Os vereadores de Olinda (PE) aprovaram a primeira lei do Brasil que proíbe homenagem em monumentos e vias públicas a escravocratas e pessoas ligadas à ditadura militar. Aprovada de forma unânime na Casa legislativa, a lei nº 6.193/2021 foi sancionada pelo prefeito Lupércio Carlos (Solidariedade) em dezembro.
De autoria do vereador Vinicius Castello (PT), entre outras coisas, a lei proíbe a nomeação de prédios públicos e vias públicas e prevê a possibilidade de renomeação dos locais, imagens e esculturas na cidade. Além disso, estabelece que monumentos públicos, estátuas e bustos retirados do município devem ser armazenados em museus e identificados com informações referentes ao período escravista ou crimes praticados contra a humanidade.
Ainda não há definição sobre de onde virão os recursos para a manutenção da nova lei. Segundo Castello, o próprio mandato vai solicitar a renomeação de algumas localidades, mas organizações da sociedade civil e outros entes também poderão reivindicar mudanças. Um levantamento realizado pelo vereador apontou que, pelo menos, 13 escolas, ruas, avenidas, bustos e estátuas estão passíveis de mudança de nomes de acordo com os critérios da nova lei.
Entre os estabelecimentos estão também prédios que levam o nome de Princesa Isabel (aristocrata, filha do imperador Pedro II) e dos Bandeirantes (homens que atuavam na captura de pessoas escravizadas que fugiam). A própria Câmara dos Vereadores de Olinda também pode ter o nome alterado. Sendo uma das mais antigas do Brasil, criada em 1548, ela leva o nome de Bernardo Vieira de Melo, cuja historiografia aponta como um nobre, senhor de engenho e escravocrata. Melo teria organizado e participado do ataque contra o Quilombo de Palmares, que se constituiu como um dos locais mais emblemáticos do período.
“Queremos construir políticas públicas de ‘escurecimento’ da história. Essa é uma lei pensada para o país. Olinda é a plataforma inicial”
Vinicius Castello, vereador em Olinda (PE)
De acordo com a Confederação Nacional de Municípios não há registros de legislações semelhantes a lei 6.193/2021 aprovadas em outras cidades, além de Olinda. Em Brasília (DF), há a lei nº 4.052/2007, alterada pela lei 6.416/2019, que proíbe especificamente a nomeação de torturadores da ditadura militar a monumentos, ruas e edifícios. Em Pernambuco, a lei nº 16.629/2019 proíbe homenagens a torturadores e agentes da ditadura militar pela administração pública.
Disputa pela memória
Para Mônica Oliveira, da coordenação da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, a aprovação da lei tem uma dimensão política, histórica e pedagógica ao propor reeducar a sociedade. “O símbolo é algo que tem um peso considerável, pois fala da subjetividade. As várias homanegans feitas a personagens históricos, que em muitas situações foram atores de processos de discriminação, de opressão, de violências, marcam o imaginário de uma sociedade”, explica.
Entre historiadores, a nova lei não é consenso. O historiador Paulo Garcez, curador do Museu do Ipiranga, em São Paulo, defende que homenagens em espaços públicos não precisam, necessariamente, ser retiradas, mas perder o caráter positivo. Ele reconhece que no Brasil a crítica a monumentos racistas é insuficiente, mas defende que a rua seria o melhor espaço para fazê-las.
Muitos museus no ocidente têm adotado a prática de mudar o nome das obras. A minha posição é de que não vamos apagar nada do passado, vamos manter essas coisas para discutir. O Brasil é um país que violenta as populações indígenas, negras e as mulheres e vamos usar esses documentos do passado. Precisamos ser capazes de olhar os documentos com um esforço crítico sobre a nossa sociedade e sobre os episódios
Paulo Garcez, historiador.
A historiadora Isabel Guillen, professora da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), explica que legislações como essa começaram a provocar um debate sobre história oficial não só aqui no Brasil, mas no mundo há cerca de 20 anos.
Um exemplo é a lei francesa conhecida como Lei Taubina, de 2001, que reconheceu a escravidão e o tráfico negreiro como crime contra a humanidade e gerou, na época, grande polêmica no país europeu. A legislação francesa, explica, tem como um dos objetivos garantir que a escravidão não seja esquecida ou relativazada.
A historiadora destaca ainda que, além de projetos no legislativo, é preciso ações educativas, a fim de informar a população sobre a importância de mudar as narrativas distorcidas do passado. Para ela, quanto mais distante e menos discutida a história, maior a necessidade de marcar criticamente os acontecimentos.
Por isso, Guillen propõe que os lugares de memória da escravidão sejam marcados. Um exemplo é identificar os pontos da cidade com informações, como a própria lei propõe, algo que poderia ser um circuito pedagógico para escolas, faculdades e para a população, assim como turistas.
A disputa pela memória é uma disputa pelo direito de significar a própria história. Toda vez que você age politicamente você tem que criar justificativas para as suas pautas e sua demanda de poder. A história entra como justificadora destes pontos de vista política
Isabel Guillen, historiadora.
A proposta aprovada na cidade pernambucana foi inspirada no PL 404/20 da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL), em São Paulo, que ainda está em tramitação. O PL proíbe homenagens a escravocratas e a eventos históricos ligados ao exercício da prática escravista no âmbito da administração estadual direta e indireta.
Em SP, um levantamento do Instituto Pólis enumerou que dos 367 monumentos, 137 faziam alusão a homens brancos, e 18, a mulheres. Deste montante, apenas quatro faziam homenagem a homens negros e apenas um a uma mulher negra. Na capital, das 380 obras de arte e monumentos em espaços públicos mapeados pela Prefeitura, segundo o Instituto Pólis, 14 são contestados por movimentos sociais pelos contextos de suas narrativas, entre eles, a estátua de Borba Gato, que foi incendiada no ano passado.
Pelo país, um levantamento realizado pelo Coletivo Negro de Historiadores Tereza de Benguela, e que deu origem ao projeto “Galeria de Racistas”, elencou mais de 150 monumentos que homenageam escravocratas. Não à toa, projetos de lei semelhantes foram apresentados em outras casas legislativas como a da Bahia, do Rio de Janeiro e de Goiás, além de cidades como São Paulo e Ribeirão Preto.
No Congresso Nacional, o Projeto de Lei 5296/20, de Talíria Petrone (Psol-RJ), Áurea Carolina (Psol-MG) e Orlando Silva (PCdoB-SP), ainda em tramitação, proíbe em todo o território nacional monumentos como estátuas, totens, praças e bustos, para homenagear personagens da história do Brasil diretamente ligados à escravidão de negros e indígenas. Na justificativa, os deputados argumentam que, apesar de algumas figuras serem personagens da história, não deveriam ser homenageados como símbolos da nação.
Debate
Em 2020, o Terreiro Xambá, território importante de resistência cultural e política da população de religiões de matriz africana na cidade, deu início a uma campanha pela renomeação da Avenida Presidente Kennedy para avenida Xambá. Na época, a campanha não foi levada a cabo pelo legislativo, nem pelo executivo municipal. Com a nova lei aprovada na cidade, Pai Ivo, babalorixá do terreiro e do Quilombo do Portão de Gelo, localizados no bairro de São Benedito, acredita que é possível avançar.
Olinda já tem muitas histórias de figuras importantes que tem que ser homenageadas: babalorixás, ialorixás [pai e mãe de santo]. Precisamos lembrar que somos um país laico, mas só vemos homenagens a lideranças religiosas católicas, evangélicas
Pai Ivo, babalorixá do terreiro e do Quilombo do Portão de Gelo.
No bairro de Guadalupe, uma área periférica ao lado do centro histórico de Olinda, Mãe Beth de Oxum, iyalorixá do Ilê Axé Oxum Karê, que mora na mesma casa há 30 anos, também vê possibilidades de ressignificar o local a partir da nova lei.
Ela conta que, oficialmente, a rua onde reside leva o nome de um ex-vereador da cidade, mas que nunca foi chamada assim. Antes chamado de “Beco da Macaíba”, por causa das muitas árvores que davam o fruto, mas foram derrubadas, hoje, é conhecida como a “Rua do Coco de Guadalupe”, uma referência à Sambada de Coco que ela organiza há 25 anos no local.
“Mesmo não estando no papel, tem o sentimento de pertencimento. Queremos com essa lei institucionalizar a Rua do Coco do Guadalupe. Isso é a valorização dos lugares com a história de verdade, a história de fato do seu povo. Nós já fazemos isso há muito tempo, mas essa lei vem para institucionalizar”, diz a ialorixá.
Fonte – UOL Notícias