A Comissão da Verdade e os crimes da ditadura

Comissão da Verdade não interferirá no julgamento de torturadores

A nomeação dos integrantes da Comissão da Verdade, realizada quinta-feira (10) pela presidente Dilma Roussef, encerra uma jornada que vem desde 2009, quando o presidente Lula sancionou o Programa Nacional de Direitos Humanos. O grupo deverá esclarecer a verdade sobre os crimes políticos e de direitos humanos comentidos entre 1946 e 1988 no país.

Inicia-se, assim, uma nova etapa, que durará aproximadamente dois anos de investigações. Apesar disso, temas caros à Comissão ainda não chegaram a um consenso. Um deles diz respeito à punição de autores de graves violações de direitos humanos e a validez da Lei da Anistia. Do ponto de vista teórico, não há motivos para que o judiciário deixe impunes os criminosos do passado. Porém quem dará a última palavra será o Supremo Tribunal Federal.

Em entrevista ao Brasilianas.org, o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert alegou que a criação da Comissão da Verdade não interfere com os aspectos relacionados a promoção da Justiça. “É um campo independente, não há alteração no cenário”. O que se espera, no entanto, são os posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) diante dos crimes de desaparecimento forçado (sequestro) e também a aplicação da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que não considerada válida a Lei da Anistia, quando se trata de graves violações, como execuções sumárias e tortura.

Em abril de 2010, o STF decidiu que a Lei de Anistia era válida em relação aos agentes do Estado brasileiro, para todos os crimes políticos cometidos. Em dezembro daquele ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que, à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (criada em 1969 e ratificada pelo Brasil em 1992), a Lei de Anistia não poderia impedir ações criminais contra autores de graves violações aos direitos humanos. O STF usou como parâmetro de sua decisão a Constituição de 1988, que estabelece a anistia.

Marlon conta que, no entendimento da Câmara de Coordenação Criminal do Ministério Público Federal, todos os crimes relacionados a graves violações de direitos humanos devem ser investigados e os autores, quando identificados, devem ser processados e punidos. Mas o judiciário brasileiro, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ainda não se pronunciou de forma decisiva sobre esse assunto.

“As decisões da Corte Interamericana e do STF precisam ser combinadas, conciliadas, porque é como se fosse um duplo crivo”, enfatizou o procurador.

Em entrevista ao Brasilianas.org em outubro do ano passado, o então secretário-executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Ramaís de Castro Silveira, disse que a sentença dada em 2010 pelo STF sobre a Lei de Anistia não transitou em julgado. Ou seja, ainda pode haver alguma mudança com relação à interpretação do STF a respeito da aplicação da anistia.

A crítica que se faz ao projeto aprovado no Senado é a de que ele não atende às reivindicações dos familiares de desaparecidos políticos, nem dos ex-presos políticos. Segundo o jornalista Pedro Pomar, editor da Adusp, o governo federal estaria se esquivando de suas responsabilidades. “O STF tomou uma decisão catastrófica, que foi anistiar os torturadores da ditadura, sem que eles sequer tenham sido julgados”. “E isso não foi só uma posição do STF, porque a Advocacia-Geral da União defendeu essa posição”, disse em entrevista a Luis Nassif, no programa Brasilianas.org de 10 de outubro último.

São duas questões: se os culpados pelos crimes serão punidos ou não e se a Comissão da Verdade poderá aplicar punição. Sobre o primeiro fator, o Ministério Público Federal tem o respaldo da própria Constituição de 1988 e do fato do Brasil ter se veiculado, de modo soberano e voluntário, à autoridade da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E isso está na própria Constituição brasileira, que fixou que o país deveria se vincular aos tribunais internacionais de direitos humanos. Isso significa que essa autoridade reconhecida da Corte Interamericana tem patamar constitucional.

Em relação aos “poderes” da Comissão, Marlon explicou que não cabe a ela promover punições. “Punição só pode ser promovida pelo Judiciário. Na verdade, o que se reclamava era que essa Comissão tivesse como obrigação encaminhar suas conclusões ao Ministério Público, mas isso é desnecessário, pois o MP tem esse poder [de punição]. É uma das críticas que o MP sempre tentou esclarecer, pois o sistema jurídico já prevê mecanismos para isso”.

Portanto, independentemente da Lei de Anistia e da decisão do STF, em relação à ADPF 153 (de Anistia), a Comissão não teria essa atribuição, porque a Constituição de 1988 estipula que apenas o Judiciário pode aplicar sanções dessa natureza.

Além disso, há a questão específica dos crimes de sequestro, ou desaparecimentos forçados, como também são conhecidos. O próprio STF fixou esses crimes com a presunção de eles ainda estão em andamento, pois são de natureza permanente. Isto é, um sequestro que tenha ocorrido na época da ditadura militar, há mais de 40 anos, e ainda não foram localizados os restos mortais da vítima, entende-se que o crime ainda está em andamento.

O próprio STF brasileiro disse que, nesses casos, não há como definir a data em que terminou o crime. O Ministério Público está usando essa tese, que é, na verdade, do próprio STF, para mover as ações penais, a despeito da Lei da Anistia.

Os primeiros passos da Comissão

O projeto de lei que cria a Comissão da Verdade foi aprovado em setembro de 2011. Depois de aprovado no Senado, foi instituida a Comissão, com nomes indicados diretamente pela presidente da República. Os membros serão o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias; a psicanalista Maria Rita Kehl; o ministro do Supremo Tribunal de Justiça Gilson Dipp; o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, a advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha; o jurista José Cavalcante Filho e o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro.

Eles terão o prazo de dois anos para apresentar conclusões sobre suas investigações. Mas a expectativa é de que o grupo leve seis meses para preparar iniciar os trabalhos. “Será um dos primeiros assuntos que a própria Comissão terá que trabalhar, porque ela precisará de tempo para se preparar. Esse prazo de dois anos não deve começar a correr no dia 16 de maio, quando a Comissão toma posse. Ainda estão pendentes a nomeação dos assessores também”.

A Comissão terá prazo de dois anos para fazer investigações e apresentar um relatório com as conclusões. Ela também poderá requisitar informações a órgãos do poder público, convocar testemunhas e determinar a realização de perícias, mas não será permitida a divulgação de documentos considerados sigilosos. No entanto, o julgamento e a punição caberá ao judiciário, que, por sua vez, precisa estabelecer qual parâmetro utilizará. O MPF está favorável a não anistiar, de acordo com a Corte Interamericana.

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