Seg , 10/08/2020 às 09:23
O livro-reportagem ‘Em Nome dos Pais’, do jornalista Matheus Leitão, é uma das obras imprescindíveis para se entender o mecanismo da ditadura militar que foi implantada no país de de 1964 a 1985. Filho dos jornalistas Míriam Leitão e Marcelo Netto, o autor produz um livro comovente, narrado na primeira pessoa, muito bem documentado, que é uma aula de jornalismo investigativo.
A obra, selo da Intrínseca, revela a luta de Matheus para falar com o delator, os torturadores dos jornalistas e com as pessoas coniventes com as atrocidades do regime de exceção. Militantes do PC do B no Espírito Santo, em 1972, os então estudantes, Marcelo e Míriam, foram presos e torturados. Na ocasião, Míriam estava grávida de Vladimir, o primeiro filho do casal.
Começava o calvário dos dois combatentes. Marcelo, entre outras torturas ficou nove meses em uma solitária e enfrentou um revólver em seu rosto nos moldes de uma roleta russa (operação que consiste em deixar uma só bala no tambor de um revólver, fazê-lo girar sem conhecer a posição exata da bala e deflagar o gatilho).
Míriam também ficou presa em uma solitária, nua, grávida e na companhia de uma jiboia.Os dois apanharam muito e ainda tiveram cachorros açoitados perto dos rostos dele. Quem denunciou os dois – Miriam com 19 anos e Marcelo com 22 anos – foi um companheiro do partido, Foedes dos Santos, que aliás foi quem deu os codinomes ou nomes de guerra de “Mateus” a Marcelo e de “Amélia” a Míriam na clandestinidade.
Fio condutor
“O fio condutor compreende o meu entendimento da prisão e da tortura sofridas por meus pais, a angústia que isso me provocou, a procura por documentos oficiais e a investigação, até encontrar aquele que os delatou aos militares. Narro também a visita que fiz a um dos locais em que meu pai esteve preso, na mesma época que minha mãe, e a árdua peregrinação atrás dos torturadores, a mais sofrida e fatigante”, afirma Matheus Leitão na apresentação do livro.
“Por isso este livro está em primeira pessoa. É o relato da minha procura. O sentimento que esteve comigo durante toda a apuração foi o de tentar entender a geração que me antecedeu, suas aflições, seus erros e, ainda, o contexto em que essa luta se deu…” , complementa.
O jornalista constata: “O resgate do passado é feito lentamente no Brasil e muitos fatos permanecem recobertos pelo silêncio forçado e irremissível das Forças Armadas. Nem a Comissão Nacional da Verdade — instalada pelo governo em 2012, para examinar as violações dos direitos humanos no âmbito político — conseguiu retirar completamente o véu que encobre os crimes da ditadura militar. O veto permanece e mostra a força da direita no Brasil, que, unida aos militares, tornou-se imbatível por vinte e um anos”.
O autor, nascido em 1977, que cresceu ouvindo palavras como prisão e porão, deu início às suas investigações há mais de dez anos, analisando documentos oficiais, antes mesmo da criação da Comissão Nacional da Verdade e da aprovação da Lei de Acesso à Informação.
Memória
Em um dos trechos mais emocionantes do livro Foedes pede perdão a Miriam e Marcelo. “Eu não escolhi ser delator. Eu escolhi a vida pois se não falasse eu morria” , diz, durante entrevista ao jornalista Matheus Leitão. Ele é perdoado pelo filho de Míriam e Marcelo. Aliás, chama a atenção a nobreza de sentimentos do repórter investigativo, que já ganhou um Prêmio Esso e é especialista em Direitos Humanos. Ele quer apenas que os violadores reconheçam seus erros e crimes.
Durante a via crucis de Matheus para encontrar os torturadores de seus pais ele vai levantando a memória de outros presos políticos a exemplo de Inês Etienne Romeu, a última presa política a ser libertada no Brasil e única sobrevivente da Casa da Morte, centro de tortura clandestino da ditadura, em Petrópolis (RJ), depois de mais de três meses de suplícios, que a levaram a tentar o suicídio.
Integrante da luta armada contra a ditadura militar – foi militante e dirigente das organizações Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares)– Inês denunciou ter sido estuprada pelo sargento Antônio Waneir Pinheiro de Lima, conhecido como Camarão, que também teria participado das torturas a Míriam.
Em um trabalho minucioso de reportagem o jornalista vai atrás de quase todas as figuras que violentaram seus pais, mas a maior parte age com cinismo e sequer admite que houve tortura no país. Há exceções como a de um ex militar que diz que depois que leu O Capital aderiu a ideologia de esquerda. Este militar, entretanto, foi curador de Miriam Leitão que era menor de idade e nada fez para protegê-lá.
Série documental
Vale lembrar que em março, a HBO produziu, para o canal pago HBO Mundi, uma série documental em quatro capítulos baseada no livro. A série vai além das entrevistas do livro. Além da análise de historiadores, traz depoimentos do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso.
Em Nome dos Pais é um livro que mostra os bastidores de uma investigação. Assusta porque mostra que em se tratando dos militares, eles ainda têm muita proteção legal. A escolha de ser narrado em primeira pessoa foi acertada. O leitor sofre e se emociona com Matheus Leitão, que é evangélico e, como os pais faziam , se reúne em células (assim chamados os pequenos grupos tanto de companheiros como fiéis que se reuniam para debates). Só que com finalidades distintas.
É um livro que toda pessoa que defende a ditadura deve ler pois mostra que naquele período todos os direitos humanos foram abolidos. Para todos jornalistas, a obra é uma lição de boa apuração, compromisso com a verdade, ética e prática de investigação rigorosa e criteriosa.