‘É lamentável depois de tudo que vivemos’, diz Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais
“A mais sanguinária Ditadura Militar da América do Sul”, assim é lembrada a ditadura civil-militar da Argentina que se instaurou no dia 24 de março de 1976, e perdurou até 1983 no país, resultando em 30 mil civis assassinados, entre eles, crianças e idosos, segundo estimativas de ONGs argentinas e organismos internacionais de defesa dos Direitos Humanos. Trinta e quatro anos depois, em um contexto mundial onde o conservadorismo avança na política, especialistas apontam para mais um retrocesso em direitos conquistados.
Em 3 de maio deste ano, por três votos contra dois, o tribunal máximo do país decidiu aplicar, no julgamento do torturador Luis Muiña, 61, a chamada “Lei do 2 x 1”, uma controversa decisão da Corte Suprema, que pode abrir precedente para a libertação prematura de mais de 700 repressores presos por violência de Estado cometida no período ditatorial.
“É obvio que isso vai repercutir na memória desse período. O pouco que se avançou vai retroceder. É lamentável depois de tudo que vivemos”, disse Cecília Coimbra, fundadora do grupo Tortura Nunca Mais.
Para Cecília, a questão dos direitos humanos está relacionada, hoje, com a política econômica.
“É um momento de retrocesso muito grande, não só na América Latina, mas nos países que passaram por ditaduras mais recentes. Quando fazemos essa ligação com o que aconteceu naquele período e hoje, é como se hoje estivesse tudo bem, e não está. Mães de alguns jovens assassinados nas periferias falam: a ditadura não acabou nas favelas. Não é sobre o que ficou lá, é o que continua aqui”, completou.
Lei 2 x 1
Muiña havia sido condenado, em 2011, a 13 anos de prisão por sequestrar e torturar cinco pessoas no hospital Posadas, centro de tortura durante o governo de Reynaldo Bignone (1982-1983), último presidente do regime que hoje, aos 89, está preso.
A justificativa da Corte era de que, no caso de Muiña, cabia usar o princípio da Lei “2 x 1”, por conta do tempo em que o acusado havia permanecido à espera de uma condenação.
A legislação esteve em vigor por curto período no país, entre 1994 e 2001, e tinha como objetivo acelerar os julgamentos e impedir longos períodos de prisão preventiva. Pelo texto, cada ano em que alguém ficasse detido esperando julgamento valeria por dois após a condenação. Na prática, reduzia a pena pela metade.
Só no dia 5 de maio, após a votação da lei, três presos da ditadura pediram para ser atendidos: o médico obstetra Jorge Luis Magnacco, que realizava partos das prisioneiras na Escola Superior da Marinha (ESMA) e está condenado por roubo de bebês; o militar Juan Antonio Azic, responsável por apropriar-se de uma criança – a hoje deputada Victoria Donda –; e Alfredo Astiz, conhecido como “anjo da morte”, que cumpre pena de prisão perpétua por sequestros e torturas no mesmo centro Muiña.
“Acabar com essa memória é uma forma de anistia para o presente. É perigosíssimo. Cada vez mais apoiamos uma repressão em nome da nossa segurança. No Brasil, é concedida prisão domiciliar para a ex-primeira-dama do estado e não para outras mulheres presas. Quer dizer, para os meus amigos tudo, para os inimigos, nada”, comparou Cecília com o caso da ex-primeira dama do Rio, Adriana Ancelmo.
Brasil
Cecília conta que o Brasil foi “campeão em exportar tortura” e é um dos últimos países a trazer essa memória para o presente com a Comissão Nacional da Verdade. A Argentina, segundo ela, avançou muito na condenação dos torturadores, e na formação de memória sobre o período, “até pela pressão dos movimentos sociais do país”. Apesar disso, ela faz uma ressalva:
“Muito pouco se avançou. Quando você fala de uma coisa que aconteceu há 40 anos é como se hoje as pessoas não estivessem sendo perseguidas pela política. Por isso, quando falamos da Argentina de agora, falamos de algo globalizado, obviamente com as especificidades de cada país”, finalizou.
Criada em 2012, pela Lei 12528/2011, a Comissão Nacional da Verdade tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 no Brasil. Em dezembro de 2013, o mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632, porém, após a data, nada se fez com relação as medidas recomendadas pelo grupo.
“A lei já previa que a comissão tinha um tempo determinado para trabalhar. Em 2014, ela entregou um relatório final para a presidente, apresentando recomendações, entre elas, a criação de um órgão permanente para lidar com essa temática no âmbito federal. Porém, nada foi feito”, contou Lucas Pedretti, ex-pesquisador da Comissão Estadual do Rio, completando: “E no atual contexto político, existe uma perspectiva ainda menor de que algo desse tipo vá ser levado em conta”.
Pedretti conta que a Comissão tem sido colocada em prática no mundo todo, no âmbito de um campus jurídico que se chama Justiça de Transição, um conjunto de medidas que reúne ações políticas, judiciais e sociais, para garantir o direito à memória e responsabilizar aqueles que, de alguma forma, corroboraram com as atrocidades cometidas em regimes repressivos.
“A gente viu que se construiu uma democracia que mantém todas as estruturas autoritárias que marcaram a ditadura”, relatou o pesquisador sobre sua experiência na Comissão Estadual: “Mas eu não tenho a menor dúvida de que o mais gritante é como as forças policiais lidam com manifestações públicas, e como atuam em áreas de favelas e periferias, onde nos deparamos com um verdadeiro genocídio que atinge a população negra e pobre”, completou.
Ele afirma ainda que a ‘Lei 2 x 1’ não é a primeira notícia sobre retrocessos na Argentina.
“Lá eles estavam avançados nos debates, questionando aqueles que financiaram, do ponto de vista econômico, a ditadura. Então é um retrocesso enorme que com certeza reverbera em todo continente. O Brasil tem muita dificuldade de lidar com essa memória. Só em 1995, o estado assina, pela primeira vez, a responsabilidade sobre a ditadura. E apenas 2012, uma Comissão da Verdade é criada, porém, com ações limitadas”, acrescenta.
O protesto
Em protesto contra a decisão da Corte, cerca de 500 mil pessoas se reuniram na Praça de Maio, centro e Buenos Aires, na última quarta-feira (10), com cartazes e palavras de ordem.
No ápice da marcha, a ativista de 87 anos, Estela de Carlotto, membro-titular da ONG Abuelas de Plaza de Mayo – cujo objetivo é localizar e restituir todas as crianças sequestradas ou desaparecidas pela ditadura argentina às suas legítimas famílias – discursou para o mar de manifestantes presentes na Praça, bradando: “Nunca mais. Nenhum genocida solto!”, para em seguida, ecoar o grito: “30 mil presos desaparecidos presentes. Agora e para sempre!”.
A pressão popular da última semana, porém, já surtiu efeito: o Senado aprovou por unanimidade uma lei que freia qualquer tentativa de reduzir penas de pessoas condenadas por crimes contra a humanidade.
O texto aprovado pelos senadores nesta quarta destaca que computar os dias de prisão em condenação, como fixava a ‘Lei 2 x 1’ (Lei 24.390), “não é aplicável a condutas que se enquadrem na categoria de crimes de lesa humanidade, genocídio ou crimes de guerra, segundo o direito internacional”. Apesar da vitória, o assunto trouxe à tona mais um retrocesso em direitos humanos que tem atingido a Argentina e o resto da América Latina.
A decisão da Corte teve a participação decisiva dos dois chamados “juízes de Macri”: Carlos Rosenkrantz e Horacio Rosatti. Em ano eleitoral na Argentina, o caso ganha peso no debate político, pois lembra que o presidente Maurício Macri, sem consultar previamente o Congresso, apontou os dois nomes para postos vagos na Corte Suprema, e apenas depois foram referendados pelo Senado. A oposição defende que o governo reagiu de forma contrária à aplicação da medida na tentativa de evitar o desgaste de sua imagem e de sua relação com as entidades de direitos humanos.
Fonte – JB