Publicado originalmente em 12 OUT 2020
Documento produzido pelo regime militar, que aparece pela primeira vez no filme ‘Narciso em Férias’, mostra que outra alegação falsa serviu como justificativa para manter artista preso
Com o lançamento do documentário Narciso em Férias, no mês passado, a prisão de Caetano Veloso em 1968 voltou a ser assunto. O artista foi detido em São Paulo e levado para o Rio de Janeiro junto com Gilberto Gil. Dias depois, soube do que estava sendo acusado: teria parodiado o Hino Nacional durante uma apresentação na boate Sucata, no Rio. A informação foi divulgada pelo jornalista Randal Juliano (1925- 2006) no programa Guerra é Guerra, da TV Record. Porém, o fato nunca aconteceu e Caetano conseguiu testemunhas para defendê-lo no processo. Mesmo assim, não foi inocentado e precisou sair do País.
Um documento produzido pelo regime militar, que aparece pela primeira vez no filme, mostra que outra alegação falsa serviu como justificativa para manter Caetano preso. Um disco do cantor e compositor com a música Che, homenageando o guerrilheiro Che Guevara, teria sido apreendido. “É uma loucura, nunca fiz nenhuma música chamada Che, não houve apreensão de disco meu. Nenhuma apreensão de discos meus naquela época. Eu não sei como eles se endereçavam. Inverdades, falta de cuidado com a averiguação dos fatos, não é possível um troço desses”, disse Caetano aos diretores Renato Terra e Ricardo Calil em trecho que ficou de fora da versão final de Narciso em Férias.
Em uma live sobre democracia e liberdade de expressão da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) ocorrida no fim de setembro, Caetano contou que um editor amigo recebeu de um jornalista a capa do disco Che, atribuída não a ele, mas a Cataneo. De fato, um disco de Pancho Cataneo saiu no Brasil em 1968 e foi apreendido. “Eu não conhecia o cantor e nem o disco até então”, informou Caetano, por e-mail.
O que ainda não se sabia é que a confusão que entrelaça Caetano e Cataneo se tornou pública às vésperas do AI-5, que entrou em vigor no dia 13 de dezembro de 1968. Os jornais Última Hora e Correio da Manhã, ambos de oposição, publicaram em novembro que vários discos haviam sido apreendidos pela polícia, entre eles Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, música de Geraldo Vandré que incomodou os militares, Aleluia, de Gilberto Gil – outra canção que jamais foi gravada -, e Che, de Caetano Veloso. “A venda desses discos já está praticamente proibida em todo o País”, pontuou o Correio, em 12 de novembro.
Caetano foi confundido com Francisco Cataneo, ou Pancho Cataneo, um mexicano radicado na Europa. Percussionista e vocalista de grupos como Panchito Cui-Cui Et Son Orchestre, ele gravou ao longo dos anos 1960 e 1970 discos de ritmos latinos. No Brasil, a repercussão de seu trabalho foi nula. Na pesquisa de arquivo feita pelo Estadão, foi encontrada uma menção a ele na coluna que Nelson Motta assinava na Última Hora, justamente anunciando que o compacto Che sairia “nos próximos dias”. Em uma nota abaixo, ilustrada com a foto de Caetano, o jornalista afirmava que seria “sensacional” o lançamento do disco Tropicália.
O compacto de Cataneo chegou às lojas nacionais em julho de 1968 pela Companhia Brasileira de Discos, que também tinha Caetano sob contrato por meio do selo Philips. Com uma capa expondo a imagem de Guevara, morto no ano anterior, o disco que saiu pela etiqueta Polydor tem duas guajiras, estilo musical cubano. A faixa Hasta Siempre entrou no lado A e Hay Che Camino, no B. A primeira música foi composta por Carlos Puebla, uma das vozes da Revolução Cubana, em homenagem a Guevara. Nenhuma das faixas está disponível nas plataformas digitais – são pouquíssimos os registros de Cataneo no streaming.
A Companhia Brasileira de Discos tentou evitar atritos com o poder, modificando a arte gráfica do compacto. Na parte frontal do lançamento original europeu, fabricado na França, há a foto de Guevara e está escrito “Hasta Siempre Che!”. Por aqui, a inscrição foi suprimida. Ficou só Che. Na contracapa estrangeira, há uma imagem do líder cubano Fidel Castro, persona non grata do regime militar, que foi removida. O cuidado não foi suficiente para impedir problemas.
A documentação que aparece em Narciso em Férias foi produzida em 1969. Nela, há um relatório que o general Jayme Portella de Mello encaminhou ao presidente Artur da Costa e Silva, contendo uma lista “das atividades subversivas desenvolvidas pelo indiciado”. Mello afirma que Caetano foi um dos “elementos divulgadores de propaganda de caráter subversivo, especialmente pelo disco de sua autoria Che, apreendido em 1968 pela Polícia Federal”.
Um dos diretores da Companhia Brasileira de Discos, Armando Pittigliani conta que o clima de apreensão já era grande antes da prisão de Caetano e Gil e a gravadora era visada pela ditadura. “Participávamos e colaboramos com anúncios no (jornal) Pasquim, fazíamos reuniões com intelectuais e jornalistas entrevistando nossos artistas, a maioria de esquerda. Claro que estávamos na mira dos caras”, lembra Pittigliani. No livro de memórias que irá lançar em 2021, o produtor relata uma história que mostra como os militares estavam no encalço de Caetano e Gil mesmo às vésperas de a dupla se exilar.
Os dois artistas deixaram discos prontos antes de ir embora do Brasil. Os militares acompanharam a pós-produção das faixas, ouvindo tudo. Como os técnicos de som estavam sendo vigiados e a gravadora queria lançar Aquele Abraço antes da partida de Caetano e Gil, Pittigliani e o todo poderoso gerente-geral da empresa, André Midani, tomaram a decisão de pegar a chave do estúdio e mixar a faixa. Era um sábado. “Cortamos uns 10 acetatos (discos) para distribuirmos às principais rádios e boates da moda. Na segunda-feira, quando eles já estavam fora, era estouro.”
Fonte – Diário do Litoral/O Estado de S. Paulo.