O caso Preciosa traz à tona a velha aliança do ex-vereador de Vitória José Coimbra, acusado de ser o mandante do crime, com o ex-delegado Cláudio Guerra, de quem foi advogado e às custas de quem chegou à cúpula da Scuderie Le Coq. Vale relembrar a figura mais temida dos anos 70/80, o delegado Cláudio Guerra.
Aqui começa a sua história: quem vê aquele senhor, de barbas e cabelos brancos, vovô típico dos tempos pós-modernos, caminhando entre tantos outros idosos pela orla da praia da Costa, não se dá conta que está diante de um dos homens mais temidos da história da violência, para não dizer de pavor, do Espírito Santo.
Um verdadeiro Drácula, redivivo no Estado nos anos 70/80. Íntimo das elites e de seus representantes no aparelho de governo, ele se fez útil a elas, e com a precisão de um estrategista militar, livrou essa mesma elite e se tornou guardião, em sua época de poder, de seus maiores incômodos, entre eles a colunista Maria Nilce.
Depois desse episódio da Maria Nilce, a elite aproveitou-se para se livrar dele também. Ele havia cumprido o seu papel por quase duas décadas. Foi parar também na cadeia. E, diferentemente da expectativa da mídia, não abriu o bico. Segurou o pepino sozinho, para alivio de muito graúdo deste Estado. Até hoje é um túmulo, tendo, inclusive, outro dia, passado incólume pelo bombardeio de perguntas de um dos mais experientes repórteres de polícia do Estado, José Maria Batista.
Esse encontro do velho repórter com esse personagem de terror do Espírito Santo, que é o ex-delegado de polícia Cláudio Guerra, serviu para constatar que ele continua uma caixa de segredo quanto aos episódios que, contados de diferentes maneiras, construíram uma figura temida e extremamente controvertida.
É preciso chamar a atenção do leitor para o relato que vai abaixo da lavra de José Maria Batista, numa demonstração clara de como Guerra foi ardiloso, atraente e manipulador, a ponto de se poder dizer que ele esfumaçou-se numa verdadeira lenda.
Na conversa com o repórter, à qual também estive presente, pois nos meus anos de “Jornal do Brasil” patrulhei muito esse policial, objeto de muitas reportagens que fiz, vi nele agora a intenção, para não dizer a ânsia, de querer dividir sua história em duas etapas: a do ex-delegado temido com a do pacato vovô voltado para o trabalho e para o lar.
“A resposta que tenho para tudo isso é a minha conduta de vida, o que faço hoje. Aos Aurichs da vida, que pensavam que fosse sair revoltado querendo vingança, a minha resposta foi completamente diferente: hoje trabalho e produzo para o País. Os deslizes, outrora cometidos, foram em decorrência da função e das missões recebidas. Hoje vivo sem armas como um cidadão de bem”.
Sim, mas uma história como a de Guerra, onde há uma lista de crimes anexa, não é para ser sepultada de um dia para o outro. Ele responde à indagação dizendo que não houve um único caso rumoroso, no seu tempo, que não tenha caído em suas mãos para apurar.
Traz à tona o famigerado GOE (Grupo de Operações Especiais) para agir por conta própria no combate ao crime. Uma estrutura, inclusive, lembra Guerra, de total autonomia na Polícia Civil. Ele atribui à ação do GOE a razão de muitas acusações que pesaram antes e continuam pesando ainda hoje sobre ele.
Mas a parte mais pesada da trajetória policial de Cláudio Guerra está no crime organizado. A ele é atribuído, principalmente pelas organizações de direitos humanos, uma participação em nível de cúpula. Da sua lista de crimes da organização constam importantes lideranças sindicais de trabalhadores em conflito com as elites do campo. Entre os quais se acham Laurindo Buss (São Gabriel), Valdício Barbosa dos Santos, o Léo (Pedro Canário), Verino Sossai (Montanha), Francisco Domingos Ramos (Pancas) e Paulo Damião Tristão, o Purinho (Linhares).
A verdade é que esses crimes de trabalhadores, mais a da Maria Nilce, e outros dentro do próprio ambiente da violência, como o de Waldir Bento, fazem parte da moldura da fotografia do policial Cláudio Guerra pregada na sua própria parede, por onde ele transita fazendo as vezes de um carinhoso vovô com os seus sete netos.
O pistoleiro na casa do delegado
Meninos, eu vi!
José Maria Batista
Esperar revelações ou declarações bombásticas do ex-delegado Cláudio Guerra, a esta altura dos acontecimentos, é o mesmo que esperar chuva de granizo na floresta amazônica. Ele deu o tom da conversa comigo e Rogério Medeiros logo no início: “Agora sou mergulhador. Mandaram eu mergulhar e eu mergulhei. É o que estou fazendo. Dou aulas de mergulho”.
Mas nem tudo está perdido. Guerra deixará um livro de memórias, póstumas é claro, relatando incidentes que envolveram a sua conturbada vida. Como as ligações com o pistoleiro José Sasso, matador da jornalista Maria Nilce (em junho de 89) e que estava em sua casa quando todo mundo pensava que ele havia fugido para o Rio Grande do Sul, como os demais envolvidos no crime.
O que Sasso fazia na casa do delegado Guerra? Estava abrigado, certamente. Afinal, quem iria procurá-lo na casa do delegado que apurava o crime?
Oficialmente, entretanto, o pistoleiro estava sendo ouvido como responsável pelo disparos que mataram Maria Nilce. O depoimento tomado era secreto.
Acompanhei tudo isso na sala de visitas do apartamento do delegado, na Praia do Canto. Policiais armados estavam por todo lado, com caras de poucos amigos. E uma insinuação no ar: ‘o que esse cara tá fazendo aqui?’
Ele, Cláudio Guerra, me dissera, pessoalmente, que era melhor eu ir embora e não me envolver no caso. “Zé, é uma confusão muito grande. Melhor você ir embora e ficar fora disso”. Fui.
Junto com o fotógrafo Romero Mendonça, ficamos na expectativa do lado de fora. Se Sasso estava lá dentro, teria que sair. Saiu por volta de 23h30. Num carro particular, sem algemas. Tanto que apontou um dedo para o repórter e o fotógrafo e ameaçou: “Se me fotografarem, eu mato vocês”.
Ele, o assassino de Maria Nilce, saindo da casa do delegado Cláudio Guerra, que investigava o crime, sem algemas e confiante na impunidade, a ponto de ameaçar de morte repórter e fotógrafo. Eu respondi que matar qualquer um mata e Romero não perdoou. Fez um barba e bigode de sua cara assassina que ganhou a primeira página de “A Tribuna” no dia seguinte. O editor atrasou o fechamento por causa da foto. Única, por sinal.
Sasso foi para a cadeia. Posteriormente. Naquele momento, saindo da casa de Cláudio, não se sabe para onde fora. E a morte de Maria Nilce permanece nebulosa. Todos dizem que sabem como foi e quem foi, mas lá no processo, por uma dessas decisões judiciais que estão acima do entendimento do cidadão comum, é o delegado Cláudio Guerra quem figura como autor do crime. Um crime onde a coisa foi bem misturada. É só acessar o processo para confirmar.
Glória e perdição
Competência para misturar coisas talvez tenha sido a glória e perdição de Cláudio. Tudo começou com a apuração do primeiro caso de sonegação de imposto e contrabando de madeira, que teve ampla divulgação na imprensa. Envolvia importantes fazendeiros do sul da Bahia e o caso ganhou notoriedade. E o delegado Guerra também.
O esclarecimento do caso lhe valeu a controvertida e poderosa Delegacia de Ordem Política e Social (Dops). As acusações de torturas começaram a surgir. Inclusive dando conta de uma sala de torturas no interior da Delegacia. Fato que nunca foi comprovado, pois no mesmo dia em que recebi uma pauta para investigar a sua existência o delegado soube, com detalhes, da pauta. Afinal, era do Dops, não é?
Assim, antes de qualquer pergunta sobre o caso das torturas, fui informado, pelo próprio delegado, que a sala de torturas e os aparelhos usados estavam à minha disposição e ele pronto para esclarecer tudo. Evidente que no local não havia nem poeira. Aliás, a delegacia estava imaculada. Até os processos organizados em cima das mesas. Perfeito.
É um episódio que dá para entender o poder do delegado Guerra, codinome Stanislau Meirelles (às vezes com patente de coronel) que, disfarçado de bicheiro, atuava como agente da repressão política no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Recebeu treinamento de combate à guerrilha e subversão e foi um dos receptadores de armas estrangeiras que entravam no Brasil, depois da guerrilha do Araguaia, para uma suposta revolta urbana de esquerda. Hoje o ex-delegado Cláudio Guerra revela, com uma ponta de ironia, que tudo isso não passou de uma grande bobagem, pois as armas, que lhe valeram um processo por porte de armas de uso exclusivo das Forças Armadas, eram contrabandeadas para elementos da própria direita, no poder.
Foi com o codinome de Meirelles que Cláudio se infiltrou na esquerda e junto aos poderosos. Ele garante que só atuou em operações de campo aberto e que jamais torturou militantes de esquerda no Dops capixaba. Que, aliás, nem porão tinha, pois funcionava no 3º andar do prédio onde hoje está instalado o Departamento Estadual de Trânsito.
Sobre Stalislau Meirelles existem poucas informações no Estado, pois o agente operava mais no Rio de Janeiro. Talvez a partir daí seja fácil explicar o pânico que ele disseminava entre poderosos de outros estados, como o banqueiro do bicho Capitão Guimarães.
Guimarães acreditava que, falando com Guerra, ou ameaçando as pessoas em seu nome, conseguiria tudo no Espírito Santo. Usou o artifício com muita gente boa. E, na verdade, conseguiu muita coisa. Dominou o jogo do bicho no Estado e liquidou quem cruzou seu caminho.
Guerra diz que não tem nada a ver com essas mortes, é claro. E diz até que quando mataram Rosinha – sua mulher – acharam que o estavam liquidando também. Só que no mesmo dia ele era o agente infiltrado Meirelles, receptando “armas revolucionárias” em Foz do Iguaçu, por onde elas entravam.
A história a ser escrita por Cláudio Guerra – se o for mesmo- vai colocar muito organizado no crime e desmistificar o chamado crime organizado. Organização que fazia circular nas instâncias judiciais cheques de milhões, em moeda da época, enquanto o andamento de processos e suas sentenças tinham cotações que variavam de US$ 2 mil a US$ e 3 mil. Dinheiro gasto, inclusive, para cobrir festinhas, pagamento de carros e prestações atrasadas. Pena que a CPI do Crime Organizado, quando esteve aqui, tenha preferido seguir outros rumos.
Santo? Nem um pouco, ele mesmo se encarrega de garantir isso. Mas também não tão terrível como pintam, garante. “Fizeram muita coisa em nome de Cláudio Guerra. Já estive até em três lugares no mesmo dia e à mesma hora, para você ter uma idéia” – conta ele com a calma de quem hoje é apenas instrutor de mergulho e só quer viver em paz com a sua comunidade.
Fonte – Século Diário