as resoluções conciliares, publicações sobre índios, sobre problemas sindicais e de terras”. Segundo o documento, “uma análise, por mais sumária que seja, mostra a quase totalidade desses documentos como peças da propaganda subversiva realizada por bispos, padres, religiosos e por leigos, todos intoxicados pela doutrina marxista”.
Segundo documentos produzidos por agentes do regime militar sobre a atividade de religiosos católicos, “é clara e nítida a intenção de separar o povo do governo, colocando-os em campos opostos. Para isso, deturpam a ação governamental e desmoralizam as autoridades constituídas”.
Um parecer confidencial sobre a Paróquia Dom Bosco, na 702/703 Sul, revela uma suposta atuação que “prega a transformação da sociedade capitalista em um sistema socialista e mostra-se contrária à política agrária do governo”. Muitos documentos não são datados. “O clero progressista, tendo à sua sombra as organizações subversivas e esquerdistas, de tendências variadas, desempenhando um papel revolucionário, segundo a mais refinada técnica preconizada pela doutrina Marxista-Leninista, intoxica psicologicamente a opinião pública, de forma negativa, colocando-a contra o governo, enfraquecendo-o e criando o clima para a sua QUEDA”, menciona um trecho de relatório, usando letras maiúsculas para demonstrar a preocupação com um possível enfraquecimento da ditadura.
Exemplo
Integrantes da Secretaria de Segurança Pública do DF usavam exemplos internacionais para justificar o monitoramento constante da Igreja Católica. “Exemplo recente, vindo da América Central, mostra que o clima preparado pela Igreja propiciou a derrubada de governos por meio da luta armada, levada a efeito por organizações comunistas, de pequeno porte, que se aproveitaram do trabalho anterior, realizado pelo clero local”. Um relatório ressalta que, assim como ocorrido na América Central, “nenhuma organização ostensiva ou clandestina no Brasil realizou trabalho de massa tão grande e tão eficiente, como a Igreja Católica vem fazendo”.
O controle das atividades eclesiásticas se estendeu até os anos 1990. Funcionários da Secretaria de Segurança Pública acompanharam em 1991 uma homilia do padre Michel Hall, na igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na Avenida Comercial Norte de Taguatinga. Segundo os relatos, “ele fez referência a vítimas da repressão militar, defendendo direitos humanos. Fez também alusão à passividade dos povos, diante das arbitrariedades cometidas”.
No acervo do Arquivo Público, é possível identificar documentos sobre a atividade de comunidades eclesiais de base (CEBs) em várias cidades. “Em Planaltina e Ceilândia, existem 16 grupos de jovens, que desenvolvem um trabalho de conscientização da doutrina cristã. Mas há apenas um trabalho de articulação das CEBs, não sendo detectada nenhuma tendência ideológica, embora alguns membros dos grupos sejam militantes de partidos políticos ou de associações de moradores”, indica um levantamento. A reportagem procurou a Arquidiocese de Brasília para repercutir a abertura dos acervos da ditadura sobre a igreja, mas, até o fechamento desta edição, não conseguiu entrevistar nenhum representante católico.