Comissão da Verdade enfrenta críticas e iniciativa paralela de militares

Oficiais da reserva anunciam que criarão comissão própria para rebater acusações de grupo oficial.

A Comissão da Verdade, criada para investigar abusos de direitos humanos cometidos durante a ditadura militar, se reunirá pela primeira vez nesta quarta-feira em meio a críticas de oficiais das Forças Armadas e de parentes de vítimas.

Descontentes com a composição da comissão, oficiais reformados do Clube Naval do Rio de Janeiro anunciaram a formação de uma “comissão paralela” para rebater as eventuais acusações do grupo oficial.

A iniciativa reflete o desconforto provocado nos militares pelo que acreditam ser uma tentativa de vingança de um governo ideologicamente tendencioso.

O regime ditatorial vigorou no Brasil por 21 anos, entre 1964 e 1985. Nesse período, cerca de 400 pessoas foram mortas ou desapareceram e milhares teriam sido torturadas – entre elas a própria presidente, Dilma Rousseff.

“Claro que coisas terríveis aconteceram nesse período, mas vítimas foram feitas dos dois lados e eles só querem contar um lado da história”, afirmou o vice-almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral, presidente do Clube Naval do Rio de Janeiro.

Uma vez que os militares da ativa são proibidos de expressar seu ponto de vista publicamente ou organizar sindicatos, seus clubes – liderados por oficiais generais da reserva – são bons indicadores do clima dentro das Forças Armadas.

Segundo Cabral, o Clube Naval designou “sete oficiais de confiança” para fazer parte da “comissão paralela”.

“A comissão está ainda em estágio embrionário, mas temos claro que nosso objetivo é garantir que o relato contemple os dois lados”, disse Cabral.

O grupo não deve produzir um relatório próprio, mas apenas rebater acusações que sejam feitas pela comissão oficial.

“Os jovens hoje em dia nem conhecem a história narrada pelo outro lado (o lado dos militares) porque a mídia adotou apenas uma versão”, afirmou o militar reformado.

Vítimas

Porém, as vítimas do regime e seus parentes também não estão satisfeitos. Isso porque a comissão terá poderes para investigar violações de direitos humanos, mas não para punir os responsáveis.

As estatísticas variam, mas relatórios oficiais sugerem que entre 400 e 500 militantes e civis tenham sido mortos pelos militares, ou simplesmente desaparecido.

“Nós queríamos uma “Comissão da Verdade, Memória e Justiça”. Com os recursos e poderes dados à comissão eu duvido que eles descubram algo inovador”, disse Victoria Grabois, presidente da organização Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro.

O pai dela, Maurício Grabois, que pertencia à cúpula do PC do B, está desaparecido desde 1973, quando as Forças Armadas atacaram seu acampamento no Araguaia.

“Essa comissão deveria pelo menos sair com relatórios dizendo exatamente que militares ou policiais mataram ou torturaram e quais foram as vítimas de cada um. Mas, infelizmente, duvido que esse tipo de responsabilização vá acontecer”, disse.

Entretanto, Victoria admite que a comissão pode ajudar a preencher algumas lacunas históricas e mesmo ajudar a determinar o fim de alguns militantes e guerrilheiros ainda dados como desaparecidos.

“Isso pode acontecer, mas de todo modo vai ser a conta gotas, como já vem acontecendo”, afirmou.

Punições

O governo brasileiro reconheceu em 1995 que o Estado foi o responsável por assassinatos, desaparecimentos e tortura durante o regime militar, mas a Lei de Anistia de 1979 – confirmada recentemente pela Justiça – proíbe punições.

Os sete membros apontados para formar a comissão também já deixaram claro que o grupo não possui nem a autoridade, tampouco a intenção de processar ninguém.

“Não estamos aqui para punir, esse não é o trabalho de nenhuma comissão da verdade no mundo”, afirmou o comissário Paulo Sérgio Pinheiro, jurista que ocupa hoje a chefia da Comissão de Inquérito da ONU para a Síria.

“Já aconteceram mais de 40 comissões da verdade no mundo desde os anos de 1980, e nós nos beneficiaremos muito dessa experiência”, disse Pinheiro à BBC Brasil.

Mas a criação da Comissão da Verdade no Brasil também realçou o contraste com outros países da América Latina – como Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Peru – que já passaram por esse processo e, em alguns casos resultaram em processos e condenações.

“É justo dizer que o Brasil está atrasado em relação à sua Comissão da Verdade, mas é injusto dizer que nada aconteceu desde que o Brasil voltou à democracia”, disse Pinheiro. “O Brasil até pagou indenizações para familiares de pessoas desaparecidas. Eu não acho que nenhum outro país tenha feito isso”, afirmou.

Victoria afirmou que nunca desistiu de descobrir o que realmente aconteceu com seu pai, apesar de seu desaparecimento ter ocorrido há mais de 40 anos. Ela disse que perdeu a esperança de superar a Lei de Anistia, para que alguma condenação ocorra.

“É muito difícil, aconteceram algumas tentativas de mover ações por sequestro usando como base o direito penal, mas os tribunais ainda não aceitaram essa tese”, disse.

Porém, o vice-almirante Cabral afirmou que ainda existe um temor de ações penais entre os veteranos. “Isso pode crescer como uma bola de neve e nunca saberemos onde vai parar. Uma anistia foi concedida para os dois lados e isso foi o fim do problema”, disse.

Pinheiro diz não aceitar a abordagem de que há dois lados sobre o tema. “Nós temos que fazer uma investigação completa e complexa dos crimes sobre os quais o Estado já assumiu sua responsabilidade. O lado que importa é o lado das vítimas.

Prazo

A Comissão da Verdade terá dois anos para concluir seu trabalho, mas ainda não está claro se ela será capaz de tornar públicos os documentos confidenciais a que seus membros terão acesso.

O jornalista Marcelo Netto – co-autor do livro Memórias de Uma Guerra Suja- feito com base nos depoimentos do ex-delegado do Dops, Cláudio Guerra – elogiou a iniciativa da criação da comissão da verdade, mas acredita que o tempo e os recursos de que a comissão vai dispor sejam insuficientes.

“Para fazer um livro baseado apenas no depoimento de um delegado, eu e outro jornalista (Rogério Medeiros) passamos três anos pesquisando e conferindo informações. Mesmo com bem mais gente, os dois anos que comissão vai ter para pesquisar todo o regime militar me parecem pouco.”

Marcelo Netto diz que também foi vítima do regime militar: passou treze meses na prisão no fim dos anos de 1960 quando estudava medicina na universidade. Banido da instituição, acabou virando jornalista e décadas depois biógrafo de um assassino confesso do regime militar.

“Tivemos que fazer muitas pesquisas porque o (ex-delegado Cláudio) Guerra não sabia o nome de algumas das pessoas que ele matou”, contou.

Em seus depoimento, o ex-agente do Dops diz que incinerou corpos de adversários da ditadura numa usina de cana em Campos dos Goytacazes (RJ), ao longo de 1974.

 

Fonte – O Estado de S.Paulo

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