Jurista teve a vida escrutinada por denunciar atuação de esquadrões da morte. Documentos inéditos mostram que a cúpula do regime agiu diretamente para acobertar a ação dos grupos de extermínio.O jurista Hélio Bicudo, que morreu nesta terça-feira (31/7), aos 96 anos, teve como ponto alto de sua trajetória o combate aos esquadrões da morte, como promotor do Ministério Público de São Paulo no fim dos anos 1960. Eram grupos compostos por policiais que, à margem da lei, torturavam e executavam pessoas que considerassem suspeitas nas periferias de Rio de Janeiro e São Paulo.
Em agosto de 1970, o então promotor iniciou o processo que levou ao indiciamento de 35 pessoas. Só seis foram condenados, mas vieram à tona informações relevantes sobre a atuação desses grupos, como o fato de que traficantes de São Paulo se beneficiavam das execuções.
Apesar da atuação destacada no combate aos grupos paramilitares, Bicudo foi retirado das investigações em 1971, por ordem do Procurador-Geral de Justiça. Documentos inéditos da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI), principal órgão de espionagem do governo militar, revelam que seu afastamento foi ordenado pela cúpula do regime.
“Uma eventual punição do epigrafado poderia ser aplicada por intermédio do seu superior hierárquico, ou seja, o Procurador Geral da Justiça, sem que nesse episódio fosse envolvido o nome dos Governo do Estado e da União”, diz o texto de um documento [originais disponíveis no fim do texto]. “Essa, ao que parece, seria a conduta mais correta a ser seguida no objetivo de preservar os superiores interesses dos altos escalões administrativos, quer federais, quer estaduais.”
Poucos dias após a circulação desse arquivo, a Agência Central do SNI deu início a uma operação que envolveu as agências de Rio, São Paulo e Brasília, com o objetivo de tentar identificar a ligação de Bicudo com “elementos subversivos”. A investigação foi determinada pelo chefe do órgão, que tinha status de ministro.
Um relatório da operação comprova que as denúncias feitas pelo jurista sobre as arbitrariedades praticadas pelos esquadrões eram vistas como uma tentativa de desestabilização do regime:
“O episódio que culminou com a entrega de HPB [Hélio Pereira Bicudo] para um jornalista não totalmente identificado, de uma reportagem ‘explosiva’ sobre o ‘esquadrão da morte’ revela seu interesse em continuar estimulando a publicação de fatos que repercutem negativamente sobre a imagem do governo.”
O historiador Lucas Pedretti, ex-assessor da Comissão Estadual da Verdade do Rio, encontrou o material enquanto pesquisava para seu mestrado sobre a repressão da ditadura aos bailes soul. Ele destaca que os documentos revelam uma ação deliberada da cúpula do regime para acobertar a atuação dos esquadrões, embora o governo projetasse uma imagem de combate a esses grupos.
“Os pesquisadores sabiam que havia uma relação imbricada entre agentes da repressão e policiais voltados ao chamado ‘crime comum’. Sérgio Fleury é um caso paradigmático, já que pula dos esquadrões da morte para o comando do Dops de São Paulo. Os documentos mostram que, para além de trajetórias individuais, havia uma ação proativa dos órgãos de repressão política para acobertar os policiais envolvidos nos esquadrões”, comenta.
O conteúdo dos documentos mostra que a ditadura escrutinou a vida do jurista. Ele foi seguido, grampeado, teve seu patrimônio revirado e seu apartamento chegou a ser invadido por agentes do órgão.
“Para o desenvolvimento da operação, foi obtida, clandestinamente, a chave do apartamento”, consta no relatório. A chegada de duas faxineiras ao escritório interrompeu a ação, e a equipe do SNI precisou fazer um “serviço extraordinário” de retirada do local, tendo que se passar por funcionários da casa.
Os relatórios da operação apresentam, detalhadamente, o passo a passo do monitoramento das atividades do jurista. O objetivo dos agentes, de acordo com o documento, era tentar identificar a ligação de Bicudo com “elementos subversivos” para atribuir um caráter ideológico à sua atuação no Ministério Público e desmoralizá-la.
“Estão falando de um Promotor de Justiça com grande importância nacional, relevância em matérias de jornais e internacionalmente reconhecido por seu trabalho naquela época. A ditadura o tratava como um criminoso para plantar a ideia de que era um subversivo, comunista disfarçado”, avalia Pedretti.
Para o historiador, o tratamento dado a Bicudo mostra que não havia pudor do regime em perseguir qualquer cidadão que se colocasse no caminho de seus interesses. Por essa razão, Pedretti contesta a possibilidade de afirmar que não houve corrupção durante a ditadura.
“Quem seria o promotor com condições de investigar um general ou qualquer integrante do órgão de segurança nessas condições? Se o promotor que estava investigando os grupos de extermínio era tratado assim, como alguém ia ter condições efetivas de desenvolver qualquer investigação contra os interesses do regime?”, questiona.
Pedretti se aprofundou na pesquisa de documentos sobre a relação da ditadura com os esquadrões da morte após observar o tratamento diferente que a Censura Federal dava às obras culturais de acordo com o posicionamento dos autores.
“Chama muita atenção o fato de que obras críticas eram censuradas, e obras apologéticas não eram. Ali, ficou evidente que, no mínimo, havia uma conivência com a propaganda dos esquadrões, além de uma tentativa de impedir qualquer tipo de crítica”, diz.
Entre março e maio de 1980, foram enviadas ao menos nove letras de música para análise da Censura que exaltavam a atuação do “Mão Branca”, conjunto de grupos de extermínio que atuavam na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio. Todas foram aprovadas.
Por sua vez, a peça do teatro Garra Suburbana, encenada em 1976 e que abordava de forma crítica a atuação do Mão Branca, foi totalmente vetada. A justificativa utilizada pelo técnico da Censura Federal foram as insinuações, no texto da obra, de que a polícia era corrupta.
“É uma peça sem qualquer conteúdo positivo, pelo contrário, somente mazelas e as coisas mais baixas são apresentadas como denegrir a autoridade policial e civil, violências, sexo, taras e tóxicos, não havendo qualquer resquício de algo aproveitável no texto, razão pela qual opinamos por seu veto total”, dizia o relatório.
O mesmo procedimento era adotado em relação a reportagens que denunciavam a ação dos grupos. A postura de cumplicidade do regime é reforçada no relatório Esquadrão da Morte, produzido em agosto de 1970 pelo Dops do Rio.
“Voltam os jornais e meios de difusão jornalísticos de todos os setores, a fazerem menções acerca do que se denominou ‘Esquadrão da Morte’. Este assunto é simples modalidade de manter a opinião popular em suspense e reserva contra o atual regime vigente, manipulado por elementos do extinto Partido Comunista Brasileiro”, afirma o documento.
“O objetivo de tal campanha, inicialmente, como desejavam os comunistas, era exibir a polícia e os órgãos de segurança do país como milícias de bandidos”, conclui.
Em seu relatório final, a Comissão Estadual da Verdade de São Paulo concluiu que “a impunidade e permanência do mesmo modo de operação da polícia replicada em todo o país fez surgir, no século 21, em leitura dos estudiosos da violência urbana, a existência do que seria uma espécie de ‘Esquadrão da Morte 2.0’, cuja lógica ficou enraizada nos mais variados grupos de extermínio ou milícias da atualidade”.