Comissões da Verdade não servem ao passado, mas ao presente contínuo, diz Nobel da Paz

 

Para o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Brasil precisa enfrentar impunidade para evitar que violações voltem a acontecer no futuro

Argentina, dezembro de 1983. O recém-eleito presidente Raúl Alfonsín – primeiro civil a comandar o país após o fim da sangrenta ditadura militar – chama Adolfo Pérez Esquivel à Casa Rosada, o palácio presidencial argentino. O objetivo é convidá-lo a presidir a Conadep (Comissão Nacional de Desaparecidos Políticos), que investigaria os crimes e violações de direitos humanos cometidos pelos militares desde 1976.

 

“Democracia não é só colocar voto em uma urna”, diz Pérez Esquivel

 


Prêmio Nobel da Paz (1980), histórico militante em defesa dos direitos humanos, Esquivel recusa a tarefa.

O motivo: a falta de autonomia da comissão, que não tinha poderes de requisitar documentos e convocar testemunhas, além de remeter seus resultados para a Justiça militar e não para a civil. “Os militares não poderiam ser juiz e parte de tudo isso”, relembra Esquivel, hoje com 81 anos.

 

Quase três décadas depois, ele avalia que, apesar das limitações, o trabalho da Conadep foi positivo ao analisar documentos já conhecidos pelas organizações de direitos humanos e ouvir os depoimentos de cerca de 7.000 pessoas. “A Conadep cumpriu uma etapa. Agora o resultado está nos arquivos da Secretaria de Direitos Humanos, que também fornece informações para os julgamentos”.

Esquivel se refere às centenas de ex-repressores levados ao banco dos réus desde 2003 na Argentina. Sobrevivente de um dos trágicos “voos da morte” sobre o Rio da Prata, preso pelas ditaduras brasileira, argentina e equatoriana, Esquivel defende nesta entrevista exclusiva ao Opera Mundi a importância da recém-instalada Comissão Nacional da Verdade no Brasil.

Para ele, conhecer os crimes e os autores de violações aos direitos humanos na ditadura é um passo fundamental para o país consolidar sua democracia. “A memória não é para que fiquemos no passado, mas sim para iluminar o presente. É através do presente que se tem que construir a vida e gerar as condições necessárias para que isso nunca aconteça outra vez. Para mim isso não é passado, é um presente contínuo”.

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Opera Mundi: O senhor foi convidado por Alfonsín para presidir a Conadep, mas negou a proposta. Quase 30 anos depois, como o senhor avalia o trabalho da comissão?

Adolfo Pérez Esquivel: Avalio da mesma forma. A Conadep simplesmente verificou as informações que os organismos de Direitos Humanos já tinham e que foram oferecidas à comissão. Com a queda da ditadura e a volta ao governo constitucional, nós propúnhamos uma comissão bicameral parlamentar [formada por representantes do Senado e da Câmara de Deputados]. O presidente Alfonsín decidiu, para que fosse menos conflituoso, formar uma comissão de notáveis, que em sua opinião gerariam mais credibilidade. Ele me chamou à Casa de Governo, então disse que aceitaria com uma condição: que tudo passasse pela Justiça civil e não pela Justiça militar. Porque os militares não poderiam ser juiz e parte de tudo isso. E aí Alfonsín ficou em silêncio.

OM: Que diferença teria se fosse bicameral?

APE: A diferença é que uma comissão bicameral teria capacidade de investigação, a Conadep não teve essa capacidade. Não podia, por exemplo, ir à polícia, ao exército, ou à marinha e pedir que entregassem os arquivos. Simplesmente verificavam as informações, o que os organismos de Direitos Humanos já estavam fazendo. Todos os quadros e esquemas que aparecem no Nunca Más [dossiê resultante da investigação, publicado em 1984] foram entregues por nós à Conadep. Por uma questão de princípio, eu não podia aceitar que isso chegasse às mãos dos militares, que não julgariam a si mesmos. Alfonsín mandava todas as causas ao Conselho Supremo das Forças Armadas. E eu não podia ser cúmplice disso. Então Alfonsín chamou o [escritor Ernesto] Sábato, que falou comigo antes de aceitar. Eu lhe expliquei como seriam as coisas e porque disse que não a Alfonsín.

OM: Que relação Ernesto Sábato relação tinha com os Direitos Humanos? Porque foi chamado por Alfonsín?

APE: Ernesto Sábato passou por mudanças nesse processo. Inclusive, teve uma coisa que [o historiador] Osvaldo Bayer sempre lhe criticou, que foi o fato de ele ter ido almoçar com os ditadores no começo. Mas depois Sábato passou a compreender o problema. Quando ainda não existiam as Abuelas de la Plaza de Mayo e as Madres, um grupo de notáveis se reuniu para apoiar a constituição das avós. Entre eles estava Sábato. Em 1981, entreguei ao papa João Paulo II um dossiê sobre o caso dos bebês seqüestrados e desaparecidos na Argentina, a partir disso pela primeira vez o papa falou dos desaparecidos da Argentina. Mas eu acho que a Comissão liberada por Sábato fez um bom trabalho de verificação do que já havia e coletou testemunhos das cerca de 700 mil pessoas que se apresentaram. Mas ficou nisso. Veja que depois disso o governo Alfonsín continuou mandando tudo ao Conselho Supremo das Forças Armadas. Porque antes de tudo havia negociações entre os dirigentes políticos com os militares, antes mesmo das eleições, tanto os peronistas como os radicais.

OM: No entanto a argentina conseguiu romper esse pacto de impunidade que vigorou até o período do Menem, com os indultos…

APE: Rompeu com Kirchner, que chegou muito fraco ao governo e existia essa forte demanda. O que ele fez foi apoiar o pedido que nós levamos durante anos de anulação das leis de impunidade, a de Ponto Final e a de Obediência Devida.

OM: E qual o legado dessas comissões em relação ao respeito aos direitos humanos?

APE: Quando falamos de Direitos Humanos devemos ter cuidado, porque eles não se esgotam com o fim da ditadura. Temos que ver o que acontece hoje em dia, para que na América Latina não volte a haver um golpe de Estado, como em Honduras, ou as violações na Colômbia, ou no Brasil a forte pressão militar sobre a presidente Dilma para impedir a Comissão da Verdade. A luta não terminou, em todo o continente. Não nos enganemos com isso, isso não é passado é presente. Vejo que aqui muitos organismos pensam que isso já passou.

OM: Além disso, na Argentina os civis responsáveis pela ditadura nunca foram julgados.

APE: Agora estão começando, houve uma blitz na semana passada na empresa [açucareira e papeleira] Ledesma, que cedia seus caminhões para o sequestro de pessoas. Depois, me ligaram de lá contando que encontraram arquivos de 2005, onde meu nome aparece, mencionando encontros que fizemos lá e os protestos que fizemos quando morreu Olga Aredes, fundadora das Madres de lá. Por que a empresa tinha este registro? Porque são cúmplices.

Trabalhei em diversas comissões para a memória, e para mim a memória não é para que fiquemos no passado, mas sim para iluminar o presente. Porque é através do presente que se tem que construir a vida e gerar as condições necessárias para que isso nunca aconteça outra vez. Para mim isso não é passado, é um presente contínuo. Como o desaparecimento de pessoas não é passado, é um presente continuo. A Conadep cumpriu uma etapa. Agora o resultado está nos arquivos da Secretaria de Direitos Humanos, que também fornece informações para os julgamentos.

OM: Que experiências da Conadep poderiam servir para o trabalho da Comissão da Verdade no Brasil e o que poderia ser corrigido?

APE: Acho que o importante é fazer um intercâmbio com as comissões para ver qual é o mecanismo de trabalho, para poder trocar informações, experiências, porque no Brasil aconteceram muitas coisas em diferentes regiões do país e é muito difícil, depois de tanto tempo, detectar, porque inclusive muitos arquivos foram destruídos… apesar de que os militares nunca destroem nada. Escondem, como os nazistas, por isso se sabe tanto. Eles nunca vão destruir uma ordem, têm um esquema de racionalidade que faz com que conservem documentos por alguma razão.

OM: E a que se atribui o fato de que a Argentina tenha avançado mais que os outros países da região neste aspecto?

APE: É preciso ter o panorama completo, se não é difícil entender. Quando vigoravam as leis de impunidade aqui, recorremos à justiça internacional. E assim conseguimos que a Audiência Geral de Madri, com [o juiz Baltasar] Garzón, passasse a investigar esses crimes. Como se estava aplicando a justiça internacional, quando se conseguiu destravar aqui a anulação das leis de impunidade, então no país os julgamentos foram retomados. Se não tivéssemos atuado para abrir o bloqueio jurídico aqui, os militares ficariam no país, porque se saíssem teriam a captura recomendada pela Interpol, como ocorreu com Pinochet, em Londres. Todos estes antecedentes, este percurso, foi o que nos permitiu avançar no direito à verdade e à Justiça.

OM: Ou seja, o senhor atribui os julgamentos de hoje à busca persistente das organizações de Direitos Humanos argentinas?

APE: À luta permanente de todos os organismos civis. Conseguimos que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos viesse em 1979 para coletar informações, na época eu acabava de sair da prisão, tinha filas e filas [de pessoas esperando para fazer denúncias na oficina da OEA].

OM: A que se deve esse silêncio que há no Brasil acerca da ditadura? E à persistência das Mães e Avós da Praça de Maio, que nunca deixaram que a sociedade se esquecesse?

APE: Acho que a organização social também depende dos momentos históricos. o [general Francisco] Franco morreu em 1975, mas a Espanha só está acordando agora para o que aconteceu na guerra civil. Chamo isso de “esquecimentos intencionais”. Mas a memória sempre volta.

No início de maio, completaram-se 35 anos do “voo da morte” em que estive. Em 5 de maio de 1977 me levaram em um avião e iam me jogar no Rio da Prata. Sou um sobrevivente. Então como eu posso achar que isso terminou? E não é por nenhum trauma, mas sim por consciência e memória, porque temos que continuar lutando. Quando vemos os golpes de Estado atualmente, vemos que estas coisas não são tão distantes. Quando teve a tentativa de golpe no Equador eu peguei um avião e fui acompanhar o [presidente Rafael] Correa.

Depois de 1997, 98 anos os armênios continuam buscando verdade e justiça do genocídio pelos turcos, em 1914. Por isso te digo: passa o tempo, mas a memória fica. E não há povo sem memória, os povos que perdem a memória desaparecem. No caso do Brasil, acho que é importante que o povo brasileiro saiba enfrentar as coisas, não se esquivar delas, não escondê-las.

OM: Em várias ocasiões o senhor disse que não se pode construir um processo democrático na impunidade. Há democracia no Brasil?

APE: A democracia não é só colocar voto em uma urna. A democracia são espaços a construir, e acho que essa construção deve ser coletiva. Toda sociedade é o resultado de quem a compõe. Se um povo oculta sua vida, é um povo que corre perigo. Se um povo tem a coragem de enfrentar e resolver inclusive as coisas mais terríveis, tem força. Há um antigo provérbio que diz “a noite mais escura é quando começa o amanhecer”.

OM: O fato de que a Corte Suprema brasileira ter ratificado a Lei de Anistia é um retrato do que é a sociedade brasileira hoje?

APE: Sim. Porque a Corte Suprema é cúmplice da impunidade e uma justiça nunca pode ser cúmplice da impunidade, faz um dano terrível ao povo, faz um grande dano à justiça. Em 1981, no Brasil, me prenderam no Rio de Janeiro por falar contra a impunidade.

OM: Todos os anos, no aniversário do golpe de Estado de 1964, no Brasil, os militares comemoram o que chamam de “revolução”. Qual sua opinião sobre essa situação?

APE: As Forças Armadas se criaram como força de defesa da soberania nacional, não há soberania sem povo. Na América Latina todos esses militares estiveram nas Escolas das Américas no Panamá e nas Academias Militares dos EUA e passaram por uma lavagem cerebral completa. E em vez de atuarem como forças de segurança da soberania nacional, se transformaram em tropas de ocupação contra seu próprio povo. Alteraram esse papel, assim como a polícia, que tem uma função muito boa em sua origem, que é de prevenção e de segurança social, mas com o tempo se transformaram em forças de repressão. O que os militares celebram? Torturar? Assassinar? Estuprar? Apropriar-se dos bens do povo? Sem julgamentos? Sem direitos? Com um golpe de Estado? É isso que celebraram? Celebraram a perseguição ao povo? À margem da lei? E além disso se auto-anistiam para justificar os crimes cometidos. E como se não bastasse, comemoram. Comemoram o horror. Não comemoram a vida, nem sequer a morte. O horror.

É a mesma coisa com [Barack] Obama, para quem escrevi. Ele comemorou o assassinato de Bin Laden, e não o direito de justiça. Festeja a guerra do Iraque, do Afeganistão, as prisões de Abu Ghraib e Guantánamo. Isso é uma patologia esquizofrênica.

 

 

Fonte – Opera Mundi

 

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