Familiares cobram apuração das mortes de militantes incinerados

As revelações do ex-delegado capixaba Antônio Cláudio Guerra, do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no livro Memórias de uma Guerra Suja, sobre as torturas e os assassinatos de militantes de esquerda por agentes da ditadura trouxeram mais uma vez à tona o debate sobre a necessidade do esclarecimento das barbáries cometidas pelo regime militar (1964-1985).

Na publicação, o ex-delegado afirma que pelo menos dez corpos de militantes executados — e brutalmente torturados — teriam sido incinerados em uma usina de açúcar no norte do estado do Rio de Janeiro em 1973.

Entre as vítimas estão João Batista e Joaquim Pires Cerveira, presos na Argentina pela equipe do delegado Fleury; Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva; David Capistrano, João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, dirigentes históricos comunistas; Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML).

Segundo o torturador apesar de na época dos crimes a imprensa estar sob censura, havia forte pressão no Brasil e no exterior contra as atrocidades cometidas pelos militares. “Em determinado momento da guerra contra os adversários do regime passamos a discutir o que fazer com os corpos dos eliminados na luta clandestina. Estávamos no final de 1973. Precisávamos ter um plano”.

Para o advogado e vereador de Olinda (PE), Marcelo Santa Cruz — irmão de Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, identificado como um dos supostos militantes incinerados — as revelações devem ser vistas com cautela. “É a primeira vez que alguém oferece dados concretos e objetivos pelas atrocidades cometidas pelos órgãos de repressão. A única forma de realmente esclarecermos a questão dos mortos e desaparecidos é alguém que tenha participado desses crimes resolver falar. Estranhamente, queremos que o governo federal ofereça proteção para que ele possa viver muito e tenha a possibilidade de falar tudo o sabe”.

Em entrevista ao Vermelho, Marcelo afirma que apesar dos familiares dos militantes terem consciência das mortes, esses são os primeiros indícios sobre o real paradeiro dessas pessoas. “A notícia dos requintes de perversidade e do modo como essas pessoas foram colocadas em fornos e incineradas não fica nada a dever aos campos de concentração nazistas. As atrocidades fogem a qualquer dimensão humana”.

O jornalista e escritor Bernardo Kucinski também se manteve cauteloso sobre a veracidade das revelações. Bernardo, que desde os anos 1970 procura por informações que levem aos restos mortais de sua irmã, a militante Ana Rosa Kucinski e de seu cunhado Wilson Silva, afirma que as informações coincidem com uma série de outras já reveladas em outras reportagens ou investigações. “Já em 1982, o ex-sargento Marival Dias Chaves havia feito relatos sobre como as pessoas eram presas e encaminhadas para Petrópolis. Só muda um pouco a versão sobre o destino dos cadáveres, mas os pontos podem ser ligados”, disse à Rede Brasil Atual.

Embora as revelações de Cláudio Guerra tenham nexo, Bernardo Kucinski não acha impossível que o ex-delegado fale em incineração dos corpos com objetivo de “afrouxar” as buscas dos restos mortais dos desaparecidos por seus familiares.

Ainda em entrevista por email ao Vermelho, o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, disse que há uma dupla ruptura quando um repressor assume a postura de dignidade e respeito à verdade. “Primeiro uma ruptura com um estado de silêncio ou negação da violência, segundo uma ruptura com algo pior que é justificação dessa violência”.

 

Comissão da Verdade

Marcelo Santa Cruz lamenta que, apesar de formalmente aprovada em novembro do ano passado, os nomes dos membros que irão compor a Comissão da Verdade ainda não tenham sido definidos pela presidente Dilma Rousseff. “Lamentamos que a Comissão da Verdade não esteja funcionando. Esse é um dado concreto para ela investigar e apurar”.

Ele explica que, assim como tem acontecido nas últimas décadas, serão os familiares dos militantes que deverão iniciar o processo de apuração das revelações feitas pelo ex-delegado. “Mais uma vez isso fica a cargo dos familiares dos desaparecidos e das entidades de direitos humanos que atuam nessa área. Seremos nós que iremos atrás das pistas e das informações, mas quem deveria fazer isso era o Estado brasileiro através da Comissão da Verdade”.

Em nota divulgada nesta quinta-feira (3), o presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, que o paradeiro dos militantes políticos desaparecidos na época ainda é uma ferida não cicatrizada na sociedade brasileira. “”Está mais do que na hora de a presidenta Dilma Rousseff nomear a Comissão da Verdade”, afirmou.

O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça disse que a escolha dos nomes exige maturação e cuidado, pois se trata de uma tarefa histórica para o Brasil. “Pela primeira vez na nossa história vamos sistematizar cada uma das graves violações aos direitos humanos produzidas e identificar individualmente suas autorias”.

Marcelo desabafa que, caso seja constatada a veracidade das informações, os familiares das vítimas poderão completar um ciclo da vida e da morte. “O direito de enterrar os seus mortos e de saber como foi o fim da vida daquelas pessoas é um direito. Precisamos ter desdobramentos e uma conclusão. Precisamos contar a história como ela realmente aconteceu”.

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