Publicado originalmente em 5 de agosto de 2019 15:15 | JÚLIA MOURA
O ex-delegado foi denunciado pelo Ministério Público por 12 desaparecimentos. Bolsonaro disse que não falou “nada de mais”
Cláudio Guerra, ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) mostrou para investigadores da Comissão Nacional da Verdade o forno em que incinerou o corpo do militante Fernando Santa Cruz, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, e de mais 11 presos políticos assassinados entre 1974 e 1975 pelo regime militar no Rio de Janeiro.
A incineração foi feita em um forno da usina de açúcar Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ), segundo o próprio ex-delegado.
Cláudio Antônio Guerra tem hoje 78 anos e nesta quinta-feira (1) foi denunciado pelo Ministério Público Federal por ocultação e destruição de cadáveres, por conta do desaparecimento dos 12 corpos. O ex-delegado admitiu os crimes no livro “Memórias de uma guerra suja”, dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, em 2012.
Além disso, dois anos depois, mostrou detalhes da operação de incineração para a Comissão Nacional da Verdade. Em todos os seus depoimentos posteriores, ao Ministério Público, Guerra reafirmou os crimes.
Semana passada, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou que sabia o destino do pai do presidente da OAB e afirmou que ele não teria sido morto pela ditadura.
Cláudio Guerra prestou pelo menos dois depoimentos à Comissão Nacional da Verdade
Ao ser confrontado com os documentos de Estado que tratam da morte e desaparecimento como crimes da ditadura, o presidente afirmou tratar-se de “balela”. A partir desse comentário, Felipe Santa Cruz e outros ex-presidentes da OAB pediram explicações a Bolsonaro, impetrando uma interpelação no Supremo Tribunal Federal — e o ministro do STF Luís Roberto Barroso, em decisão sobre a interpelação judicial, afirmou que o presidente tem 15 dias para responder, em “querendo” fazê-lo.
Nesta sexta (3), Bolsonaro afirmou que não falou “nada de mais” sobre o pai de Felipe Santa Cruz e disse que responderá ao STF. “Mesmo eu não sendo obrigado, eu presto [esclarecimentos]. Não falei nada de mais”, disse.
Ademais, o ex-delegado prestou pelo menos dois depoimentos à Comissão Nacional da Verdade. Em um deles, em 23 de julho de 2014, identificou os mortos por fotos apresentadas pela comissão. Ele contou que recolhia os mortos em dois centros de tortura: um em Petrópolis, conhecido como Casa da Morte, e outro, um quartel da Polícia do Exército, no Rio.
“Nesse período, 1974 e 1975, começou uma pressão muito grande sobre o governo por causa do desaparecimento de corpos. Os coronéis que estavam no comando do país queriam um meio de desaparecer mesmo [com os corpos]. Então foi dada essa ideia de ser incinerados os corpos”, disse o ex-delegado em 2014.
Guerra também participou de uma diligência da comissão na antiga usina. Lá, mostrou o forno e contou detalhes de como eram jogados os corpos. “Eram geralmente duas pessoas. Eu mesmo pegava”, disse o ex-delegado, explicando como atirava os mortos na fornalha.
Ao ser apresentado a fotos dos 12 mortos, o ex-delegado reconheceu a maior parte
A ideia de desaparecer com os corpos por incineração na usina foi dada pelo próprio delegado a um alto comandante da repressão na época, o então coronel Fred Perdigão, já morto. O forno da usina ficava ligado por seis meses sem interrupção. A Comissão Nacional da Verdade confirmou com técnicos que a dimensão dos fornos tinha capacidade para incinerar pessoas.
O delegado disse que viajava até 200 quilômetros para queimar os corpos e que chegou a usar seu carro particular em uma das viagens. Mas, de modo geral, usava carros descaracterizados, com placa fria, da polícia. Disse que nunca foi parado mas que, se fosse, usaria a carteira do Dops, para o qual trabalhava. “Nessa época, o poder nosso era muito grande, ninguém parava”, disse ele.
Os corpos eram entregues em sacos plásticos e colocados no porta-malas do carro. Mas o delegado do Dops contou que, por curiosidade, abriu todos os sacos para ver os mortos. Em um dos casos, ficou marcado pelo nível de violência usado contra a vítima, a professora da USP Ana Rosa Kucinski, que tinha marca de mordidas e violência sexual.
“[O corpo] Era entregue ensacado. Eu abria, era curiosidade. Embora fosse uma coisa macabra, eu não sentia nada. Hoje, olhar as pessoas ali, o senhor não calcula como estou por dentro”, disse o ex-delegado, que afirma ter feito as confissões por arrependimento.
Ao ser apresentado a fotos dos 12 mortos, o ex-delegado reconheceu a maior parte. Ele disse que, na época, não sabia exatamente de quem se tratava, mas que, ao produzir o livro, foi fazendo o reconhecimento.
Questionado por um dos integrantes da Comissão Nacional da Verdade diante da foto do pai do presidente da OAB, Guerra foi enfático: “É o Santa Cruz.”
Link para o texto de Tatiana Farah
FONTE – DIÁRIO DA MANHÃ