Publicado originalmente em ARQUIVO VIVO por Percival de Souza, da Record TV
A Polícia que controlava o pensamento – DOPS, Departamento de Ordem Política e Social – tinha um comando, cabeças pensantes, executores macabros e figuras fundamentais, porém discretíssimas, das quais pouco ou nunca se ouviu falar.
Uma delas, a discrição por excelência, era Francisco Guimarães do Nascimento, muito conhecido como “Charutinho”. O apelido vinha do fato de estar com um charuto permanentemente entre os dedos, ou dando baforadas, e seu papel no DOPS era de viga mestra: chefe do Serviço de Informações. O DOPS não assumia a palavra “secreto”. Ele tinha condições intelectuais para ser analista de fatos e fazer projeção sequencial de dados descobertos, dando sentido prático à transformação de “informes”, ou seja, meras conjecturas, em “informações”, isto é, os fatos depurados e comprovados. Não é por acaso que o Dipol, Departamento de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo, leva – in memoriam – o seu nome.
A história da sua vida foi singular: antes de policial, foi jornalista. Trabalhou no antigo “Correio Paulistano”, onde exerceu a função de repórter e chegou a secretário de redação. Na Polícia, teve gestões marcantes. Ao assumir a diretoria do Instituto de Identificação, deu a ele o nome de Ricardo Gumbleton Daunt, o cientista das impressões digitais indispensáveis para a Polícia. Líder de classe, presidiu a Associação dos Delegados de Polícia e nela criou a Academia de Letras da categoria, destacando colegas com talento literário. Morreu em 2001, em circunstância que jamais irei esquecer.
“Charutinho” era inteligente, perspicaz, corretíssimo, e a parte suja dos porões nada tinha a ver com ele. Lidar com informações era a sua arte. Todos os dias, bem cedo, o secretário de Segurança Pública recebia em casa um resumo detalhado das análises do dia: as que haviam sido descobertas, aquelas em curso, as atitudes e comportamentos de pessoas envolvidas de alguma forma com política. O secretário, assim, sabia com antecedência quais são ou seriam seus interlocutores, e exatamente o que os motivava. Essa atividade, desenvolvida até hoje, é encoberta pelo eufemismo “segurança institucional” e pejorativamente de “arapongagem”, a bisbilhotagem celebrizada por uma antiga novela de televisão.
Dê-se o nome que quiser, os devaneios utópicos que se pretender, a caracterização de uma militância conforme se desejar. Teorias abstratas, realidades humanas, o mundo gira com governantes e governados. Tudo isso passava, com outros nomes, pelas mãos analíticas de “Charutinho”, quer no meio estudantil, como no sindical, e tudo o que se possa imaginar em termos de atividades clandestinas ou mascaradas.
Quando tudo isso adquiria forma, o DOPS entrava em ação. A princípio, era um órgão que acompanhava sonhos ideológicos para matá-los. Depois, pela circunstância de atos violentos, como sequestros, atentados, explosões de bombas e roubos a bancos, reestruturou-se, incorporando em seus quadros gente da Polícia que apenas lidava com criminosos comuns. Seus métodos, nada ortodoxos, foram incorporados à repressão política, virulenta e feroz, eficaz a sangue frio.
Entre as ideias transformadas em planos, “Charutinho” incrementou a era dos “arrependidos”, ou seja, os militantes em ações violentas selecionados para fazer declarações públicas –pela TV, inclusive – renegando fatos passados, atacando parceiros do presente e se assumindo como uma espécie de iludidos pelo mal e convertidos para o bem.
O arrependimento jurídico é uma prática que pode se tornar atenuante para a concessão de eventuais benefícios. Por essa razão, sempre se pergunta se há arrependimento para um autor de crime, vício adotado pela imprensa em geral, sempre querendo saber se o bandido, mesmo calculista, está arrependido. Não se leva em conta o que realmente interessa: o arrependimento tem de ser eficaz, diz a lei. Exatamente: o arrependimento precisa mostrar eficácia para ter sentido.
No caso dos arrependidos selecionados por “Charutinho”, os personagens haviam, primeiro, revelado os segredos logísticos de suas respectivas organizações. Depois, responsabilizados em inquéritos, foram convencidos a buscar uma atenuante. Fora desse contexto factual, qualquer outro tipo de narrativa é lero-lero.
A consequência foi que os ex-militantes tornaram-se malditos para seus respectivos grupos, sendo apelidados de “cachorros”, sem que se explicasse o porquê da referência canina para ofendê-los. No quinto andar do DOPS, onde funcionava o Serviço de Informações, as teorias políticas eram administradas de forma diferente, “Charutinho” agia como um mago buscando tirar surpreendentes coelhos da cartola.
Um dia, na Associação dos Delegados de Polícia, ele me disse que se não fosse esse tipo de estratégia, “a História do Brasil seria bem outra”. Quis decifrar a frase, mas ele falou que aprofundar esse assunto somente em lugar neutro, sem testemunhas. Por isso, convidei-o para comer uma feijoada em minha casa, num sábado, “de jornalista para ex-jornalista”, top secret, e ele aceitou sem titubeios. Foi encontro proveitoso para mim, mas só poderia escrever sobre essas coisas, em livro, bem mais para a frente.
O fato é que antes dos “arrependidos” aconteceram as infiltrações, e entre elas estavam organizações que tinham conexões diretas, por exemplo, com Carlos Lamarca e seu sucessor, Onofre Pinto (delatados), Carlos Marighela (atraiçoado) e Joaquim Câmara Ferreira (seguido do Pará até São Paulo, onde foi morto), entre outros expoentes. Essas histórias, incômodas e desagradáveis até hoje, causam embaraços nas narrativas engajadas. É chocante, mexe em feridas que nunca cicatrizam. Na guerra revolucionária, conta a História quem venceu; no Brasil, é contada de maneira mais enfática por quem perdeu. E quando se fecha a porta para tudo, a verdade, sufocada pelo ódio, fica trancada pelo lado de fora. A verdade, sabemos, é ou não é. Assemelha-se aos diamantes: quando falsos, exibem bolhas malignas e brilhos amarelados.
À época de “Charutinho”, predominava a teoria revolucionária do “foquismo”, isto é, a criação de um foco desencadeador de ações populares contra o sistema dominante. Mas nunca aconteceu essa teorizada adesão popular. O pai da teoria foquista foi Régis Debray, o guru francês incensado por militantes ardentes, o mesmo que levou Ernesto Che Guevara para um encontro, que seria fatal, nas matas bolivianas.
Francisco Guimarães do Nascimento aposentou-se. Quando elaborava meu livro “Autópsia do Medo”, que percorre os sangrentos anos de chumbo, fui em entrevistá-lo. Levei um caderno, e ao vê-lo “Charutinho” brincou que eu estava “mal-intencionado”. Contou-me bastidores, segredos, coisas que nunca ninguém soube e nem poderia imaginar. Foi peça fundamental para desvendar segredos dos porões.
O livro foi publicado no final do ano 2.000. Em janeiro seguinte, um mês depois, levo um choque: “Charutinho” enfiou o cano de revólver no céu da boca e apertou o gatilho.
Fiquei a me perguntar: seria por algo que contei no livro? Ou de algum fato que ele se arrependeu de ter me contado? Acho que não, respeitei todas as regras do combinado, mas demorei para sepultar o suicídio na vala comum do esquecimento. Mas tenho certeza absoluta de que ele sabia muito bem o que estava fazendo, premido pelas vozes insondáveis da consciência ao situar-se no subterrâneo do epicentro de uma guerra suja. Hora de colocar os pesos na balança e julgar-se devedor? Teria valido a pena? Teria ele mesmo se arrependido de tudo o que fez, além de induzir tantos a se arrependerem?
Não sei. E ninguém saberá jamais.
Fonte – R7