Publicado originalmente em 13/05/2021 04h44 por Camilo Vannuchi
Parece incrível, mas o filme de Wagner Moura, que estreou há mais de dois anos no Festival de Berlim e seria lançado no Brasil em novembro de 2019 – não fosse um imbróglio com a Ancine, revelado em meados daquele ano -, está mais forte, pungente, inspirador e necessário hoje do que antes da pandemia.
No início desta semana, sites e jornais voltaram a tratar da cinebiografia do baiano Carlos Marighella, chefe da Ação Libertadora Nacional, a ALN, uma das mais importantes organizações de resistência à ditadura militar no Brasil. O motivo não guarda relação com Ancine, censura ou Bolsonaro. Exibido na plataforma de streaming de uma rede de cinema dos Estados Unidos, onde entrou em circuito comercial no início do mês, o longa foi copiado sem autorização e disponibilizado para download, via Torrent e pastas do Google Drive, de modo que diversos links de acesso correram os grupos de WhatsApp nos últimos dias. Os produtores chegaram a se reunir para discutir se mudariam a data de estreia por aqui. Optaram por mantê-la em novembro. Uma pena.
Marighella, inspirado no livro Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista-escritor Mário Magalhães, deveria ser visto logo, muito antes de novembro. Hoje mesmo, se fosse possível. Do conteúdo à estética, das porradas em sentido literal às porradas em sentido figurado, tudo parece urgente no filme de Wagner Moura. Sobretudo a linha tênue que separa utopia e esperança.
Nesta coluna, vou tratar de alguns temas especialmente contemporâneos que o filme nos traz. Garanto que o spoiler que virá a seguir é sutil e não comprometerá a experiência de assistir ao filme. Aos leitores com histórico de intolerância ou rejeição a teasers e resenhas, recomendo cautela. Àqueles que acham que o país atravessa uma fase alvissareira, pujante, de excepcional desenvolvimento, que o Governo Federal está no rumo certo, que o ex-capitão é o melhor presidente que o Brasil já teve e cloroquina é bálsamo milagroso contra a Covid-19, sugiro encerrar a leitura por aqui – e, ainda nesta semana, procurar um psiquiatra ou um terapeuta.
Ação, reação, inação — Um primeiro sintoma da atualidade colossal do filme de Wagner Moura é o olhar voltado para o rescaldo do golpe de 1964, quatro anos após sua consumação. No vídeo, Marighella (Seu Jorge) e Branco (Luiz Carlos Vasconcelos), personagem inspirado em Joaquim Câmara Ferreira, o “Velho”, defendem a opção pela luta armada, enquanto Jorge (Herson Capri), dono de um jornal e membro do Partido Comunista, diz que não é hora, porque a oposição ainda não estaria pronta para radicalizar. “Você está perguntando a mim por que eu estou reagindo. Pergunte a você por que vocês não fizeram nada (para impedir o golpe em 1964)”, Marighella propõe. “Nós fizemos o que era prudente naquele momento”, Jorge rebate. Marighella sobe o tom para apontar o que considera leniência e inação. “Nós não fizemos nada, Jorge! Nos acovardamos enquanto prendiam e matavam tudo quanto era companheiro nosso”. “O Brasil ainda não reúne as condições necessárias para o radicalismo que vocês estão propondo”, ele ouve, em resposta. Marighella encara o amigo, olho no olho: “Trabalhadores explorados e assassinados, crianças escravizadas em latifúndios, grevistas massacrados pela polícia, mulheres violentadas nas prisões, companheiros torturados até a morte, imprensa amordaçada, presidente eleito democraticamente pelo povo expulso do país por uma corja de fascistas… está bom de condições ou vocês querem ouvir mais?”
No Brasil de 2016, uma corja de fascistas de verde e amarelo não faria exatamente a mesma coisa? Não expulsou do Planalto uma presidente eleita democraticamente pelo povo? E quem reagiu? Como? “Nós não fizemos nada, Jorge”, o filme parece nos lembrar.
Doutrinação – Carlinhos Marighella, o filho adolescente que migra para a Bahia com a mãe e não recebe visita do pai desde 1964 em razão da atividade clandestina, frequenta uma escola pública e ouve os colegas elogiarem a “revolução”. Na sala de aula, depois de se perfilar no pátio e cantar o Hino Nacional, um professor discursa: “Essa revolução salvou o país do comunismo e deve ser comemorada por todos os patriotas no dia 31 de março. É obrigação de cada um de nós vigiar, estar atento”. Esse é um país que vai pra frente. Ame ou deixe-o. Carlinhos, com 14 ou 15 anos, corrige o professor ao escutar pela segunda vez a palavra revolução. “Golpe”, ele diz. “Perdão?”, o professor ao escutar pela segunda vez a palavra revolução. “Golpe”, ele diz. “Perdão?”, o professor interpela. “Não foi uma revolução, foi um golpe”. Carlinhos sofrerá as consequências por se manifestar, começando pelo bullying dos amigos governistas.
E hoje? Num momento em que o revisionismo progrediu para o negacionismo e toda truculência da ditadura militar tem sido paulatinamente apagada, como não banalizar a dor e a violência, o genocídio e a morte? Como confrontar a tese aparvalhada de que a tortura não existiu ou de que a repressão só se dirigiu contra os que praticaram ataques terroristas e crimes de sangue? Quantos podem repetir, sem sucumbir diante do assédio histriônico dos governistas aloprados, que foi golpe em 1964, e também em 2016, em 2018, e está sendo novamente golpe em 2021?.
A necessidade de se fazer ouvir – “Nós estamos perdendo esta guerra porque tudo que nós estamos fazendo não está chegando nas pessoas”. Essa constatação de Marighella é real e miseravelmente contemporânea. Em 1968 ou 1969, as ações de resistência praticadas pela ALN e os muitos manifestos de repúdio à ditadura, elaborados não somente por revolucionários e presos políticos, mas também por intelectuais e trabalhadores, permaneciam nas sombras, sempre escondidos, porque havia censura e porque nunca interessou aos donos das rádios e dos jornais jogar luz sobre as violações de direitos e os abusos praticados pelo “regime”. Hoje, muitos pregam no deserto – porque é exatamente esta a sensação -, enquanto o colapso em que o Brasil se encontra é vergonhosamente disfarçado, suavizado, maquiado por parte significativa dos meios de comunicação e por parte de uma casta que não se informa por outro meio que não por grupos de WhatsApp, quase sempre chafurdando em notícias falsas e desinformação.
Adesão popular – E quantos somos? Um em cada quatro eleitores aprova o atual governo e quer reeleger Bolsonaro no ano que vem, segundo o DataFolha. Um em cada dois é contra o impeachment. Segundo o Ibope Inteligência, 72% da população confiava nas Forças Armadas no final no ano passado, 65% nos bancos e 61% nos meios de comunicação (é mole?). A cada cinco pessoas mortas por policiais, quatro são negras – como a vereadora Marielle Franco, morta por milicianos com suposta ligação com a família presidencial, quase todos os 28 mortos na chacina de Jacarezinho, no início de maio, e também Marighella, o “inimigo público número 1”, fuzilado por policiais em 1969.
Vivemos num sistema repressivo, regressivo, autoritário, que amplia desigualdades, condena milhões à fome e à miséria, esculhamba com o meio ambiente e, neste momento, ultrapassa as 420 mil mortes decorrentes de uma doença para qual existe vacina – recusada diversas vezes pela Presidência da República em dezembro do ano passado. E quem está disposto a protestar? Quem está disposto a marchar contra o desmando, a necropolítica e a violência de Estado? “Nós vamos vencer; você tem que acreditar nisso”, diz Marighella a um frade dominicano, mais confiante em Deus do que na razão dos homens, numa cena do filme. “Deu certo em Cuba, deu certo no Vietnã, vai dar certo aqui também”, ratifica o Velho. “Mas em Cuba e no Vietnã, eles tiveram apoio do povo”, o frade responde, desconfiado. Afinal, como conquistar o apoio do povo?
Vamos à luta – Por fim, Marighella tem uma trilha sonora à altura da função social que o filme desempenha no Brasil de 2021. Chico Science dá seu recado logo nas primeiras cenas: “Modernizar o passado é uma evolução musical”, diz o cantor pernambucano, morto em 1997, na letra de Monólogo ao pé do ouvido. “O homem coletivo sente a necessidade de lutar”, “São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade”. Os Racionais MCs também estão lá com a oportuna Mil faces de um homem leal. “Sem justiça não há paz, é escravidão”, cantam. A certa altura, é a voz de Gonzaguinha que ecoa na tela, quase à capela. “Memória de um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata”, arrisca o compositor do morro de São Carlos em Pequena memória para um tempo sem memória.
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens.
São sementes espalhadas nesse chão.
De Juvenais e de Raimundos
Tantos Júlios de Santana
Nessa crença num enorme coração
Dos humilhados e ofendidos
Explorados e oprimidos
Que tentaram encontrar a solução.
São cruzes sem nomes,
Sem corpos, sem datas.
Memória de um tempo
Onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
Fonte – UOL